Cosmopolita tendencioso: sobre patriotismo e nacionalismo

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Cosmopolítica relativista (e tendenciosa)

Nasci em São Paulo, me criei na Bahia (a Bahia me deu régua e compasso), mas não sou nacionalista nem patriota. Se eu me apresentasse assim a todas as pessoas, dizendo que não sou nacionalista nem patriota, quanta confusão não causaria. Não apenas porque as pessoas não gostam de discutir nada — elas gostam de sentenciar e esperam ansiosas uma validação, ai daquele que discorda —, mas também porque dificilmente eu encontraria alguém que não se declarasse patriota. Minha depravação começou na infância, com os Beatles, com a percepção de que havia muitas coisas interessantes criadas por outras identidades (não brasileiras). A fortuna brasileira já estava garantida pela herança e pela presença constante em minha casa de Beth Carvalho, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, etc., de sorte nunca fui atraído ou adepto do vira-latismo tão popular no Brasil.

A medida que fui envelhecendo minha degenerescência foi se agravando, primeiro pela exposição ao pensamento de Che Guevara sobre a América Latina, depois, com a internet, com gosto pela música latino-americana, com a Negra Sosa, Violeta Parra, Victor Jara, Buena Vista Social Club e outros que tais; Neruda e Gabrielle Mistral reforçaram meus laços com o Chile e essa admiração me permitiu também fazer muito amigos aí usando o mIRC.

É certo que antes de tudo isso o colombiano Gabriel Garcia Marquez já me havia fisgado com Cem anos de solidão, mas a verdade é que foram os argentinos e argentinas os responsáveis por consolidar meu afastamento do justo caminho do patriotismo (e tudo isso em grande parte graças ao meu ensaboado amigo Felipe Ribeiro). Nunca fui capaz de sentir o ímpeto da rivalidade, nem mesmo no futebol, nem mesmo depois de Maradona e Caniggia em 1990. Pertencendo a um grupo/identidade, nunca senti a necessidade de prevalecer sobre outro grupo, por isso o sentimento patriótico nunca fez morada em meu corpo, especialmente o patriotismo brasileiro, que é menos um orgulho pelas coisas brasileiras do que um imperativo sádico de se afirmar perante o Outro (aquele outro do qual Freud fala comentando o narcisismo das pequenas diferenças). O vira-latismo e o patriotismo brasileiros andam de mãos dadas, como bem ilustram os bolsonaristas.

Um patriota brasileiro fazendo o melhor que sabe, acusando o país de não seguir o único parâmetro que ele reconhece como válido, o EUA.

(Durante curto tempo, na adolescência, eu tive predisposição ao elitismo, à aristocracia, mas ao encontrar ou ler as pessoas que se proclamavam elite, ou parte de uma classe aristocrática [mesmo na condição de membros desgarrados], não enxerguei nem inteligência, nem sabedoria, apenas uma atitude pedante e caricata que lhes parecia suficiente para justificar a pomposo título de melhores (aristoi). Foi então que minhas suspeitas contra as identidades começaram a encorpar-se.)

Depois de me mudar para a Espanha, em 2013, senti discreta e ligeiramente julgamentos sobre meu compromisso com o meu país, julgamentos que vinham de diferentes partes do espectro político. Essas pessoas pensavam — sem me dizer diretamente, claro — que eu devia alguma coisa ao meu país, pois deve haver um compromisso entre um cidadão e sua pátria, sua nação, de tal sorte que abandoná-la pareceria algo condenável. Mas a que país eu devia o compromisso patriótico, ao Brasil ou ao Brazil? Minha dívida era ao Brasil real ou o Brasil burlesco? — para usar a expressão de Ariano Suassuna (a frase é de Machado de Assis).

Brasileiros patriotas que nos enchem de orgulho; só cristãos e pessoas do bem, cheios de amor e generosidade em relação aos outros #sqn

Antipatizar com argentinos é parte essencial da cartilha do bom patriota e os patriotas, quando questionados, se apressam em reunir exemplos da marra portenha, como se assim pudessem nos convencer de acreditar no que creem. Mas alguém não poderia igualmente formar uma opinião desfavorável dos brasileiros, reunindo exemplos de patriotas asquerosos? Um preconceito e um juízo justo podem ser igualmente justificados e nenhuma verdade pode resolver a contenda pela simples razão de que a ética não é um mero derivado do conhecimento (saber agir não é o mero resultado de se ter acumulado conhecimento). O conhecimento não pode nos dar o que esperamos dele porque a justificação (que constitui sua base) não é fim da cadeia de razões; tudo pode ser justificado como nós quisermos [a inescapabilidade do arbitrário]. E essa difícil lição (que eu não espero que ninguém entenda assim tão facilmente) está no núcleo do que Kripke denominou o paradoxo do seguir a regra:

Nosso paradoxo era este: uma regra não poderia determinar nenhum modo de agir, pois todo modo de agir pode ser posto em conformidade com a regra.

Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 201

Naturalmente, o erro de Kripke não é tão importante quanto a inventividade de sua proposta e, sobretudo, a sua ênfase sobre a importância do tema. Esse simples comentário é absolutamente bombástico, se chegamos a compreender a radicalidade do que ele diz sobre a normatividade e a determinação. E é por isso que o próprio Wittgenstein se apressa em tentar remendar a quase inevitável medo de um relativismo epistêmico que parece dizer: “qualquer coisa é verdade, basta a cada um querer!”, uma espécie de post-truth entre as décadas de 30 e 40 do século XX. Por isso um pouco mais a frente ele escreve:

“Então, o que você diz é, portanto, que a concordância [Übereinstimmung: acordo?] das pessoas decide o que é correto e o que é incorreto?” – Correto e incorreto é o que as pessoas dizem; e as pessoas concordam na linguagem. Isso não é uma concordância de opiniões, mas de forma de vida.

Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 241 (minha dúvida)

Não é por outra razão que o pensamento de Wittgenstein sofre uma deriva antropológica que o leva a confrontar e criticar (James Geor) Frazer, e cuja força vai alimentar, entre outros, Peter Winch, em The Idea of a Social Science and Its Relation to Philosophy e em toda sua obra (Muniz Sodré é alguém que, no Brasil, eu sei ter sido influenciado por esse viés do pensamento wittgensteiniano). Mas não dá pra discutir tudo isso agora, o que importa dessa digressão é o sabor relativista que fica. Esse sabor que nos lembra o que há de incontornável em nossas perspectivas, por mais importância que emprestemos à ideia de fato e à noção de objetividade. A pragmática instaurada pelo entendimento de Wittgenstein sobre regras não rejeita a verdade, apenas destaca a subordinação dos jogos de justificar a verdade de proposições a outros jogos pragmáticos, a domínios não-proposicionais, não objetivos, regido por valores e elementos que não necessariamente estão determinados; além de nos lembrar que o padrão de correção muda com o tempo.

Essa discussão importa porque qualquer adjetivo que você associe ao conceito de “argentino” — essa categoria que nomeia uma generalidade que engloba (subsume é mais palavra mais adequada, mas quem usa o verbo subsumir?) particulares cujas características parecem determinadas pelo adjetivo — pode ser revisto, reconstruído, questionado, redefinido, rearranjado… relativizado, posto em perspectiva. Não que esse ou aquele adjetivo atribuído aos argentinos seja errado, o afastamento do campo epistêmico nos afasta de dicotomias como erro/acerto, verdade/falsidade. Isso significa que naquilo que dizemos de uma categoria, de uma identidade qualquer, de um conceito bastante geral e abstrato (como o de argentino), é menos importante a verdade do que se diz do que a justiça que anima a vontade de dizer. Mais uma vez, esse é o sentido da posição de Aristóteles frente a Platão a respeito da relação entre ética e conhecimento. É mais importante uma vontade de levar em consideração o particular que se esmera tanto em notar as nuances e singularidades do caso que é como se quisesse renegar a própria generalidade dos conceitos e construir para cada indivíduo sua própria lei e norma (o que parece abolir a própria função do que é geral, mas não abole, pois é esse o próprio sentido inerentemente pragmático [não-normativo] da justiça e da ética).

É preciso admitir que isso não significa que todo patriota seja a caricatura que poderíamos conceber a partir do que eu disse até aqui, isto é, uma figura atavicamente apegada a um identidade nacional que manifestaria irrefletida e automaticamente rechaço por todas as expressões de alteridade. No entanto, os patriotas capazes de olhar os outros com justiça são raros e não testemunham nem oferecem motivos convincentes para seguir alinhado a perspectivas nacionalistas. O nacionalismo está inescapavelmente contaminado com o problema central de toda forma de identitarismo, aquele que melhor se expressa no narcisismo de pequenas diferenças que assinala Freud. É difícil escapar a uma força que, ao mesmo tempo que constitui um sentido de unidade e pertencimento, permite o escoamento da hostilidade e da violência, além de dar feições claras ao inimigo, àquele que deve ser combatido.

Ao subordinar a conquista da união e da força política da unidade à segregação que instaura em relação ao outro, toda e qualquer expressão de identitarismo se arrisca num caminho perigoso que em nada difere de outras expressões de identitarismo notoriamente condenáveis: como o fascismo e certas manifestações de nacionalismo (Mate todos os Outros — em Electric Dreams — apresenta tais expressões identitárias de forma radical e brilhante). O único meio de evitar a tendência fascista e linchadora que o identitarismo traz latente consigo é se a união identitária vier matizada por um espírito reflexivo, como aquele salientado por bell hooks em sua ênfase sobre a necessidade do amor e da justiça como práticas, mas vocês hão de concordar que essa não é a tônica do ativismo em nenhum lugar do planeta. (De qualquer modo, é bom enfatizar que meu argumento não depende de uma avaliação correta da situação do ativismo no mundo.) E o ativismo identitário é, em si mesmo, uma forma branda de anti-intelectualismo justificada pela necessidade de intervenção [ação], e o que ele diz indiretamente é: “pense e reflita o quanto você quiser, desde que isso não te impeça de agir com a imediaticidade que as circunstâncias exigem (e segundo as regras de atuação que nós lhe ditamos), a menos que você seja um desses privilegiados que não entende a necessidade real de intervenção em razão do sofrimento de classes às quais você não pertence”. O comedimento que a reflexão imprime à ação é, para o ativismo, punheta intelectual das classes privilegiadas.

Um mundo forçosamente empurrado a uma globalização digitalizada (instalada no marco de uma economia digital e financeira) coloca diante da diversidade da espécie humana um tipo inédito de convivência e parece como se não nos restasse senão a necessidade de pensar e agir segundo uma cosmopolítica que dilua a força das identidades nacionais; mas não uma cosmopolítica universal, como a belíssima proposta de Kant para uma filosofia da história. Como é possível unir o imensamente diverso, o irredutivelmente plural senão por meio de aspectos comuns (ainda que naturais)? Não é o fio condutor da natureza o único artificie dos nossos caminhos, como nos sugere Kant? Uma comunidade de aspectos naturais ou culturais não é o que deve unir os seres humanos, e em realidade não estou certo de que devemos buscar união/unidade nesse sentido forte; aqui eu tenho escrito sobre confluência. A inevitabilidade do relativismo provoca dois efeitos ético-políticos mutuamente entrelaçados, efeitos que caracterizam uma cosmopolítica relativista e articulam precariamente esse emaranhado de temas: 1) a aceitação de um perspectivismo que bloqueia a busca ilusória de dimensões universais sem cair no individualismo; nesse contexto, a recusa à identidade universal é mais uma preocupação em não se fechar na estabilidade do padrão, além da necessidade de aprender a viver com a precariedade de identidades provisórias, sempre renovadas, misturadas a outras novas ou formando novas identidades a partir dessa mistura; diante disso, devemos aceitar o que há de incontornavelmente tendencioso em nossas perspectivas: eu, por exemplo, sou incontornavelmente baiano, ou melhor, um soteropolitano cosmopolita, e num sentido radical não posso ser madrilenho ou berlinense; 2) a substituição do anseio de encontrar o que há de comum no diferente, a busca pela universalidade que subsume o diferente e nos iguala em algum nível mais geral, por uma atitude maleável em relação à nossa própria identidade. É como se devêssemos absorver a instabilidade, torná-la parte do que nós somos a ponto de que possamos sempre que necessário nos transformar em outros, mudar de pele, assimilar o que nos inspiraria medo, reconhecer no desconhecido o familiar, pois o espírito é apenas um. Tendo tudo isso em conta podemos ver na mestiçagem a ética de um mundo globalizado — não a pureza!, a mestiçagem, a mistura!

As identidades nacionais são espaços de acolhimento que, ao mesmo tempo, criam canais de escoamento de uma hostilidade que de outro modo talvez ficasse patologicamente represada (pois não aceitamos ser conscientemente cruéis e sádicos, não aceitamos nossa maldade e é preciso que tudo aconteça inconscientemente). No entanto, hoje nossa relação com os outros já não é tão distante, de sorte que o bálsamo nacionalista representa, acima de tudo, um obstáculo à compreensão de Outros cada vez mais próximos e, ainda assim, igualmente distantes e temidos, afigurados por meio de preconceitos (sem o olhar da justiça). Parece que não nos resta senão superar o nacionalismo como meio de olhar (e ver) os outros seres humanos com mais justiça e para nos tornar capazes de aprender com eles, de usar a proximidade que a globalização desavisada e forçosamente nos impôs como ferramenta para escapar do medo e da desconfiança que nos separa.

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