O que não podemos ver

O

David Foster Wallace começa Isto é água lembrando uma anedota:

Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário.
Ele os cumprimenta e diz:
— Bom dia, meninos. Como está a água?
Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:
— Água? Que diabo é isso?

David foster wallace, Ficando longe do fato de já estar meio longe de tudo

Wittgenstein escreveu incontáveis vezes em seus cadernos algo que está registrado assim nas Investigações Filosóficas:

O que nós fornecemos são na verdade observações sobre a história natural do homem; não são curiosidades, mas constatações das quais ninguém duvidou, e que escaparam à observação apenas porque estão sempre diante dos nossos olhos.

Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 415

Ou assim, em outro momento:

Os aspectos para nós mais importantes das coisas estão mascarados pela sua simplicidade e trivialidade. (Não podemos notá-los, — pois os temos sempre diante dos olhos.)

Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 129

E eles não são os únicos a falar disso, creio que há algo em Lacan sobre coisa parecida. É fascinante pensar que o mais fundamental pode ser justo o que nos escapa. A visibilidade é apenas um modo de representar uma relação que não é meramente perceptiva ou epistêmica, mas ética e lógico-psicológica. Isto é, não se trata apenas de um não perceber ou de um não notar algo que está oculto, a dificuldade vem justo do fato de que aquilo que não se percebe está por toda parte e não escondido. É como se o excesso de visibilidade — ou a presença constante — do que quer que seja pudesse misteriosamente ocultá-lo.

Quais são os efeitos de não percebermos o que está diante dos nossos olhos? Digo, efeitos éticos, lógicos e psicológicos? Este é um universo inteiro de investigação e reflexão.

Borges tem um precioso comentário em Deutsches Requiem em que parece dizer justo o contrário. Essa aparente oposição sempre me fascinou porque parece conter uma verdade irrefutável:

Yo había comprendido hace muchos años que no hay cosa en el mundo que no sea germen de un Infierno posible; un rostro, una palabra, una brújula, un aviso de cigarrillos, podrían enloquecer a una persona, si esta no lograra olvidarlos. ¿No estaría loco un hombre que continuamente se figurara el mapa de Hungría?

Jorge Luis Borges, Deutsches requiem

Aquilo que continuamente se faz presente não é o fiador da racionalidade, como pensava Wittgenstein, mas a própria semente da loucura, julgava Borges. E ele também tem razão, não é o que parece?

Estes são temas que orbitam ao redor do universo da cegueira normativa, este produto lógico de não sermos capazes de enxergar o lado de fora do nosso campo normativo.

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