Tolkien e a corrupção pelo poder

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Naqueles que o detém, o poder provoca quase inevitavelmente uma espécie de degeneração, algo que se pode chamar de corrupção pelo poder. A expressão me parece auto-explicativa, mas ainda assim admite, como qualquer expressão da linguagem, um novo modo de ser ilustrada, uma nova apresentação. A variedade de expressões de um conceito muito geral, como é o caso no conceito de poder, às vezes dificulta seu entendimento. Para ilustrar a generalidade de uma ideia usando símbolos — o fato de que ela parece mover-se entre coisas tão heterogêneas quanto os itens da enciclopédia chinesa — é invariavelmente melhor usar a literatura. E que melhor imagem do poder e do seu ônus que a história da corrupção de Sméagol?

Uma compilação que ilustra a transformação de Sméagol em Gollum no cinema.

O que é o poder? Em Senhor dos anéis, o símbolo do poder é o anel feito por Sauron para controlar os outros anéis do poder. O um anel é tão poderoso que em certa medida abriga a própria alma de Sauron e é como se contivesse sua presença. Como resultado, seus portadores sentem o peso de seu poder e pouco a pouco tem lugar uma transformação em suas personalidades, como se estivessem submetidos a outra vontade que não a do seu próprio ego. Tudo começou com Isildur, depois de ter conseguido arrancar o anel da mão de Sauron, ele hesita em lançá-lo no fogo de Mordor, decide tornar-se seu portador e convertê-lo em seu instrumento. Em pouco tempo Isildur está perdido e assim começa a história de dois dos seus mais importantes portadores, Gollum e Frodo Bolseiro.

A história dos portadores do anel é a história de sua contínua consumição pela presença maligna de Sauron, é como se o desejo do poder do anel gradativamente os convertesse em outros, submetendo sua vontade à vontade de Sauron. Mas só em Sméagol esse outro se materializa, por assim dizer, nele o outro torna-se Gollum. Sméagol era de uma raça que lembrava um hobbit, talvez fosse, diz o próprio Tolkien. Uma criatura pequena, ágil, mas que em nada se assemelha à detestável imagem de Gollum. O primeiro indicativo de sua corrupção é o assassinato de seu amigo Déagol, motivado pela disputa do anel. Daí em diante o anel se assenhora de Sméagol até torná-lo Gollum e, surpreendentemente, é Gollum quem se vangloria de possuir o anel. Sua psicologia se afunila a ponto de importar-se somente com o que concerne ao poder e o medo de perder seu precioso anel instala em sua cabeça a paranoia incompatível com laços de amizade e confiança.

É iluminador juntar a clara apresentação do poder em Tolkien às considerações de Étienne de la Boétie sobre o tirano e a tirania. Se uma persona aparentemente inofensiva como Sméagol pode transformar-se, pela influência corruptora do poder, na figura aviltante de Gollum, imagine então o que se pode dar no caso do sempre infame e pequeno Jair Bolsonaro. Bem, infelizmente já sabemos no que isso pode dar. As observações de La Boétie continuam precisas mesmo quase 500 anos depois de terem sido escritas:

Quando um rei se declara tirano, tudo quanto é mau, a escória do reino (não me refiro aos larápios e outros desorelhados que no conjunto da república não fazem bem ou mal algum), os que são ambiciosos e avarentos, todos se juntam à volta dele para apoiarem-no, para participarem do saque e serem outros tantos tiranetes logo abaixo do tirano.

Étienne de la boétie, discurso sobre a servidão voluntária

Difícil encontrar uma descrição mais apropriada de tudo que orbita ao redor de Bolsonaro. Assim também se representa a sedução do poder, sua capacidade atrativa, a atmosfera que se instaura em seu entorno e a constelação de interessados/interesseiros que mobiliza, todos eles figuras patéticas e já previamente corrompidos pelas promessas do poder.

Os que giram em volta do tirano e mendigam seus favores, não se poderão limitar a fazer o que ele diz, têm de pensar o que ele deseja e, muitas vezes, para ele se dar por satisfeito, têm de lhe adivinhar os pensamentos. Não basta que lhe obedeçam, têm de lhe fazer todas as vontades, têm de se matar de trabalhar nos negócios dele, de ter os gostos que ele tem, de renunciar à sua própria pessoa e de se despojar do que a natureza lhes deu.

Étienne de la boétie, discurso sobre a servidão voluntária

Isso não traduz muito bem tudo em seu governo, especialmente a atitude em relação ao Ministro da Saúde? Aliás, o Porta dos fundos fez um vídeo em que tudo isso se representa de maneira cômica. A exigência de uma obediência incondicional, a anulação da mais mínima pluralidade em nome de uma adesão cega a ideias notoriamente estúpidas, está tudo aí. Depois de um tempo, mesmo os estúpidos são capazes de enxergar a estupidez, e se não se afastam do governo (como é o caso dos militares) é porque lhes fascina o poder, porque são criaturas vis cujas almas degeneraram-se complemente até torná-los presenças tão ignóbeis quanto a do próprio Gollum.

Sobre os tiranos convém registrar uma última observação de La Boétie:

A verdade é que o tirano nunca é amado nem ama. A amizade é uma palavra sagrada, é uma coisa santa e só pode existir entre pessoas de bem, só se mantém quando há estima mútua; conserva-se não tanto pelos benefícios quanto por uma vida de bondade. O que dá ao amigo a certeza de contar com o amigo é o conhecimento que tem da sua integridade, a forma como corresponde à sua amizade, o seu bom feitio, a fé e a constância. Não cabe amizade onde há crueldade, onde há deslealdade, onde há injustiça. Quando os maus se reúnem, fazem-no para conspirar, não para travarem amizade. Apóiam-se uns aos outros, mas temem-se reciprocamente. Não são amigos, são cúmplices.

Étienne de la boétie, discurso sobre a servidão voluntária

O poderoso se encanta com o próprio poder e logo já não sabe medir o mundo senão com sua própria medida, por isso o poder e a tirania andam juntos. É fácil (auto) investir-se de legitimidade quando se crê patologicamente em seu próprio poder.

A corrupção pelo poder não é nada mais que a distorção de uma auto-imagem. Distorção não parece a palavra mais adequada, porque ela nos faz pensar que há um objeto real, verdadeiro, não ilusório, em relação a qual podemos determinar objetivamente o que é uma distorção. Não há nada disso! Distorção é apenas uma expressão usada pra fazer entender o sentido de uma ideia. Falando em termos genéricos, a distorção é a alteração da percepção de algo ou alguma coisa pela presença de outra coisa. Não é preciso ter um parâmetro original para determinar o que é verdadeiro e o que é falso, basta pensar a distorção como uma relação, como elo que envolve duas coisas (não importa determinar o que elas sejam para entender a ideia). Uma relação entre algo e outra coisa que o distorce. Você não precisa ter um exemplo, sei lá, da relação entre os gases e nossas percepções visuais, ou sonoras, para entender a relação funcional entre uma coisa e outra coisa que altera o modo como essa primeira é percebida. A distorção envolve sempre uma percepção. No caso do poder, a percepção de si mesmo. O poder distorce a imagem que cada um faz de si mesmo, corrompe essa imagem. Não há tendência mais comum, numa sociedade orientada ao indivíduo, do que as distorções da auto-imagem.

A participação no poder é um elemento indispensável na criação, na emancipação, no florescimento de todo o ser humano, como bem sabem todos aqueles que lutam por partilhar o poder, por fazer sentir que também participam do poder mesmo os mais vulneráveis e sujeitos à arbitrariedade. Aretha Franklin e Nina Simone não cansam de lembrar, de gritar com firmeza para que os jovens negros não se esqueçam que são young, gifted and black. All power to all the people, como enfatiza Spike Lee em BlacKkKlansman. O poder não é um demônio a ser evitado, ele atravessa também tudo que é bom e belo. Mas o ensimesmamento, o encerrar-se em si mesmo do poderoso torna-o insensível aos outros e a tudo que não seja espelho.

Xerxes é um bom exemplo de um certo modo de lidar com o poder. Um conquistador do mundo, se encontrasse um homem agourento, poderia matar a ele e ao seu filho — é o que conta Nietzsche. Matava pessoas como quem mata moscas, porque era muito importante pra ser preocupar com o destino de um sujeito qualquer. Como todo homem poderoso Xerxes acreditava que era o próprio poder, pensava a si mesmo como o portador do poder, ou melhor dizendo, agia como se fosse. Os jogos nos quais um poder simbólico se constitui são imensamente importantes, mas os poderes (simbólicos ou não) não se constituem nesses jogos. A fonte do poder não está no tempo, ou melhor, não está na cadeia causal (logo temporal), embora suas manifestações se expressem temporalmente (logo causalmente). Todo portador do poder, ganancioso, insatisfeito com seus limites, alterará a si mesmo de modo a conseguir conter o máximo possível de poder. Seu ideal, sua meta, era ter para si a totalidade do poder. Na falta dessa opção, lhe satisfaz o máximo de poder possível.

Não passa pela cabeça dos que anseiam todo o poder do mundo a possibilidade de uma relação diferente com o poder que não seja a de portador, possuidor, dono, senhor, mestre, etc. Cada portador tem um limite que o impede de experimentar todo o poder e que condiciona sua força. A totalidade do poder, no entanto, está integralmente disponível para quem não está interessado em portá-lo como um dono, para quem está livre da tentação da tirania e para os tem uma relação saudável com a arbitrariedade. Isso significa participar do poder e não meramente instrumentalizá-lo, canalizá-lo em favor de seus propósitos. Assim se manifesta nos encantamentos, na magia, na psicologia das massas e numa infinidade de outras ocasiões uma força amorfa e de magnitude incomensurável. O poder tem uma dimensão holística incompatível com as pretensões egocêntricas e com anseios de instrumentalização dos ambiciosos e enquanto estes insistirem em tentar abarcá-lo como um todo seguirão corrompendo-se como se estivessem possuídos por um demônio e já pudessem mais distingui-lo de si mesmos.

A ficção e a fantasia podem ensinar mais sobre o (dito) mundo real do que muitos propósitos analíticos e suas pretensões abstratas e universais.

2 comentários

  • Legal a associação Smeagol, poder e Bolsonaro. Pelo menos o pobre Smeagol ainda se refugiava nas cavernas das montanhas enquanto a Terra Média vivia relativa calmaria até o anel acordar e ter um novo portador.

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