Tecnologia sem política: a ilusão das soluções técnicas

T

Embora eu tenha escrito sobre os valores e a semente de perspectivas transformadoras que permeiam âmbitos tecnológicos, isso não significa que eu acredite, como suponho boa parte das pessoas (especialmente os cientistas), que as respostas aos nossos problemas centrais serão tecnológicas. Há uma contraparte, um fardo gerado pela crença na tecnologia que devemos abandonar antes de poder tornar concreta qualquer perspectiva transformativa.

hackerman
Elliot Alderson, e também Mr Robot

Vou abordar essa questão primeiro desde uma perspectiva ficcional e logo passo aos casos e ideias reais. A história principal de Mr Robot é um bom exemplo de como, distante de reflexões políticas, a crença na tecnologia pode produzir ações e visões de mundo perigosamente ilusórias. O profundo conhecimento da infraestrutura de rede — dos seus atalhos, vulnerabilidades e gargalos — é o que permite a Elliot Alderson ser a figura tão singular apresentada na série. A discussão sobre a viabilidade técnica de tudo que aparece ali é um caso à parte, Ars Technica tem (ou tinha) um podcast que durante as primeiras temporadas se dedicava a comentar aspectos técnicos da série, além de entrevistar produtores e technical advisers consultados por eles. Elliot era o tipo de sujeito capaz de entender como se dá a comunicação entre dispositivos eletrônicos que nós nem sequer sonhamos que dispõem de sistemas operacionais e as networks aos quais estão integrados. Com todo esse conhecimento, Elliot se dispôs a destruir a infraestrutura que ampara o sistema financeiro, o banco de dados de uma grande empresa de tecnologia que continha dados financeiros de milhões de americanos. Esse evento é o gancho que permite à série introduzir e abordar a tecnologia blockchain, através de uma criptomoeda (Ecoin) que ocupa o vazio deixado pelo colapso da estrutura do sistema bancário tradicional, de carteira (ledger), centralizado e dependente da manutenção e da segurança de suas bases de dados. Quando perguntado sobre o que buscava ao desencadear um processo tão destrutivo, Elliot responde: salvar o mundo! Não há nada de errado em querer salvar o mundo. Não sou como Thoreau que acreditava que era algo semelhante a um transtorno intestinal o que nos levava a querer reformar o mundo. No entanto, quando um propósito como esse não acompanha uma profunda reflexão política, uma reflexão sobre a constituição e a legitimidade das relações de poder, acaba sofrendo de uma superficialidade irreversível como essa que se reflete nas ações quase solitárias de Elliot.

No mundo real estamos expostos a riscos semelhantes, na verdade riscos talvez ainda mais insidiosos porque mascarados por processos institucionais perfeitamente aceitáveis e legítimos. Uma revolução sorrateira é um inimigo mais honesto e mais fácil de combater. Vejamos o caso de Jeff Bezos. Bezos também tem planos ambiciosos para o mundo, como se pode entender pela leitura dessa fantástica reportagem que a Piauí apresenta. No entanto, a transformação que ele planeja, diferente do que pretendia Elliot, não é uma revolução que faz colapsar a estrutura do sistema capitalista, eliminando assim suas injustiças. Em realidade, a transformação que ele propõe não é mais que uma consequência da aceitação incondicional do capitalismo, e isso é o que me parece bizarro em sua visão de mundo. Bezos não aceita a ideia de que devemos parar de crescer e sua perspectiva sobre o futuro é um desdobramento dessa recusa. Ou melhor, ele admite o limite físico que o planeta impõe à economia, mas isso lhe parece indesejável, porque não devemos parar de crescer:

Precisaremos parar de crescer, o que me parece um péssimo futuro.

Segundo Bezos, o limite do planeta não deve nos fazer refletir sobre nossas escolhas, devemos continuar abraçados cegamente à nossa forma de vida e ao crescimento exigido pelo único modelo econômico de que dispomos, o modelo crescimentista:

Comunicação — o cuidado da linguagem de Carlos Taibo.

Como se esse pensamento não fosse suficientemente alarmante, para contornar os limites da oferta de energia e de insumos, Bezos concebe uma solução nada convencional. Ele quer que abandonemos o planeta. Nesse sentido, sua ideia não é muito diferente dos delírios de Elon Musk. Eu não tenho dúvida da inteligência dos dois empresários, Musk é figura central no desenvolvimento de tecnologias as mais diversas ligadas a campos como inteligência artificial (e particularmente computer vision), batérias para armazenamento de energia limpa, computação quântica, exploração espacial entre outras. Entretanto, é patente nos dois a abissal e desconcertante ausência de uma visão política.

O cilindro de Gerard O’Neill representados no filme Interstellar

Os dois empresários me fazem lembrar um conto de Nathaniel Hawthorne chamado The Ambitious Guest. Mais que o amor pela humanidade e pela Terra, as ações deles parecem refletir o profundo desejo de imortalizar a si mesmos legando à humanidade as soluções técnicas que lhes parecem necessárias para resolver nossos problemas. Voltando a Bezos, para contornar o obstáculo imposto ao dogma do crescimento econômico sua ideia é nos levar para outro lugar, mais particularmente, para cilindros situados entre a terra e a lua, conforme a visão do professor Gerard O’Neill. Eu não sou realista, o que me estarrece nessa visão de mundo não é seu caráter abstrato e irreal, mas o fato de que ela não tem, por assim dizer, nenhum consideração ecológica. Ela não considera nossa condição de parte de um sistema ecológico, é como se a desagregação da imensa rede biológica à qual pertencemos não provocasse em nós nenhum impacto significativo, e como se a política não fosse um subconjunto (simbólico) dessa rede.

Eu não canso de repetir as palavras de Aristóteles: somos um animal político (zoon politikón). Conceber a ciência como um mero instrumento, neutro e imparcial, dá lugar às mais aberrantes tentativas de resolver dificuldades humanas, como se elas se tratassem não de questões essencialmente políticas, mas de dificuldades técnicas a serem superadas pelo avanço da ciência e pelo suficiente investimento em pesquisa científica. Não devemos reinventar nossa relação com nós mesmos e com o planeta, não!, basta investir mais dinheiro em ciência e em algum ponto seremos capazes — tecnicamente capazes, é bom enfatizar — de abandonar esse planeta e sua limitação. Quem duvida de que nossa capacidade técnica? Não eu. Agora, uma das premissas fundamentais da economia ecológica é: nenhum sistema físico pode reutilizar indefinidamente os mesmos materiais, ou, em outras palavras, não é fisicamente possível construir uma máquina de moto-pérpetuo, que continuamente reutilize (recicle) os mesmos materiais produzindo a mesma quantidade de energia. O crescimento econômico é a húbris capitalista. Não conheço a obra de Gerard O’Neill mas desde já duvido que ele tenha questionado e derrotado os obstáculos termodinâmicos impostos pela economia ecológica e estabelecido um novo marco teórico.

Honestamente, não é preciso ser físico nem economista para enxergar os sonhos de O’Neill e Bezos como sandices e sintomas da forma de vida débil e decadente que temos nutrido sob o véu da poderosa ciência, basta atentar para a complexidade irrepetível das relações naturais necessárias à nossa vida, como por exemplo a relação entre rios voadores e as longas raízes do Cerrado no Brasil (um dia ainda quero escrever sobre isso). A ciência é uma ferramenta poderosíssima, mas ela não é nada mais do que isso, um instrumento a serviço dos nossos valores e objetivos. Se não for capaz de nos fazer reajustar nossas rotas, nossos desejos e metas, o conhecimento se torna estéril, meramente condicionado a repetir antigos dogmas e secretamente articulado a ardis por meios dos quais antigas ideias continuam em vigor, parasitando nossa vitalidade e sobrevivendo às custas da própria vida no Planeta. Haverão sempre problemas e sempre novas soluções, a única coisa que perdurará será a necessidade de manter uma relação equilibrada com o nosso entorno — onde quer que estejamos. Se não conseguirmos alcançar esse equilíbrio ecológico na Terra, em outro ambiente iremos alcançá-lo? É difícil realizar na penúria o que não somos capazes de conseguir na abundância. Conservar a riqueza, a força, a exuberância e a Beleza da vida na Terra deveria ser um ponto de acordo entre todos nós, mas em realidade é apenas mais um obstáculo a ser superado pela máquina do crescimento econômico, pelo trator de complexas economias de Estados nacionais capitalistas.

Vamos lá, viver em cilindros no espaço para não abandonar o capitalismo. Deve ser o melhor pra nós. Não tem como dar errado!

Adicionar comentário

outras redes

Perfis em outras redes

Preferidos

A categoria Preferidos é especial, porque reúne os textos que eu mais gosto. É uma boa amostra! As outras categorias são mais especializadas e diversas.

Categorias

Arquivos