Eu escrevo na condição de uma pessoa completamente vendida ao capitalismo, como alguém doentiamente vaidoso, que aprecia sem reservas todas as experiências e serviços, os sabores e gostos, as texturas, os mimos, todas as delícias e os confortos do capitalismo: isso aqui é um insustentável!
Não importa como nós vamos resolver o “problema” de entregar às futuras gerações um mundo melhor, qualquer que seja a “solução” que proponhamos, ela passará inevitavelmente pela nossa capacidade de imaginar uma forma de vida orientada à suficiência e à sobriedade — e não à opulência, à abundância e à ostentação. A forma de vida capitalista é francamente incompatível com a nossa existência no planeta.
Precisamos mais do que nunca colocar a arte e o jogo (ludos) no centro da sociedade humana. Agora, precisamos mais da imaginação que do conhecimento.
Vou abordar essa questão primeiro desde uma perspectiva ficcional e logo passo aos casos e ideias reais. A história principal de Mr Robot é um bom exemplo de como, distante de reflexões políticas, a crença na tecnologia pode produzir ações e visões de mundo perigosamente ilusórias. O profundo conhecimento da infraestrutura de rede — dos seus atalhos, vulnerabilidades e gargalos — é o que permite a Elliot Alderson ser a figura tão singular apresentada na série. A discussão sobre a viabilidade técnica de tudo que aparece ali é um caso à parte, Ars Technica tem (ou tinha) um podcast que durante as primeiras temporadas se dedicava a comentar aspectos técnicos da série, além de entrevistar produtores e technical advisers consultados por eles. Elliot era o tipo de sujeito capaz de entender como se dá a comunicação entre dispositivos eletrônicos que nós nem sequer sonhamos que dispõem de sistemas operacionais e as networks aos quais estão integrados. Com todo esse conhecimento, Elliot se dispôs a destruir a infraestrutura que ampara o sistema financeiro, o banco de dados de uma grande empresa de tecnologia que continha dados financeiros de milhões de americanos. Esse evento é o gancho que permite à série introduzir e abordar a tecnologia blockchain, através de uma criptomoeda (Ecoin) que ocupa o vazio deixado pelo colapso da estrutura do sistema bancário tradicional, de carteira (ledger), centralizado e dependente da manutenção e da segurança de suas bases de dados. Quando perguntado sobre o que buscava ao desencadear um processo tão destrutivo, Elliot responde: salvar o mundo! Não há nada de errado em querer salvar o mundo. Não sou como Thoreau que acreditava que era algo semelhante a um transtorno intestinal o que nos levava a querer reformar o mundo. No entanto, quando um propósito como esse não acompanha uma profunda reflexão política, uma reflexão sobre a constituição e a legitimidade das relações de poder, acaba sofrendo de uma superficialidade irreversível como essa que se reflete nas ações quase solitárias de Elliot.
No mundo real estamos expostos a riscos semelhantes, na verdade riscos talvez ainda mais insidiosos porque mascarados por processos institucionais perfeitamente aceitáveis e legítimos. Uma revolução sorrateira é um inimigo mais honesto e mais fácil de combater. Vejamos o caso de Jeff Bezos. Bezos também tem planos ambiciosos para o mundo, como se pode entender pela leitura dessa fantástica reportagem que a Piauí apresenta. No entanto, a transformação que ele planeja, diferente do que pretendia Elliot, não é uma revolução que faz colapsar a estrutura do sistema capitalista, eliminando assim suas injustiças. Em realidade, a transformação que ele propõe não é mais que uma consequência da aceitação incondicional do capitalismo, e isso é o que me parece bizarro em sua visão de mundo. Bezos não aceita a ideia de que devemos parar de crescer e sua perspectiva sobre o futuro é um desdobramento dessa recusa. Ou melhor, ele admite o limite físico que o planeta impõe à economia, mas isso lhe parece indesejável, porque não devemos parar de crescer:
Precisaremos parar de crescer, o que me parece um péssimo futuro.
Segundo Bezos, o limite do planeta não deve nos fazer refletir sobre nossas escolhas, devemos continuar abraçados cegamente à nossa forma de vida e ao crescimento exigido pelo único modelo econômico de que dispomos, o modelo crescimentista:
Comunicação — o cuidado da linguagem de Carlos Taibo.
Como se esse pensamento não fosse suficientemente alarmante, para contornar os limites da oferta de energia e de insumos, Bezos concebe uma solução nada convencional. Ele quer que abandonemos o planeta. Nesse sentido, sua ideia não é muito diferente dos delírios de Elon Musk. Eu não tenho dúvida da inteligência dos dois empresários, Musk é figura central no desenvolvimento de tecnologias as mais diversas ligadas a campos como inteligência artificial (e particularmente computer vision), batérias para armazenamento de energia limpa, computação quântica, exploração espacial entre outras. Entretanto, é patente nos dois a abissal e desconcertante ausência de uma visão política.
O cilindro de Gerard O’Neill representados no filme Interstellar
Os dois empresários me fazem lembrar um conto de Nathaniel Hawthorne chamado The Ambitious Guest. Mais que o amor pela humanidade e pela Terra, as ações deles parecem refletir o profundo desejo de imortalizar a si mesmos legando à humanidade as soluções técnicas que lhes parecem necessárias para resolver nossos problemas. Voltando a Bezos, para contornar o obstáculo imposto ao dogma do crescimento econômico sua ideia é nos levar para outro lugar, mais particularmente, para cilindros situados entre a terra e a lua, conforme a visão do professor Gerard O’Neill. Eu não sou realista, o que me estarrece nessa visão de mundo não é seu caráter abstrato e irreal, mas o fato de que ela não tem, por assim dizer, nenhum consideração ecológica. Ela não considera nossa condição de parte de um sistema ecológico, é como se a desagregação da imensa rede biológica à qual pertencemos não provocasse em nós nenhum impacto significativo, e como se a política não fosse um subconjunto (simbólico) dessa rede.
Eu não canso de repetir as palavras de Aristóteles: somos um animal político (zoon politikón). Conceber a ciência como um mero instrumento, neutro e imparcial, dá lugar às mais aberrantes tentativas de resolver dificuldades humanas, como se elas se tratassem não de questões essencialmente políticas, mas de dificuldades técnicas a serem superadas pelo avanço da ciência e pelo suficiente investimento em pesquisa científica. Não devemos reinventar nossa relação com nós mesmos e com o planeta, não!, basta investir mais dinheiro em ciência e em algum ponto seremos capazes — tecnicamente capazes, é bom enfatizar — de abandonar esse planeta e sua limitação. Quem duvida de que nossa capacidade técnica? Não eu. Agora, uma das premissas fundamentais da economia ecológica é: nenhum sistema físico pode reutilizar indefinidamente os mesmos materiais, ou, em outras palavras, não é fisicamente possível construir uma máquina de moto-pérpetuo, que continuamente reutilize (recicle) os mesmos materiais produzindo a mesma quantidade de energia. O crescimento econômico é a húbris capitalista. Não conheço a obra de Gerard O’Neill mas desde já duvido que ele tenha questionado e derrotado os obstáculos termodinâmicos impostos pela economia ecológica e estabelecido um novo marco teórico.
Honestamente, não é preciso ser físico nem economista para enxergar os sonhos de O’Neill e Bezos como sandices e sintomas da forma de vida débil e decadente que temos nutrido sob o véu da poderosa ciência, basta atentar para a complexidade irrepetível das relações naturais necessárias à nossa vida, como por exemplo a relação entre rios voadores e as longas raízes do Cerrado no Brasil (um dia ainda quero escrever sobre isso). A ciência é uma ferramenta poderosíssima, mas ela não é nada mais do que isso, um instrumento a serviço dos nossos valores e objetivos. Se não for capaz de nos fazer reajustar nossas rotas, nossos desejos e metas, o conhecimento se torna estéril, meramente condicionado a repetir antigos dogmas e secretamente articulado a ardis por meios dos quais antigas ideias continuam em vigor, parasitando nossa vitalidade e sobrevivendo às custas da própria vida no Planeta. Haverão sempre problemas e sempre novas soluções, a única coisa que perdurará será a necessidade de manter uma relação equilibrada com o nosso entorno — onde quer que estejamos. Se não conseguirmos alcançar esse equilíbrio ecológico na Terra, em outro ambiente iremos alcançá-lo? É difícil realizar na penúria o que não somos capazes de conseguir na abundância. Conservar a riqueza, a força, a exuberância e a Beleza da vida na Terra deveria ser um ponto de acordo entre todos nós, mas em realidade é apenas mais um obstáculo a ser superado pela máquina do crescimento econômico, pelo trator de complexas economias de Estados nacionais capitalistas.
Vamos lá, viver em cilindros no espaço para não abandonar o capitalismo. Deve ser o melhor pra nós. Não tem como dar errado!