A presença humana

Júpiter, uma linda e tormentosa bola de gás.

Somos mais de 7 bilhões de seres humanos no planeta e vivemos quase todos numa economia globalizada cujo equilíbrio depende de fatores distantes não apenas do nosso olhar — da mesa ou da cadeira onde comemos nossas refeições —, mas também de nossos focos de atenção. Nós afetamos o planeta de um modo inédito. <fiction> Se um extraterrestre passasse pela Terra e do o espaço a contemplasse por mais de 500 anos, ele observaria uma mudança tão radical e violenta quanto as revoluções causadas na superfície de Júpiter pelas incontáveis tormentas que o constituem. Seres com outra relação com o tempo veriam nosso impacto como num time-lapse.

An animation showing deforestation in the Amazon
Time-lapse: histórico do desmatamento em Rondônia registrado no EarthTime. É como se fossemos uma doença de pele, é vergonhoso

Os extraterrestres talvez nem se dessem conta de que as mudanças são causadas por indivíduos, eles podem não fazer essa distinção. Embora tenhamos ferramentas de individualização, nem por isso pensamos os fenômenos gasosos em termos individuais, é a dinâmica de interação desses indivíduos (átomos, moléculas, invente seu sistema de individualização) o que nos interessa e o que provoca os efeitos com os quais estamos preocupados. (Podemos decompô-los em partes individuais ainda menores até chegar às partes subatômicas [menores unidades e objetos de individualização], então o sonho de determinação estará ainda mais longe e só a estatística poderá nos ajudar). Mas nós, ao contrário, somos muito individuais e tudo parece dizer respeito a nossa individualidade, nunca ao pertencimento a uma rede mais ampla </fiction>.

Não somos gases numa dinâmica de expansão, somos seres vivos, interferindo, agindo sobre o planeta. Agindo sobre ele. Agindo sobre o planeta. Interrompendo processos, manipulando cadeias causais, nem o mundo subatômico está livre do escrutínio e da intervenção humanas. A presença humana afeta todos os níveis e atua em todos os sistemas físicos. Não é preciso ser gênio para imaginar que não temos em conta o efeito sobre muitos dos sistemas que influenciamos. Por exemplo, não se sabe ao certo a concentração de biomassa formada pelos seres que vivem na zona crepuscular, nos oceanos. Qual é o impacto da acidificação dos oceanos, ou da presença nociva do plástico nesses sistemas? E qual é o impacto desse sistema no nosso próprio, que parecemos presumir que está separado dos outros sistemas naturais*? Nós sabemos o impacto da vida das abelhas em nossa própria vida — dos insetos em geral.

Twilight Zone: las amenazas de la última frontera de la humanidad en la Tierra

Ação e reação, que fique claro! Não é vingança (intencionalidade), é a mera reação de sistemas muito mais complexos que nossa capacidade de produzir sentido. Competência sem compreensão, diria Daniel Dennett. Competência para nos destruir, para destruir o anseio de previsibilidade que está por trás da busca por instituições, do Direito, e de todas as inúmeras partes que compõem o que poderíamos chamar de tecnologias da estabilidade (Tecnosfera).

A ficção científica apresenta diferentes modos de conceber nossa relação com o planeta. E para conceber melhor essa relação precisamos abandoná-lo e nos mover entre as estrelas, entre as galáxias. Wall-E talvez seja o filme que eu mais gosto nesse gênero, por ser o mais, digamos, realista. Seres humanos brancos e sedentários vivem num ambiente que em tudo se assemelha a um shopping center, nada pode ser mais honesto com as ilusões da nossa civilização. Ou um shopping center ou um daqueles cruzeiros sobre os quais David Foster Wallace escreveu. Um filme honesto e ainda assim gentil.

Recentemente eu gostei muito de High Life, que fala sobre a humanidade em ambientes espaciais, numa nave que viaja sem rumo pelo espaço. Fala também da esperança nos seres que virão e da nossa relação com o meio natural através das plantas, do solo, da terra. The Martian trata o tema das plantas sob a perspectiva utilitarista e pragmática dos engenheiros (lembro da Maria da Conceição Tavares falando sobre os EUA: um país de engenheiros). Repete em novas cores um episódio da tara survivalist da cultura americana, do seu sofisticado (porque científico) meio de elogiar o trabalho e a indústria (or you can get to work!). Isso de que There will be blood trata em primeiro plano. Não me levem a mal, o filme é bom. E boa parte do seu charme consiste numa generosa, embora secundária, mão de verniz de psicologia, vem do cuidado em mostrar os efeitos provocados pela falta do convívio humano, a importância da saúde mental para a atividade eficiente do corpo (da música, nesse contexto, como forma de memória e pertencimento). São tantos os filmes que apresentam ambientes espaciais e eu o menos indicado para resgatá-los.

Mas perguntemos aos astronautas quais os efeitos do espaço em seus corpos e mentes. Perguntemos àqueles que efetivamente já estiveram no espaço sobre o cheiro do espaço, sobre o que lhes parece aquele ambiente. Há um documento de uma página no site da NASA sobre atrofia muscular. E uma infinidade de outras informações. A nossa relação com o espaço (e com a Terra) na ficção científica está num grau de paridade realística semelhante à representação do mar na Tenda do Biquini, de Bob Esponja. Nunca nos ocorre pensar não apenas nos efeitos sobre o corpo — efeitos quase imediatos, pois depois de meros 11 dias no espaço os astronautas perdem até 20% de massa muscular — mas, sobretudo, nas consequências na nossa descendência. Os efeitos evolutivos.

A pressão evolutiva implicada numa mudança tão radical nos degeneraria num período irrisório de uma ou duas gerações, quando muito. Considerando apenas o distanciamento do sol, o perder nosso lugar na praia, já serie suficiente para provocar efeitos colossais. O impacto ósseo da falta de vitamina D, sintetizada principalmente pela exposição aos raios solares, nos tornaria criaturas de vidro, sem tônus muscular nem rigidez óssea. Não há substitutos para tudo que a Terra nos provê.

A exuberância da Terra é algo singular, não importa para onde nosso olhar se dirija — e nosso olhar é capaz de se estender muito longe, no espaço e no tempo — nada se compara, não encontramos nenhum lugar nem minimamente parecido. E ainda assim, a alienação da vida urbana nos acostuma ao pensamento de que somos independentes, e poderíamos fabricar nosso próprio ambiente, nossa própria biosfera.

Não há trailers legendados para o documentário Spaceship Earth, sobre a tentativa de criar uma biosfera artificial.

Todos os mimos, confortos e distrações da vida urbana excluem do nosso feixe de considerações o pertencimento à rede de vida do planeta, e nos enchem de uma arrogância cega e doentia, e de uma indolência diante dos efeitos nocivos da nossa presença. O fascínio dogmático pela complexidade.

A ecologia é o campo de estudo, teórico e transdisciplinar, que se impõe como um eixo inevitável para todos os que vivem e pesquisam hoje. No entanto, a ecologia não é nada mais do que um modo ainda canhestro e incipiente da ciência abordar uma questão ética mais profunda (a chave aqui é a oposição entre teoria e prática, determinação normativa e agência), a saber, como agir e como se organizar politicamente diante da inevitável constatação de que somos parte de um grande organismo. Nós até hoje — 2021, que fique claro —, não construímos nada que manifestasse que nos interessa de fato viver como se fossemos parte desse planeta. Agimos como se fossemos melhores, e como se o resto (seres e coisas indistintamente) estivesse a nosso serviço. As joias da nossa civilização, as cidades, não tem senão uma relação decorativa com a natureza. Por mais bonitos que sejam os parques urbanos — e eu sou um dos seus admiradores —, eles são apenas simulacros da natureza, não a integram como parte essencial, por melhor que seja o projeto urbano da cidade. (Quem desejaria outra coisa, aliás? A cidade é feita para não ser natureza, nela nós não queremos nem mesmo pisar na merda de outros seres.) O Rio de Janeiro deve ser lindo, sem dúvida!, mas é um caso especial. (O Rio de Janeiro está para as cidades como a Terra está para todos os outros planetas do universo). A cidade é asséptica, mesmo quando é imunda (Louis CK falando da imundice das ruas de Nova York). A cidade é cultura, a natureza ali é decoração e simulacro (não apenas os zoológicos). Ela tem seu próprio lixo, seu lixo não é mera decomposição, matéria morta ou queimada. Seu lixo é químico, poluente, mortal, mortífero.

Parques: simulacros da natureza. O belíssimo Parque do Retiro, em Madrid.

Não somos independentes dos outros seres sacrificados para manter e melhorar nossa forma de vida; estamos ligados à água que não vemos, ao ambiente em que circulamos como se ele não existisse. A ecologia como campo de estudo é sumamente importante e interessante, mas é a ecologia como ética é o que me interessa. Mas dá pra falar da ecologia como saber sem falar da ecologia como ética? Claro que dá, é o que temos feito até agora. Mesmo a ética nós ensinamos como técnica, não como ética [normatividade das leis morais versus prudência, a pragmática e a ética aristotélica]. É o que nos resta porque, no final das contas, não dá pra ensinar ética [não se pode ensinar a julgar: Aristóteles e Wittgenstein]. Daí a normatividade ganhou uma força enorme, e parece que não sobrou nada além disso (a filosofia moderna colocou a lógica e a matemática num pedestal e sedimentou o caminho para ciência contemporânea). Parece que tudo são leis (normas) e dados. Se para falar em ecologia precisamos então falar de ética, nós estamos realmente fodidos! Mas como transformar nossa relação com o mundo de modo que não sejamos meros (controladores && manipuladores) do mundo, mas também parte dele? Quero dizer, como fazer isso sem uma ética, sem valores que pareçam dirigir a ação (mas que são a própria ação) e o pensamento? Como transformar nossa relação com o planeta sem a reflexão implicada em pensar a ação e o pensamento? É claro que essa ética precisa do conhecimento, Aristóteles jamais negou o papel do conhecimento, mas o saber agir não se reduz a um saber. É um saber de outra ordem, ou um saber que não se sabe, mas que se manifesta no agir.

O efeito da nossa presença no planeta concerne a todos, não apenas porque não temos para onde fugir, mas também porque, dado tudo que conhecemos do universo, é sandice desejar algo diferente da exuberância à qual pertencemos na Terra. É nas cidades onde nasce e viceja esse sentimento antiecológico, esse independentismo biológico que alimenta o sonho de ser capaz de criar nossa própria biosfera. É na cidade onde a presença humana precisa ser reinventada como parte da natureza, é aí onde começa a questão ética, na polis.

* Porque pertencemos à Cultura (Kultur, isso que é diferente da natureza), uma cultura capaz de considerar a possibilidade de criar sua própria biosfera. A arrogância humana frente à Natureza.


Mapa contra o capitalismo

Criei esse mapa para apresentar uma objeção ao capitalismo de modo esquemático e até deliberadamente arbitrário. O mapa tem relação com essa discussão sobre nossa presença, sobre a ética da coexistência com o tecido da vida e sobre a nossa reintegração ao mundo.

Mapa contra o capitalismo. Torneiras e instrumentos, voltando ao mundo. O urbano como antiecológico: capitalismo e serviços. Conforto e comodidade. O paraíso urbano (subjetividade e hedonismo)! Impessoalidade e privacidade, como conviver com os outros. Falar com estranhos, ser estranho.

Somos animais!

Somos animais, não há muito mais o que dizer. Somos macacos. Macacos metidos a besta, é verdade, mas ainda assim, macacos. Dentre as muitas coisas que se pode amar na internet está uma oferta quase inesgotável de conhecimento. Por exemplo, aqui você pode assistir sem dificuldades a uma playlist com 12 vídeos nos quais o paleontólogo Walter Neves explica um pouco sobre a macroevolução humana. Não é nada demais que uma Universidade publique vídeos de seus melhores pesquisadores no seu canal de Youtube. Em certo sentido isso é até banal, mas é uma banalidade que está entre nós há muito, muito pouco tempo. No início dos anos 80 ninguém tinha acesso a esse conhecimento que hoje a gente pode se dar ao luxo de considerar trivial.

Outra coisa, a formação de Walter Neves, diversificada como convém à sua área de estudo, só se sedimenta ao longo de muitas décadas de investigação. E ele se esforça para traduzir a complexidade de suas pesquisas em termos acessíveis até mesmo pra pessoas como eu, que não tem formação adequada para entender certos aspectos da biologia. Lembro claramente do gancho que me fisgou ao pensamento de Richard Feynman, foi a ideia de que quem não sabe explicar algo em termos simples e acessíveis não compreende verdadeiramente sobre o que fala. Por isso, eu louvo os que se empenham no uso da linguagem e isso significa um compromisso com a comunicação, mas também um compromisso com algo mais do que comunicação. São louváveis todos os que acreditam na inteligência das outras pessoas.

Mas antes que eu me perca falando de outras coisas, é melhor voltar ao que eu queria dizer. Somos animais. Macacos. Nas cidades deste mundo civilizado, que redimirá toda a humanidade de sua ignorância, o macaco virou símbolo do primitivo. Quando os civilizados querem ofender os Outros (essa categoria), eles lançam bananas contra atletas em partidas pelas quais pagam os olhos da cara. Ninguém deveria prestar muita atenção ao “pensamento” desses civilizados, aí não há nada de bom. Prestemos atenção aos pressupostos deste pensamento. Um ideal de pureza está presente nessa visão de mundo — e também uma identidade. O sonho dos que querem separar os homens entre si e manter a marra de uma identidade humana afastada da identidade animal é o sonho da pureza. O anseio de pureza quer incessantemente separar mais, segregar mais, formar grupos com membros cada vez mais iguais, mais puros. A pureza é o certificado da igualdade dos que se creem superiores. E este sonho é também o sonho de provar a objetividade de uma distinção conceitual; de justificar uma separação conceitual por meio da qual se pode marcar o que está dentro ou fora de uma extensão, de uma classe — sem vagueza. Por isso a eugenia, a frenologia, todas essas tentativas de provar cientificamente uma superioridade racial. Geralmente seus defensores não sabem do que falam quando sustentam a possibilidade de justificação, porque não entendem o complexo papel da justificação no pensamento científico nem os muitos problemas que ela enfrenta. A ciência está inteiramente contaminada pelas noções matemáticas de demonstração e prova, e isso alimenta as fantasias de justificação tipicamente científicas. Ainda que na matemática essas ideias tenham um uso tão preciso que não pode ser transposto a nenhuma disciplina das ciências naturais sem enormes ressalvas que não costumam ser sequer conhecidas, as fantasias crescem como erva daninha. Ciência é política e poder. E é porque muita gente acredita dogmaticamente nessa sandice que há tantos esforços para provar quadros de valores (como se fatos e valores fossem a mesma coisa), para justificar tais valores. Como se não tivéssemos que escolhê-los e como se eles fossem a expressão de uma necessidade natural (Naturnotwendigkeit, a expressão é do velho Wittgenstein) que todos lutam por descobrir usando a ciência. O que é uma necessidade natural? A ciência caminha para um realismo porque ela só consegue conceber a natureza como realidade a ser espelhada na linguagem. Não consegue conceber um mundo apresentado, pois tem fixação pelo modelo de representação. E por essa realidade anseiam tantos bons quanto maus cientistas*.

Mas isso não importa agora! Longe das fantasias de pureza dos que creem cegamente na definição, no conceito e na determinação, eu acredito na miscigenação, na mestiçagem, na antipureza. Não me ilude nenhum dos jogos em que se tenta provar e extrair consequência da pureza do pertencimento a classes superiores, nenhuma expressão desses jogos. Em minha cabeça, essa desconfiança prevalece em razão da presença constante da Filosofia e da Antropologia. Ela se deve à crença na antropologia e na etnologia, como únicas formas de reconhecer e identificar a objetividade sem se enfeitiçar (e se corromper) pelo subliminar poder político do realismo.

Se usarmos uma abordagem etnológica isso significa que estamos dizendo que a filosofia é uma etnologia? Não, isso só quer dizer que estamos tomando um certo distanciamento a fim de ver as coisas mais objetivamente.

Wittgenstein, cultura e valor

A perspectiva antropológica lança um olhar muito diferente à dita realidade. Não há pretensão de esgotar. Se a gente olha assim a experiência da mistura no Brasil, nem é preciso o background biológico de uma perspectiva que vê a variação genética como melhoramento, basta constatar os fatos da nossa história. Por exemplo, sem discutir o quanto de influência cabe a cada matriz formadora — sem discutir a importância da tradição filarmônica europeia na formação do chorinho, da bossa nova e, em certa medida, até do samba — já dá para constatar que em nossa cultura se misturaram elementos bem diversos para formar algo que é, no mínimo, muito interessante. E, no máximo, divino. Quero dizer, como força criativa. E tudo isso apesar da Madame!

O supremo Altamiro Carrilho executando o divino Pixinguinha

A essa altura, talvez seja uma batalha perdida tentar explicitar e nos reconectar ao tema dos animais. Eu sempre espero que as pessoas vejam (e entendam) para onde estou indo, mas é difícil mostrar as transições sem dizer muito, sem dizer demais. Nossos conceitos (a linguagem) tem um papel formador tão fundamental na constituição das lentes que usamos para ver o mundo/realidade que a briga para justificar o conceito de ser humano, ser animal, ser inteligente, ganha uma importância absolutamente insuspeita. E uma dimensão ética igualmente impactante. E é fácil notar, embora não seja simples explicar, como essa pretensa superioridade, que se observa na própria relação entre homens, contamina também nossa relação com os outros animais, com a natureza. (Não é preciso uma pandemia para que possamos notar esse efeito, embora nem mesmo ela seja capaz de nos fazer ver o que não queremos.) Diane Fossey, Jane Goodall, Pierre Clastres, Peter Winch, Lévi-Strauss e tantos outros se empenharam em nos mostrar o impacto da húbris humana.

Começou-se por cortar o homem da natureza e constituí-lo como um reino supremo. Supunha-se apagar desse modo seu caráter mais irrecusável, qual seja, ele é primeiro um ser vivo. E permanecendo cegos a essa propriedade comum, deixou-se o campo livre para todos os abusos. Nunca antes do termo destes últimos quatro séculos de sua história, o homem ocidental percebeu tão bem que, ao arrogar-se o direito de separar radicalmente a humanidade da animalidade, concedendo a uma tudo o que tirava da outra, abria um ciclo maldito. E que a mesma fronteira, constantemente empurrada, serviria para separar homens de outros homens, e reivindicar em prol de minorias cada vez mais restritas o privilégio de um humanismo, corrompido de nascença por ter feito do amor-próprio seu princípio e noção.

Pierre Lévi-strauss. “Jean-Jacques Rousseau, fundador das ciências do homem”. Antropologia Estrutural dois

A antropologia é a mais importante das ciências. É ainda uma aposta no logos, mas é de um tipo diferente. É meio vergonhoso — é verdade — ter que colocar as coisas dessa forma. Como se a(s) lógica(s), a matemática, a física, as rainhas do nosso coração científico, fossem desimportantes. Não é o caso, mas é também o caso. É e não é — e não digo mais. Meu apreço por elas é enorme, mas o que há de mais fraco na nossa alma se apossou do poder dessas ideias para nos escravizar ao medo e à vontade de controle que nos afastam de tudo e de todos. Não vejo como essa ânsia tecnológica nos encaminha de volta aos outros e ao reino ecológico. Por isso me sinto inclinado a lembrar de Lévi-Strauss e de todos os que fazem questão de sublinhar, somos animais. Somos macacos. Não podemos esquecer disso, de outro modo não aprenderemos a superar o desafio posto por uma sociedade dogmaticamente aferrada ao crescimento econômico ilimitado, num mundo de recursos naturais limitados. Sem respeitar os animais, sem aprender com eles bem como com as sociedades arcaicas, as sociedades tradicionais — não primitivas! —, não há como imaginar uma saída dessa cilada em que nos metemos.


O colapso do projeto de encontrar uma forma lógica universal — uma mesma forma de julgar e pensar — põe fim ao sonho da pureza no campo teórico, transforma a questão da formalidade numa mera questão técnica a ser explorada pelas diferentes lógicas, além de consolidar a pragmática e todas as vias que conduzem à antropologia, bem como à primatologia (como vias genéticas não meramente lógico-normativas). Mas há ainda outra perspectiva pela qual poderíamos encarar todo esse cenário e tenho muita vontade de um dia, quem sabe, abordar essa questão em vídeo. Trata-se de uma mudança de paradigma ainda não inteiramente consolidada e levada à cabo por Alan Turing. Quando Turing quase inocentemente, já na primeira página do seu Computing machinery and Inteligence, dispensa a definição e abraça a imitação (o comportamento) como critério de inteligência, ele reconstrói a realidade em outros termos. Essa questão, no entanto, é um universo à parte.

* A justificação é um dos temas mais interessantes discutidos por Karl Popper em sua Lógica da descoberta científica, especialmente o chamado trilema de Fries. Aqui está o pedaço do livro em que a questão é mais profundamente considerada.

Tecnologia sem política: a ilusão das soluções técnicas

Embora eu tenha escrito sobre os valores e a semente de perspectivas transformadoras que permeiam âmbitos tecnológicos, isso não significa que eu acredite, como suponho boa parte das pessoas (especialmente os cientistas), que as respostas aos nossos problemas centrais serão tecnológicas. Há uma contraparte, um fardo gerado pela crença na tecnologia que devemos abandonar antes de poder tornar concreta qualquer perspectiva transformativa.

Elliot Alderson, e também Mr Robot

Vou abordar essa questão primeiro desde uma perspectiva ficcional e logo passo aos casos e ideias reais. A história principal de Mr Robot é um bom exemplo de como, distante de reflexões políticas, a crença na tecnologia pode produzir ações e visões de mundo perigosamente ilusórias. O profundo conhecimento da infraestrutura de rede — dos seus atalhos, vulnerabilidades e gargalos — é o que permite a Elliot Alderson ser a figura tão singular apresentada na série. A discussão sobre a viabilidade técnica de tudo que aparece ali é um caso à parte, Ars Technica tem (ou tinha) um podcast que durante as primeiras temporadas se dedicava a comentar aspectos técnicos da série, além de entrevistar produtores e technical advisers consultados por eles. Elliot era o tipo de sujeito capaz de entender como se dá a comunicação entre dispositivos eletrônicos que nós nem sequer sonhamos que dispõem de sistemas operacionais e as networks aos quais estão integrados. Com todo esse conhecimento, Elliot se dispôs a destruir a infraestrutura que ampara o sistema financeiro, o banco de dados de uma grande empresa de tecnologia que continha dados financeiros de milhões de americanos. Esse evento é o gancho que permite à série introduzir e abordar a tecnologia blockchain, através de uma criptomoeda (Ecoin) que ocupa o vazio deixado pelo colapso da estrutura do sistema bancário tradicional, de carteira (ledger), centralizado e dependente da manutenção e da segurança de suas bases de dados. Quando perguntado sobre o que buscava ao desencadear um processo tão destrutivo, Elliot responde: salvar o mundo! Não há nada de errado em querer salvar o mundo. Não sou como Thoreau que acreditava que era algo semelhante a um transtorno intestinal o que nos levava a querer reformar o mundo. No entanto, quando um propósito como esse não acompanha uma profunda reflexão política, uma reflexão sobre a constituição e a legitimidade das relações de poder, acaba sofrendo de uma superficialidade irreversível como essa que se reflete nas ações quase solitárias de Elliot.

No mundo real estamos expostos a riscos semelhantes, na verdade riscos talvez ainda mais insidiosos porque mascarados por processos institucionais perfeitamente aceitáveis e legítimos. Uma revolução sorrateira é um inimigo mais honesto e mais fácil de combater. Vejamos o caso de Jeff Bezos. Bezos também tem planos ambiciosos para o mundo, como se pode entender pela leitura dessa fantástica reportagem que a Piauí apresenta. No entanto, a transformação que ele planeja, diferente do que pretendia Elliot, não é uma revolução que faz colapsar a estrutura do sistema capitalista, eliminando assim suas injustiças. Em realidade, a transformação que ele propõe não é mais que uma consequência da aceitação incondicional do capitalismo, e isso é o que me parece bizarro em sua visão de mundo. Bezos não aceita a ideia de que devemos parar de crescer e sua perspectiva sobre o futuro é um desdobramento dessa recusa. Ou melhor, ele admite o limite físico que o planeta impõe à economia, mas isso lhe parece indesejável, porque não devemos parar de crescer:

Precisaremos parar de crescer, o que me parece um péssimo futuro.

Segundo Bezos, o limite do planeta não deve nos fazer refletir sobre nossas escolhas, devemos continuar abraçados cegamente à nossa forma de vida e ao crescimento exigido pelo único modelo econômico de que dispomos, o modelo crescimentista:

Comunicação — o cuidado da linguagem de Carlos Taibo.

Como se esse pensamento não fosse suficientemente alarmante, para contornar os limites da oferta de energia e de insumos, Bezos concebe uma solução nada convencional. Ele quer que abandonemos o planeta. Nesse sentido, sua ideia não é muito diferente dos delírios de Elon Musk. Eu não tenho dúvida da inteligência dos dois empresários, Musk é figura central no desenvolvimento de tecnologias as mais diversas ligadas a campos como inteligência artificial (e particularmente computer vision), batérias para armazenamento de energia limpa, computação quântica, exploração espacial entre outras. Entretanto, é patente nos dois a abissal e desconcertante ausência de uma visão política.

O cilindro de Gerard O’Neill representados no filme Interstellar

Os dois empresários me fazem lembrar um conto de Nathaniel Hawthorne chamado The Ambitious Guest. Mais que o amor pela humanidade e pela Terra, as ações deles parecem refletir o profundo desejo de imortalizar a si mesmos legando à humanidade as soluções técnicas que lhes parecem necessárias para resolver nossos problemas. Voltando a Bezos, para contornar o obstáculo imposto ao dogma do crescimento econômico sua ideia é nos levar para outro lugar, mais particularmente, para cilindros situados entre a terra e a lua, conforme a visão do professor Gerard O’Neill. Eu não sou realista, o que me estarrece nessa visão de mundo não é seu caráter abstrato e irreal, mas o fato de que ela não tem, por assim dizer, nenhum consideração ecológica. Ela não considera nossa condição de parte de um sistema ecológico, é como se a desagregação da imensa rede biológica à qual pertencemos não provocasse em nós nenhum impacto significativo, e como se a política não fosse um subconjunto (simbólico) dessa rede.

Eu não canso de repetir as palavras de Aristóteles: somos um animal político (zoon politikón). Conceber a ciência como um mero instrumento, neutro e imparcial, dá lugar às mais aberrantes tentativas de resolver dificuldades humanas, como se elas se tratassem não de questões essencialmente políticas, mas de dificuldades técnicas a serem superadas pelo avanço da ciência e pelo suficiente investimento em pesquisa científica. Não devemos reinventar nossa relação com nós mesmos e com o planeta, não!, basta investir mais dinheiro em ciência e em algum ponto seremos capazes — tecnicamente capazes, é bom enfatizar — de abandonar esse planeta e sua limitação. Quem duvida de que nossa capacidade técnica? Não eu. Agora, uma das premissas fundamentais da economia ecológica é: nenhum sistema físico pode reutilizar indefinidamente os mesmos materiais, ou, em outras palavras, não é fisicamente possível construir uma máquina de moto-pérpetuo, que continuamente reutilize (recicle) os mesmos materiais produzindo a mesma quantidade de energia. O crescimento econômico é a húbris capitalista. Não conheço a obra de Gerard O’Neill mas desde já duvido que ele tenha questionado e derrotado os obstáculos termodinâmicos impostos pela economia ecológica e estabelecido um novo marco teórico.

Honestamente, não é preciso ser físico nem economista para enxergar os sonhos de O’Neill e Bezos como sandices e sintomas da forma de vida débil e decadente que temos nutrido sob o véu da poderosa ciência, basta atentar para a complexidade irrepetível das relações naturais necessárias à nossa vida, como por exemplo a relação entre rios voadores e as longas raízes do Cerrado no Brasil (um dia ainda quero escrever sobre isso). A ciência é uma ferramenta poderosíssima, mas ela não é nada mais do que isso, um instrumento a serviço dos nossos valores e objetivos. Se não for capaz de nos fazer reajustar nossas rotas, nossos desejos e metas, o conhecimento se torna estéril, meramente condicionado a repetir antigos dogmas e secretamente articulado a ardis por meios dos quais antigas ideias continuam em vigor, parasitando nossa vitalidade e sobrevivendo às custas da própria vida no Planeta. Haverão sempre problemas e sempre novas soluções, a única coisa que perdurará será a necessidade de manter uma relação equilibrada com o nosso entorno — onde quer que estejamos. Se não conseguirmos alcançar esse equilíbrio ecológico na Terra, em outro ambiente iremos alcançá-lo? É difícil realizar na penúria o que não somos capazes de conseguir na abundância. Conservar a riqueza, a força, a exuberância e a Beleza da vida na Terra deveria ser um ponto de acordo entre todos nós, mas em realidade é apenas mais um obstáculo a ser superado pela máquina do crescimento econômico, pelo trator de complexas economias de Estados nacionais capitalistas.

Vamos lá, viver em cilindros no espaço para não abandonar o capitalismo. Deve ser o melhor pra nós. Não tem como dar errado!

A doença de um tempo

A forma de vida capitalista

Pra variar, não tenho conseguido cumprir a promessa de escrever mais por aqui. Pelo menos tenho conseguido escrever a tese. E, bem, na falta de algum assunto mais desenvolvido, achei mais um fragmento de Wittgenstein que convém comentar.

Há tempos me parece que o capitalismo não é mais um modelo econômico, mas uma forma de vida. O capitalismo apropriou-se de todos os extratos da vida, estendendo universalmente o domínio da concorrência, impondo a lógica do empreendedorismo como modelo subjetivo e intersubjetivo, enfim, colonizando todos os espaços possíveis e afirmando-se como eixo central e único modelo da experiência humana. Assim sendo, qualquer esforço de mudança requer armas apropriadas, não meramente a alteração do modelo econômico e produtivo, mas a transformação total de nossa forma de vida. E alguma medida é isso que está insinuado nesse comentário de Wittgenstein que, além do mais, sugere um exemplo fictício apropriado e profético.

A enfermidade de um tempo é curada pela alteração no modo de vida dos seres humanos, foi possível obter a cura para a enfermidade dos problemas filosóficos apenas por meio de um modo transformado de pensamento e de vida, não mediante o remédio inventado por um indivíduo.
Pense no uso do carro a motor produzindo e estimulando certas doenças, e a humanidade sendo assolada por tal doença até que, por uma causa ou outra, como resultado de algum desenvolvimento ou outro, abandone o hábito de dirigir.
— Observações sobre os fundamentos da matemática, i, § 23

Vamos torcer para que essa causa não seja o colapso.

Dois argumentos contra Belo Monte

Para mim, de todas as críticas ao projeto dois pontos são decisivos. O primeiro nem mesmo toca o mérito das questões costumeiramente discutidas entre aqueles que o debatem. O segundo recua até premissas mais fundamentais, neutralizando boa parte das alegações trazidas em apoio antes mesmo que se ergam. A composição entre eles é o fundamento da minha objeção à construção de Belo Monte. Vamos então aos aspectos que devem ser notados:

A maneira como o governo tem conduzido o projeto

Há disenso e questões discutíveis envolvendo Belo Monte. Porém, mesmo os defensores da usina devem reconhecer algumas características na conduta do governo. As ações do executivo podem ser reduzidas a fatos, a uma descrição, anterior à controvérsia das interpretações. E parece que, ao sugerirmos um interpretação para esses fatos, estamos agora em terreno mais seguro cujo espaço de divergência se limita ao trivial, sem comprometer o todo.

Os contínuos processos que embargam a obra, exigindo o cumprimento das etapas e realização adequada das condições para emissão da licença, a pressão constante sobre os agentes ligados ao órgão licenciador, o Ibama, e até a retaliação às entidades que se posicionam contrariamente são fatos envolvendo o estudo, planejamento e execução do projeto. Aqui, quero menos relacionar e esgotar a lista dos indicativos do que representar e ilustrá-los. Se parece aceitável que o governo lute pelas suas ideias e projetos, devemos, no entanto, reconhecer limites, de outro modo nos vemos presas de um espírito pouco democrático, de uma disposição que se representa perfeitamente no mote maquiavélico: “os fins justificam os meios”.

O interesse de realizar o projeto não pode atropelar trâmites institucionais que são instrumentos do Estado para balizar as ações dos governos. Ao reduzir as etapas que antecedem a execução do projeto a mera condição de formalidades burocráticas o governo manifesta um lamentável pendor autocrático. Supõe-se que o estudo de impacto ambiental provenha informações bastantes para que o governo e a sociedade discutam a viabilidade da construção da hidroelétrica em função de custos e benefícios, vantagens e desvantagens. Se em termos práticos a sociedade civil não tem poder de vetar a disposição inicial à construção de Belo Monte, ou se o governo não admite a possibilidade de que as informações constrariem seus planos iniciais, duas consequências resultam daí: (1) o papel da sociedade torna-se meramente cênico, e assim dá cores democráticas à disposição autocrática mascarada pela verniz da burocracia, pelo cumprimento das etapas prescritas em lei (cumprimento geralmente reconhecido em instâncias judiciais, mediante bem sabidos pactos políticos entre os poderes); (2) as instituições, que deveriam resguardar o Estado dos impulsos do governo, garantindo uma certa formalidade, a despeito das ideias particulares de cada novo ocupante do executivo, são, por fim, instrumentalizadas de modo servir em seu benefício, sem que, no entanto, se constituia um vício formal. Cada vez que o judiciário autoriza o licenciamento ou o avanço a uma nova etapa da execução, contra todos os vícios e o açodamento próprio ao modo como o projeto tem sido conduzido, enfraquece o poder retentor das instituições e legitima práticas nocivas ao fortalecimento do Estado brasileiro.

Se o levantamento dos possíveis impactos socio-ambientais não pode, na prática, inviabilizar o projeto é porque ele foi reduzido a qualidade de mero papel, formulário a ser preenchido como convém para que se realize um intuito original que nunca fora efetivamente ameaçado. Se o governo não está disposto a ouvir, responder e dar consequência às razões apresentadas como objeções a Belo Monte é porque não lhe convém. E quando a conveniência substitui o espírito público e democrático, a razão aqui só pode ser chamada dissimular a imposição, o adialógico, ainda que tudo isso se apresenta nas formas brandas de um acordo entre as partes que deveriam ser responsáveis pela guarda na ordem institucional.

Precisamos de energia? Quanto? Pra quê?

Belo Monte é conduzida sob a sombra da nossa recente crise energética. A ameaça de um novo apagão é perigo cuidadosamente brandido pelas autoridades. Ora, mas antes de entrar no mérito das vantagens ou desvantagens da hidroelétrica parece fundamental responder a outras questões de base. Belo Monte terá capacidade produtiva média de 4.571MW (com capacidade máxima instalada de 11.233MW no ano) num parque energético com capacidade instalada de cerca de 100-105 MWN (claro, excluindo a energia importada). Assim, Belo Monte representa de 5 a 10% do total da nossa capacidade produtiva. É certo que afirmar a necessidade de energia é um truísmo para um país em desenvolvimento, mas a questão é: quanto nos precisamos? Pra quê?

Reféns da chantagem energética, podemos bem passar sem responder essa pergunta, ignorando fatores fundamentais ao direcionamento do futuro do país. A cega necessidade de evitar uma nova crise pode nos fazer comprar um padrão de consumo energético, sem que atentemos para as questões que são postas ao fundo desse regime de produção e consumo: que modelo de desenvolvimento nós estamos comprando ao aceitar a construção da usina? Talvez esse seja um dos maiores méritos do belo texto que Idelber Avelar escreveu avaliando aspectos da gestão de Dilma nesse ano. Uma das coisas que ele diz é: talvez seja preciso um pouco de “humildade” para que possamos escolher um tipo de desenvolvimento que não seja tão pujante quanto gostaríamos, porém, mais humano, mais feliz (contra o impulso arrogante de vestir a carapuça de Brasil potência).

Belo Monte é um pacote completo, escolhê-la não é só “evitar o perigo de futuros apagões” e endossar os sem números de efeitos (nefastos) de sua construção, mas também aceitar inadvertidamente um modelo de desenvolvimento que não conta inimigos e barreiras para atingir suas metas. Colonizados durante tanto tempo por interesses e forças predatórias (se é que já nos livramos de tais amarras), queremos reproduzir e multiplicar em nosso próprio solo as mesmas práticas que outrora pesaram sobre nós? Nós, talvez a pátria ambiental do planeta, vamos continuar a aceitar políticas que parecem opor desenvolvimento e ambientalismo? desenvolvimento e tratamento justo às pessoas, populações, comunidades menos favorecidas?

Essas questões são fundamentais e importantíssimas, mas retornemos ao ponto desse tópico: para além do medo instigado, de quanto efetivamente nós precisamos? Essa pergunta, que vem embutida numa série de outras, eu deixo que o professor Oswaldo Sevá responda, adiantando que trata-se justamente de criar um contexto que solicite a necessidade da usina. Ou seja, garantir ou desejar a sustentabilidade energética do país não implica necessariamente aceitar Belo Monte, o maniqueísmo e a simplificação interessam a quem pretende dissimular aspectos fundamentais sobre os quais o debate se apoia e especialmente suas consequências. O vídeo é imperdível.

Imperdível também é o livro Tenotã-Mõ (disponível gratuitamente), que agrega análises de especialistas nas mais variadas área sobre as consequências do barramento na bacia do Xingu.

Atualização: acho que esse link tem muita a ver com o que se está discutindo aqui: Porque a Justiça não consegue decidir sobre o caso de Belo Monte

Deturpar para defender

Ontem o Jornal da Band destacou honestamente sua opinião numa seção editorial. Um gesto louvável, num país onde a confusão entre informação e opinião serve aos propósitos de grupos privilegiados. À parte isso, o conteúdo do editorial é vergonhoso (vídeo abaixo).

Para o Jornal da Band a campanha do Ministério Público Federal contra o consumo de carne produzida em fazendas ilegais é uma “criminalização” da pecuária brasileira e veicula sua mensagem em tom alarmista. Não é de hoje que o Jornal da Band manifesta seus estreitos laços com o setor agropecuário. Em outras ocasiões eu acompanhei a grita de figuras do naipe da senadora Katia Abreu contra o aumento nos índices de produtividade rural ou a favor da diminuição das áreas de proteção ambiental.

Para o jornal, as fontes de informações que alimentam as preocupações do Ministério Público são duvidosas e as “peças publicitárias se destinam a confundir e não a esclarecer”. Os objetivos da campanha, segundo o texto editorial, não são claros. Isso só pode ser mais um ato de má-fé e pouca consideração pela inteligência alheia — como no post anterior. Um movimento que tem como pano de fundo a completa ausência de notícias relativas aos abusos que grassam sem reservas nas zonas rurais, abusos que vão desde a grilagem de terras até o trabalho escravo. A mesma imprensa que se horroriza com as prescrições de um Plano Nacional de Direitos Humanos que traz, ao longo de suas três edições, uma estrutura basicamente intocada — faz pouco caso e nem se dá ao trabalho de noticiar o inferno diário de trabalhadores que tem violados muito mais que seus direitos trabalhistas, também seus direitos humanos e sua dignidade.

Aliás, a mesma imprensa fervorosamente preocupada com direitos em paises como Irã, Venezuela e Cuba. Trata-se de uma preocupação seletiva: a chave para entender o ânimo das manchetes da grande imprensa.

Só mesmo quem ignora a dura realidade da zona rural brasileira e dos seus trabalhadores, ou a falta de dispositivos eficazes para combater as práticas ilegais que minam nossas reservas naturais, pode desconhecer o objetivo da ação do Ministério Público. E assim, cientes de terem omitido o que convém aos seus interesses, e dá preguiça política contagiante — sintomaticamente expressa na defesa feroz que alguns fazem do projeto Ficha Limpa — que impede a busca por outras fontes de informação, eles se sentem confortáveis para externar uma opinião que vai de encontro à realidade mais óbvia do nossos país.

Eu pensei em linkar posts do Blog de Leonardo Sakamoto para ilustrar as referências ao trabalho escravo, mas elas são muitas. Busque “trabalho escravo“na caixa de pesquisa do blog e vocês verão uma realidade inteiramente nova, de um país que não aparece nos noticiários noturnos. Descobrirão também porque ela não aparece: quem são as figuras por trás desses interesses. Ali um vasto material documenta os nocivos efeitos do uso irresponsável dos recursos naturais, por parte das fazendas ilegais. Aliás, já é difícil fiscalizar e estancar os danos causados por fazendas regulares e a força da sua representação no Congresso, o que se pode dizer então daquelas que produzem carne à margem da lei. Sem falar das preocupações sanitárias.

O lobby do setor agropecuário se não é o mais forte, é certamente o mais barulhento e visivelmente danoso. Eleição após eleição, as mesmas figuras seguem defendendo os interesses cegos de poucos, ao arrepio das mais elementares preocupações ambientais e humanistas. Katia Abreu, recentemente, foi cotada para a vice presidência na chapa de Serra. Recusou (se isso não é sintoma de fracasso, não sei mais o que é). Ou seja, apesar das práticas que eles abrigam e defendem, a voz dessas pessoas continua sendo ouvida e suas presenças são desejadas em “importantes” círculos da vida nacional. Se não bastassem todos os outros critérios para determinar a necessidade de uma mudança radical no comportamento na imprensa brasileira, esse já seria mais que suficiente.

Abaixo dois textos recentes do Leonardo Sakamato que iluminam questões correlatas a todo esse imbróglio envolvendo a carne produzida em fazendas ilegais, para que vocês entendam que a força que representa esses setores transcende a defesa intransigente de seus interesses em veículos de comunicação, antes de mais nada, ela passa por uma bem estruturada coordenação política que atropela tudo que não se ajusta a sua conveniência. (Eles não precisam que o Jornal da Band saia em defesa dos seus interesses, a julgar pelos absurdos que eles nos fazem engolir em Brasília). Além disso, as duas peças da campanha do Ministério Público:

Novo Código Florestal é uma bofetada no país
Qual a relação entre a alta do PIB e o Código Florestal?