O ato criador: a diferença entre a inteligência humana e a inteligência artificial

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Seguramente há muitas maneiras de responder à pergunta que parece implícita nos comentários de Alan Turing sobre seu Imitation game: o que é que caracteriza a nossa inteligência? Poderíamos construir uma máquina que fosse capaz de se fazer passar por um ser humano a tal ponto de não ser notada nem mesmo por alguém cujo trabalho é distinguir uma inteligência natural de uma artificial? Essa é uma das premissas de Blade Runner (e, imagino, do livro de Philip Dick no qual o filme está baseado). Eu não quero escrever sobre isso — não agora —, quero apenas responder à pergunta sobre o que caracteriza (ou singulariza) nossa inteligência. E mostrar em um ou dois exemplos o que podemos fazer e o que uma máquina não poderia (não sem apagar a fronteira dessa distinção). A resposta curta seria então: nós podemos criar.

(Uma observação importante: Turing deliberadamente não define inteligência, o que ele diz é que uma máquina será tão inteligente quanto nós se agir de tal modo que não possamos distingui-la de um ser humano. É por isso que ele propõe um jogo de imitação. Imitar, nesse contexto, tem um papel central, pois o critério que nos permitiria dizer que a inteligência artificial é idêntica à inteligência natural não seria o acordo com uma definição, mas uma identidade comportamental. É um critério behaviorista e é compreensível que seja assim. A questão é: uma pessoa limitada — burra, vamos usar um termo mais apropriado — é inteligente nesse sentido, pois se comporta como um ser humano. Portanto, aqui o que me interessa não é essa noção estrita de inteligência, compreensivelmente elaborada no marco de uma recém nascida reflexão sobre a diferença entre a inteligência natural e a artificial, o que me interessa é esboçar uma resposta que aponte para aquilo que é inimitável na inteligência humana, e é isso o que eu chamo de criação).

Criar, no entanto, ainda é algo muito abstrato e não parece significar nada. Se eu digo a alguém: “Nós somos capazes de criar, as máquinas não”, essa pessoa provavelmente não entenderia o que quero dizer com isso, não saberia, portanto, qual é a raiz da diferença. Sendo assim, parece necessário dar um exemplo, algo concreto, mas é preciso também um esforço para entender o abstrato. O esforço para tentar entender como o exemplo ilustra aquilo que eu quero fazer entender: a ideia da criação como algo próprio a uma inteligência natural. E como esse exemplo seria capaz de se relacionar com outros possíveis exemplos da nossa capacidade para criar. Qualquer pessoa que supostamente tenha entendido o que eu quero dizer precisa ser capaz de formar seus próprios exemplos de criação, do contrário não terá entendido. Analogamente, se eu estou ensinando uma criança a usar a palavra jogo, essa criança precisa ser capaz de adicionar mais exemplos à classe (extensão) designada pela palavra jogo. Eu daria meus próprios exemplos dizendo “Xadrez, damas, peteca, futebol…” e ela precisaria continuar: “Vôlei, basquete, dardos…”. Assim ela terá mostrado que entendeu o que queremos dizer com a palavra jogo.

A arte é onde a criação humana se expressa melhor, é onde podemos ver a força de sua liberdade. A liberdade de atuar, do ator, da atriz, por exemplo, manifesta a força da criação humana — e o cinema é um bom exemplo disso. Não deixa de ser curioso, pois alguém poderia dizer que o trabalho do ator consiste precisamente em imitar. Essa definição seria, num mesmo sentido, verdadeira e falsa. Verdadeira porque sim, é fundamental para um ator saber imitar e repetir padrões comportamentais e, para isso, ele precisa estar sempre atento às outras pessoas, à variedade de suas reações, gestos e comportamentos de maneira geral. Há algo de profundamente não arbitrário na sua atuação. Uma atriz que quisesse expressar raiva não poderia agir arbitrariamente, de qualquer jeito, ela precisa manifestar um determinado comportamento. No entanto, a palavra determinado aqui não cumpre a função de delimitar um campo preciso, ela apenas marca um limite vago, impreciso, cinzento, entre um comportamento arbitrário e um comportamento que pudesse ser reconhecido, num determinado contexto, como sendo a expressão da raiva. É exatamente nesse limite de imprecisão que a inteligência humana opera, que ela cria. E é por isso que em um sentido muito importante o trabalho da atriz não é meramente imitar, mas o de criar. E o trabalho de criação será tanto mais sublime quanto mais a atuação deixa de ser uma mera imitação, para transformar-se numa espécie de padrão, num modelo daquilo que se gostaria de expressar. Vamos ao exemplo — vou descrever um fragmento inteiro de Birth, um fragmento importante, então assista o filme antes de continuar se não quiser spoilers. A cena está aqui embaixo:

Nicole Kidman confronta um menino de 10 anos que afirma ser seu marido, morto há 10 anos. A atuação dos dois é nada menos que assombrosa (o filme é Birth). A convicção com que o menino afirma que não deixará de procurá-la é convincente, porque ele não parece uma criança armando uma travessura, mas alguém plenamente consciente do que quer e do que faz. O modo como ele sustenta o olhar é parte da fabulosa atuação do garoto. Profundamente perturbada por aquilo tudo, querendo por fim àquela perturbação, a personagem de Nicole Kidman decide então jogar o mesmo jogo, olha o garoto de frente e lhe diz com uma honestidade cortante que não lhe interessa nada daquilo. É claro que a força do menino fraqueja nesse momento, pois quando um não quer, dois não brigam. A vontade não pode ser constrangida e uma manifestação tão clara de desinteresse dito com honestidade só pode ser a coisa mais dura que alguém que ama pode ouvir da boca do ser amado. Enquanto ela se retira, ainda hesitante, o menino cai de joelhos desmaiado pouco antes dela cruzar o umbral da porta. Desaba também a frágil convicção da sua personagem. Essa cena já é suficientemente boa, mas a cena seguinte é uma confluência de felizes escolhas criativas. Não quero me estender demasiadamente, pois nada pode substituir a contemplação, assistam quantas vezes quiserem. Nessa cena, Nicole Kidman precisa dar expressão a uma pessoa profundamente perturbada pela dúvida sobre a possibilidade de que seu marido morto seja agora um menino de 10 anos. Que sentimentos alguém experimentaria se considerasse essa possibilidade, se admitesse essa dúvida? Seu noivo, como a maioria das pessoas, não a admite nem por um segundo, mas o filme não é sobre ele, é sobre ela. É sobre alguém que amava imensamente seu marido, um físico que só aparece na primeira cena do filme, rejeitando uma série de argumentos metafísicos que parecem agora materializar-se na própria figura do garoto e de sua alegação improvável. Tão (ou mais) importante que imaginar que sentimentos experimentaríamos seria saber quais seriam suas expressões. Bem, creio que sentiríamos confusão, perturbação, distração, se acreditássemos ter encontrado reencarnado alguém já morto. A confusão se derivaria da necessidade de reorganizar nossas crenças, de reajustá-las àquele novo e inusitado elemento, aparentemente incompatível com tudo o mais. E que recurso tinha Nicole Kidman a seu dispor para expressar algo tão complexo? A cena é curta e a câmera está a maior parte do tempo em close no seu rosto, enquanto ela assiste uma ópera (suponho). Ela precisa expressar toda a riqueza, todo o matiz que uma confusão mental dessa ordem pode provocar apenas com os olhos, apenas com o modo como reage a um estímulo (a conversa do noivo, a música), como mexe a cabeça. A trilha sonora ajuda muito, porque Jonathan Blazer é um craque, mas o trabalho de Nicole é nada menos que soberbo.

A atuação de Nicole Kidman é criação em estado puro porque ali nenhuma instrução é capaz de determinar o seu comportamento. Por que importa falar em instrução? Porque criar algoritmos não é nada mais do que criar instruções para resolver certos problemas (indefinidamente). Quando estamos falando de problemas aritméticos, por exemplo, é fácil construir algoritmos, mas no caso de imitar a expressão de emoções e sentimentos humanos, a coisa é completamente diferente. Como apresentar essa dificuldade? Vamos imaginar que queremos instruir uma pessoa que nunca viu o filme a imitar a atuação de Nicole Kidman. Simplesmente isso, imitar. Como poderíamos instruí-la? Como construiríamos as regras que essa pessoa deve seguir, naquele curto fragmento em que ela está no teatro? Diríamos algo como: “Sente-se e manifeste uma profunda preocupação, mostre-se distraída e se sobressalte com qualquer coisa que interrompa sua reflexão, seu ensimesmamento”. Uma instrução breve e talvez insuficiente, mas a questão é: pode haver alguma instrução suficiente? Há alguma instrução capaz de determinar, para qualquer pessoa, uma atuação igual à de Nicole Kidman? Os computadores respondem a regras e instruções que determinam inexoravelmente sua execução, aquilo que eles “fazem”. A incapacidade das regras para produzir uma execução idêntica atesta o espaço da criação (da singularidade), o espaço irredutível a instruções. A criação é um ato singular que pode até ser ensinado pelo criador (a própria Nicole poderia tentar ensinar alguém), mas que não pode ser reduzido a instruções, regras ou algoritmos, porque a relação entre qualquer expressão dessa regra e sua execução não é determinante, não é capaz de produzir o mesmo resultado (output) regular que qualquer computador é capaz de produzir com a mesma instrução. Vejamos isso de outra maneira: todos sabem o que é uma pianola, um piano cuja execução depende de uma instrução sobre que música executar. Naturalmente, qualquer música pode ser registrada numa notação a ser executada por uma máquina, mas a diferença entre a execução de uma pianola e a de Claudio Arrau ou Glenn Gould, por exemplo, é inegável — ainda que eles estejam executando a mesma música. A notação musical registrada para a leitura da máquina registra apenas aquilo que pode ser executado, não registra aquilo que o ato de criação acrescenta, o que é singular e irredutível. De modo análogo, qualquer pessoa pode imitar a expressão humana de um sentimento, pois em certo sentido saber expressá-la é relativamente simples, coisa bem distinta é saber expressá-la com tal como o ator pode fazê-lo — especialmente uma boa atriz ou ator, do tipo que apresenta atuações espetaculares. Imitar e criar são coisas distintas e o que caracteriza nossa inteligência, aquilo que ela tem de peculiar, não é a capacidade para repetir padrões e regularidades (comportamentais ou cognitivas), mas para criar padrões irrepetíveis que podem até dar azo a novas regras, padrões que não se reduzem a nenhuma regra. O novo que resulta da criação está indissociavelmente ligado a todas as regularidades já bem conhecidas, assim como o trabalho do ator se alimenta daquilo que nos é familiar, mas ele carrega um novo sentido, que pode se transformar numa nova medida da excelência ou num novo paradigma (qualquer que seja a área de criação). O ato da criação é o ato essencialmente humano.

PS. Algum dia escreverei sobre a crítica de Hilary Putnam ao que ele designou como much ado about almost nothing, sobre Inteligência Artificial. Putnam sugere que a capacidade para aprender, em contextos naturais, seria o que precisaríamos criar para produzir uma inteligência capaz de emular a nossa própria. Eu estou de acordo com Putnam, mas ainda assim, o aprender em si não é suficiente para determinar a possibilidade de criar, algo próprio a nossa inteligência.

PPS. A Google comprou uma empresa de Inteligência Artificial que tem investido na criação de algoritmos capazes de emular a imaginação, talvez seja o caminho para criar uma inteligência que seja verdadeiramente capaz, não de imitar-nos, mas de criar, como nós.

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