A pergunta “O que é o poder?” — que Gérard Lebrun respondeu com sua maestria habitual na Coleção Primeiros passos — tende a nos levar a um tipo de resposta. Não necessariamente, claro, mas nós tendemos a buscar algo comum às distintas manifestações de poder. O que há em comum no poder manifesto, por exemplo, pelo presidente americano e aquele que um traficante expressa ao determinar o fechamento de uma via ou região de uma cidade? A procura por algo comum a expressões tão distintas de poder nos leva inevitavelmente à generalização que dá lugar a uma resposta de carácter abstrato, às vezes difícil de compreender. O gosto pelo geral e, consequentemente, pelo abstrato, é marca de grande parte das filosofias anteriores à Wittgenstein. Talvez seja a marca da própria filosofia. Vejam, por exemplo, o que Kant diz a respeito do “exemplo” na sua Crítica da razão pura:
Pois, no tocante ao rigor e precisão dos conhecimentos do entendimento, os exemplos são, geralmente, mais prejudiciais que vantajosos, porque é raro cumprirem adequadamente a condição da regra (como casus in terminis) e enfraquecem, além disso, muitas vezes, o esforço do entendimento para apreender (…) Assim, os exemplos são as muletas da faculdade de julgar de que nunca poderá prescindir quem careça desse dom natural. (B173-4)
Para Kant o exemplo é um estorvo (às vezes útil) que mima e estraga nosso entendimento e dificulta o desenvolvimento da nossa capacidade de julgar — que, para ele, exigia que fossemos capazes de abstrair as circunstâncias particulares que o exemplo oferecia. A generalidade do conceito, da regra, não era concebida então como resultado da experiência, de tal sorte que pudesse ser identificada pelo lexicógrafo, como supunha Quine ao atacar a analiticidade. Era antes algo de natureza transcendental (ligada ao entendimento) e, embora não pudesse dispensar a relação com a sensibilidade e a experiência, não era derivada delas como acreditava Quine ao submeter a epistemologia a uma psicologia. Portanto, o particular (o exemplo) só podia nos ensinar sobre o geral se não fossemos capazes de, sem ele, apreender o mais geral. Soa como uma deficiência, não? É o que Kant dá a entender.
Que outra opção temos para pensar o poder já que buscar o que é comum a todas as suas expressões nos leva a uma resposta abstrata, de difícil compreensão? Podemos pensar o poder conforme Wittgenstein nos sugere que pensemos os conceitos. O que Wittgenstein sugere quando diante de um conceito tão heterogêneo quanto o conceito de poder, como o conceito de jogo? Primeiro, ele pergunta o que todos os casos de jogos tem em comum. Sua pergunta, retórica, tem como propósito fazer-nos desistir, fazer-nos enxergar que o objetivo de encontrar algo comum pode nos levar a um beco sem saída. Em certo sentido o propósito dessa pergunta é semelhante ao propósito de perguntar “O que é o tempo?” Isto é, seu objetivo consiste em mostrar que o uso da palavra tempo — assim como o uso da palavra jogo ou poder — não supõe nenhum conhecimento sobre aquilo que é comum às suas diferentes expressões, mais ainda: nem sequer exige que saibamos defini-la. Podemos usar corretamente a palavra tempo (ou poder) sem ser capaz de definir o que isso significa e podemos empregar corretamente a palavra jogo sem ser capaz de identificar o que há em comum aos diferentes casos de jogos. O que é o poder então? O poder é isso; e isso; e isso. O que significa poder se mostra nos distintos casos e exemplos de poder e a medida que eu vou colecionando manifestações de poder eu contribuo para o entendimento da variedade do conceito. O exemplo, neste caso, não é nenhum obstáculo, é em realidade o melhor caminho para o entendimento (na verdade, diferente do que pensava Kant, é o único caminho, mas isso não importa agora).
O indexical “isso”, no entanto, ainda é muito abstrato. Ele é só uma maneira de dizer que o entendimento sobre o que é o poder se manifesta não numa regra ou num conceito geral (abstrato) que recorta aquilo que é comum a todas as manifestações de poder, mas numa coleção de casos particulares que vai dando expressão à regra, que vai nos familiarizando com ela. Vejamos então um par de exemplos e manifestações variados relacionadas ao poder. Comentando sobre sua juventude difícil nos subúrbios de Miami, na década de 80, Carl Hart dá uma imagem nítida de como jovens negros podem sentir nos ombros o peso de algo pelo qual não foram responsáveis, isto é, eles sentiam que apenas pelo fato de serem negros era desvalorizados, tinham menos oportunidades, e, consequentemente, menos instrumentos com que enfrentar os desafios normais de vida, que todos temos que encarar. Nesse contexto social, nota Hart, ter uma arma parecia devolver o poder perdido injusta e incompreensivelmente. Essa era um pouco da dinâmica dos guetos da sociedade americana, dinâmica que Carl Hart teve a sorte de poder escapar em grande parte graças às mulheres de sua vida. Eu acho que essa é uma boa imagem do poder, do poder que a arma restitui ao trazer de volta o respeito que os negros não encontravam em certos cenários. Podemos imaginar também o exemplo geral e fictício de um policial que, em nome da justa luta contra a criminalidade e a violência (contra o mal), sente que por isso é legítimo e justificado praticar qualquer ação. A legitimidade de uma boa causa nos investe de um poder quase discricionário, não? Não é por motivo semelhante que o presidente dos EUA, sentindo-se o dono do mundo, julga não ser necessário colocar nenhuma barreira entre as idiotices que pensa e aquelas que expressa? Mas essas expressões de poder moldam uma imagem tendenciosa. Alguma variabilidade é necessária.
Esses dias eu vi um vídeo que reunia chegadas de Neymar aos estádios (pena não ter encontrado o vídeo). Ele chegava sempre impecavelmente vestido e com aquele andar que se pode caracterizar usando a palavra marra — lembram da marra de Romário? Não me levem a mal, esta não é uma crítica, mas uma descrição. (Usain Bolt tem a mesma marra). A marra de Neymar (como a de Romário) é o reflexo de sua confiança, da sensação de potência própria ao poder. Assim como para entender o conceito de jogo é preciso familiarizar-se com a variedade irredutível de jogos, para entender o conceito de poder é preciso familiarizar-se com a complexa rede de conceitos e ideias que perfaz essa teia conceitual aberta. Tendo tudo isso em vista, consideremos uma vez mais quão atraente é a ideia de tentar reduzir essas diferentes expressões a um mesmo denominador comum. Agora, no entanto, não se trata de supor uma marca articulante que costura as diferenças, mas de descobrir ou propor, hipotética e teoricamente, à maneira científica, um aspecto comum. Assim, esse poder manifesto em casos tão distintos poderia ser reduzido a sensação de poder aparentemente comum a todos os agentes. Por exemplo, àquela combinação destacada por Amy Cuddy entre um alto nível de testoterona e um baixo nível de cortisol. Essa combinação nos torna audazes, mas também calmos, serenos (efeito do baixo nível de cortisol no sangue). Enfim, confiantes e poderosos. Eu sou fã declarado de abordagens técnicas como essa, da talentosíssima Amy Cuddy, e acho que há inumeráveis aplicações para perspectivas semelhantes. Mas é claro que, uma vez de posse de um instrumento redutor, é fácil cair da armadilha da tendência à confirmação (que em certo sentido é natural, diga-se de passagem), pois é fácil se fechar à variedade de casos (e ao que ela tem de transformador). Talvez um dos melhores efeitos do novo modo de enxergar a generalidade que Wittgenstein nos ofereceu é que ele nos predispõe a uma abertura, muito bem vinda, à revisão de nossos paradigmas. Uma vez que o geral depende da constância do particular*, se institue deste modo uma instabilidade inconcebível para (certas) perspectivas científicas ou transcendentais, pois estas acreditam, cada uma ao seu modo, poder justificar suas posições**. Ao prestar atenção mais àquilo que exemplifica a regra — que à regra ela mesma, como queria Kant —, estamos mais propensos a admitir a possibilidade de flexibilizá-la, de alterá-la. Quando pensamos já possuir a essência da regra ou quando julgamos saber aquilo que é comum a todos os seus casos, tendemos a preservar essas lentes e rejeitar propostas de revisão, em favor da preservação do controle instrumental cuja perda tendemos a evitar. A essência é um norte: estável e controlável. Para mim — e essa é apenas a minha opinião —, está muito claro que precisamos escolher a abertura ao invés da atraente promessa de uma estabilidade absoluta, como forma de combater a tendência à confirmação, o insulamento, e como um modo de nos abrir à possibilidade de transformações e conversões.
* Nas filosofias anteriores à Wittgenstein (essa é uma generalização!), o particular é sempre um caso de um aspecto geral, o particular está sempre determinado em algum nível de generalidade: seja numa natureza, seja numa forma (lógica).
** A ideia de que algo comum articula as diferenças dentro de um certo campo conceitual parece sempre apontar para a possibilidade de justificar essa perspectiva. A realidade, naturalmente, a justificaria (seja ela entendida como natureza, seja ela entendida como forma lógica e seus derivados). A pragmática de Wittgenstein instala a historicidade nesse terreno realista e assim dá lugar à possibilidade de revisão.