Os androides em Westworld são livres? Nós somos livres?

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Spoiler alert: O texto contém (poucos) elementos informativos sobre questões importantes na série.

Se tudo que você tivesse a intenção de dizer fosse simultaneamente impresso na tela de um tablet, se todas as suas falas, passadas e futuras, fossem apresentadas para você numa espécie de timeline, como é que você justificaria pra si mesmo a ideia de que é livre? Se alguém fosse capaz de escrever um uma rotina, um algoritmo que antecipe todas as suas falas, em todas as situações, você seria livre? Eu não estou dizendo que já sejam capazes disso, estou apenas apresentando um caso imaginário. Sei lá, se existisse um algoritmo que pudesse ser aplicado ao banco de dados que o Facebook tem de nós, ou que o Google tem. O Spotify sabe muito sobre mim. Bem, então nesse caso nós seríamos apenas dados. É um pouco isso do que trata o documentário Terms and Conditions May Apply:

O mercado do Marketing digital vale milhões. O documentário da PBS, The human face of Big Data, apresenta o caso de um homem que foi reclamar com uma empresa que havia enviado folhetos indesejados a sua casa. Folhetos de promoções com anúncios de fraldas, algodão, material desse tipo. O homem não queria que a filha fosse influenciada (encorajada) a engravidar por esse tipo de publicidade e por isso fez a queixa. Pois acontece que a publicidade era orientada por data-mining, por análises baseadas em informações armazenadas em banco de dados. Nesse caso, foram analisados (e encontrados) padrões de busca e de compras que procediam da sua rede doméstica e foram enviadas ofertas de acordo com eles. A menina (sua filha) começou um novo padrão de consumo, relacionado à gravidez até então desconhecida pelo pai, e os computadores dirigiram a publicidade a este segmento comercial sem qualquer intenção, porque não pensam. E acertaram! Depois que se inteirou da gravidez então desconhecida, o homem desculpou-se com a empresa que lhe enviou os anúncios. Não lembro qual era a fonte dessa mineiração (se a base de dados de alguma loja de departamento ou de alguma empresa de cartão de crédito), mas é algo semelhante o que aconteceu com o caso da Cambridge Analytica, na eleição de Trump. (Esse caso é mencionado também em Terms and conditions)

Se tudo sobre nós pode ser antecipado, nós estamos num mundo determinístico e não há liberdade. Todas nossas ações podem ser remetidas alguma causa anterior — conhecida ou desconhecida — que as explica e que em tese poderia ser determinada usando certo algoritmo aplicado às informações apropriadas. Talvez quando estivermos produzindo informação na escala apresentada por filmes como Ghost in the shell, quando a internet das coisas estiver de tal modo incorporada ao dia a dia que até as nossas roupas estarão conectadas (se é que isso vai acontecer), talvez nenhuma informação escape à análise dos algoritmos e parecerá então o fim da liberdade. Seremos gestionadas como robôs. Mas talvez algo escape e isso me parece importante. A liberdade não se opõe ao determinismo causal, à ideia de que nós podemos ser controlados uma vez conhecidas as variáveis que nos condicionam. A liberdade é apenas a ideia de que algo simplesmente não pode ser reduzido a esse esquema causal, por mais poderoso que ele seja. E esse algo irredutível corresponde a intencionalidade (por oposição ao reino extensional com que se ocupa a ciência) . A intenção pode ter uma expressão e, portanto, pode também estar sujeita à análise, mas ela não é redutível à expressão. Por exemplo, vamos imaginar uma situação simples envolvendo, não um humano, mas um animal, um gato.

Você consegue ver sua intenção?

Um gato que se esgueirasse atrás de uma presa qualquer poderia expressar a intenção de comê-la, mas em certo sentido essa intenção pode existir mesmo que não tenha expressão. Nós poderíamos tentar reduzir essa intenção a algum elemento objetivo, com o propósito de antecipar sua expressão e realizar assim o propósito científico de reduzir tudo ao extensional, isto é, a uma questão de verdade. Por exemplo, poderíamos pensar que a intenção é uma consequência da fome (sua causa). E assim determinaríamos o estado fisiológico da fome (sei lá, identificando baixos níveis de glicose no sangue) a fim de tentar estabelecer uma correlação entre a objetividade dos indicadores de fome e os atos e ações que manifestam a intenção. Ainda assim, mesmo que aceitemos que a fome poderia ser a causa da intenção, isso não significa que a relação entre a fome e a expressão da intenção (indicador de sua existência) seja como a relação entre a fome e os baixos níveis de glicose. Não é como se um determinasse o outro. Aliás, vejam só, nós falamos que gatos tem intenção, mas como? Eles pensam? Eles tem uma subjetividade? Em realidade nada disso importa, pois nós apenas projetamos em seu comportamento uma intencionalidade ao enxergá-lo como se estivesse num jogo no qual suas ações respondem a ações anteriores, a desejos e propósitos que as animam. Como no xadrez. Você vê o adversário reunindo peças do lado esquerdo e pensa que ele tem a intenção de atacar seu rei antes que você faça o roque. Ver as coisas desse modo não significa vê-las como a ciência as vê, numa relação de causa e efeito, significa vê-las segundo a lógica de razões. Você vê o movimento do gato e o explica a partir de um razão (sua intenção) e não de uma causa. Voltamos ao exemplo do xadrez: Deep blue não viu as intenções das jogadas de Kasparov, ele apenas calculou seus movimentos*. Estou insistentemente tentando destacar dois registros diferentes: o registro causal no qual uma máquina pode operar calculando possibilidades usando um poderoso sistema de computação capaz de prever os lances possíveis, e o registro intencional ao qual os humanos tem acesso mas a máquina não. Mas o que é que tudo isso tem a ver com a liberdade?

A liberdade é esse espaço irredutível ao controle causal, ao cálculo de possibilidades que poderia ser determinado usando um robusto sistema computacional. Isso não significa que nossa liberdade não esteja inevitavelmente misturada, entretecida ao emaranhado causal, apenas que ela (pode) não se reduzir a nenhuma regra. O que me fascina em Westworld não é que a série ameace a nossa liberdade ao permitir que nos perguntemos, no atual contexto tecnológico, se todas as nossas ações já não podem ser determinadas uma vez que as grandes empresas tem um estoque incomensurável de informações sobre nós. O que fascina na série é justamente o contrário: a tendência a ver no impulso de autodeterminação dos androides o próprio germe da consciência, que nos leva a perguntar seriamente: será que eles não são como nós? A partir de quando podemos dizer que eles são como nós, ou por que não poderíamos dizê-lo? A série nos convida a sentir um enorme respeito por essa vontade de se determinar até o ponto em que nos questionamos se aqueles robôs não são, em alguma medida, também humanos. E isso é liberdade. Um espaço de indeterminação perfeitamente compatível com um mundo determinístico.

PS. Bem, eu estou tratando como se o mundo determinístico fosse um ponto pacífico, mas a verdade é que enquanto a física quântica não puder ser compatibilizada com certos aspectos da física clássica, o sonho da determinação absoluta não será mais do que isso, um sonho.

* Quando você pode ver múltiplas possibilidades e tem capacidade de armazenamento, é possível propor uma infinidade de hipóteses para as jogadas possíveis num jogo de xadrez. Cada novo lance do jogo vai confirmando certas hipóteses e descartando outras. É como se o computador dissesse pra si mesmo: “Então ele quer fazer isso e não isso”. Mas o tratamento computacional do jogo é meramente hipotético e não intencional. Ele não vê as jogadas do homem como manifestações da sua intenção, ele as enxerga como dados que vão alimentar sua base de dados, de modo a contribuir para confirmar ou refutar certas hipóteses sobre a estratégia do jogo de seu adversário. É essa diferença é que é fundamental.

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