E quem disse que não há motivos para amar Salvador?

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Li hoje um artigo interessante sobre Salvador, que, no entanto, tem um defeito imperdoável. Ele se estrutura a partir de dois pressupostos equivocados: o primeiro, o de que não haveria motivos para amar Salvador, o segundo, o de que “falar mal” da cidade pareceria equivaler a não amá-la. Se você precisa enumerar as razões para amar a cidade, é como se faltasse ao seu interlocutor tais razões, ou como se ele não as tivesse em número suficiente. Sugerir que deixemos de falar mal da cidade porque há razões para amá-la é não ter entendido o papel da crítica e, sobre esse aspecto, acho que não preciso me desenvolver.

As duas ideias são simplificações da crítica à cidade que seriam perfeitamente aceitáveis, se não fossem algo nocivas. Ou seja, está claro que a intenção do texto e do blog (365 motivos para amar Salvador) é das melhores, mas seu propósito não contribui para o sanar os problemas reais que a cidade enfrenta (que nada tem a ver com questões idiossincráticas de fulano ou cicrano) — ao contrário, se as razões para amá-la deveriam deter as críticas, isso equivaleria a uma aceitação incondicional de qualquer que seja o destino da cidade.

É claro que você pode — e quase sempre nós fazemos isso — expressar o descontentamento sob uma perspectiva pessoal: o quanto nos incomoda e afeta os engarrafamentos, a sujeira, a violência, etc. Mas a cidade não é apenas aquilo que ela tem para nos oferecer e esse perspectivismo às vezes inevitável não pode impedir que enxerguemos que o problema de Salvador é político. Se importam esse fatores que estão de maneira geral subordinados a um ponto de vista pessoal, é porque eles nos permitem entrever os rumos, o futuro da cidade que amamos.

O que há de se lamentar no transbordamento de carros e nos engarrafamentos constantes que a cidade tem experimentado nos últimos anos não é a maneira como isso nos afeta, mas o que se pode adivinhar por trás disso, as transformações nas formas de vidas tradicionais, o que isso implica para a manutenção ou desaparecimento de certas coisas que nós amamos: o patrimônio que consiste num modo muito singular de viver o tempo, o corpo, o trabalho, a cidade.

Explorando esses aspectos ilustrativos diríamos que a saturação de carros, como sintoma de algo mais profundo, fere de morte a relação do morador com a cidade (em muitos pontos). A importação do ritmo acelerado das “grandes metrópoles” mata os ritos e o ritmo que sempre caracterizaram as pessoas e as relações entre elas (ainda mais quando somamos a isso a “vergonha” e a recusa da mitológica “preguiça” baiana, que devia, ao contrário, ser brandida como trunfo civilizatório). Ora, se não estivermos atentos a esses perigos, se não fizermos dos protestos e das críticas constantes uma arma, corremos o risco de ver desaparecer justamente as razões para amarmos a cidade, e aqui cito uma parte do texto com a qual concordo:

Descobri lugares, cantinhos, buracos. Subi e desci ladeira, morro, escadaria. Conheci janelas com vistas incríveis e me joguei no mar. Mas não existe dúvida: o melhor de tudo foram as pessoas que encontrei pelo caminho.

É esse patrimônio que está ameaçado pelo abandono da cidade baixa, pela internalização da relação do soteropolitano como simples passante pelo espaço público — e não de ocupante (embora as periferias sempre resistam a essa tendência) —, e esse perigo está bem representado no crescimento exponencial dos shopping, no esvaziamento das praias e opções de lazer, nessas coisas que tornam o cidadão um espécie de viajante que salta entre espaços privados (de casa pro shopping; de casa pro trabalho; de casa pro camarote) sem nunca ocupá-la demoradamente. (O carnaval não é a perfeita representação de tudo isso que tem acontecido em Salvador? Dessa transformação cada vez mais acentuada da festa numa mera associação de espaços particulares, entre os quais os “excluídos” festejam).  Tudo isso ameaça tornar Salvador uma cidade como outra qualquer, padronizada, homogeneizada pela importação de aspectos necessários à dinâmica econômica (inevitável?) da cidade, por fim, ameaça aquilo que singulariza seus moradores, sua mitologia tão bem retratada na música e na literatura.

Bem, sobre essa maneira de se relacionar com a crítica, tenho um texto que talvez convenha, embora não esteja dirigido particularmente a mesma questão, chama-se Amizades mancas. A crítica só é um problema quando ela é nada mais que um sintoma de uma relação unívoca, da falta do entendimento político das questões da cidade. No mais dos casos, a crítica é imprescindível e, longe de ser indicativo do desconforto que precisa ser superado reconhecendo que temos boas razões para amar a cidade, ela é a prova mesma do compromisso e do amor.

Por fim, é preciso reiterar que amar Salvador e criticá-la não são duas ações contrárias e excludentes. E para terminar esse arrazoado de forma mais amena, eu invoco Geronimo Santana, cantante que tão bem representa essa cidade simbólica soterrada sob a poeira das modernidades que perigam relegá-la ao museu, ou a qualquer outro canto em que ela seja, não vivida, mas apenas recordada.

PS. O texto termina ensaiando um afastamento do que antes era o próprio ânimo do texto: “Com o tempo, entendi que não precisava de argumentos para convencer ninguém, eu já estava rendida. Aprendi que, para amar essa cidade, é preciso passar por cima de algumas coisas, deixar de ser exigente e entender que ela tem ritmo próprio”. Um pouco afinado com o que eu escrevi quando sentenciei que Salvador não tem nada pra fazer. Ponto!

PPS. E como provocação eu poderia dizer ainda que há amor sem razões, e que talvez essa seja nossa forma preferencial de amor 🙂

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