Salvador não tem nada pra fazer. Ponto!

S

Não dá pra levar toda declaração ao pé da letra. “Salvador não tem nada pra fazer” não é o tipo de afirmação que se falseia saindo à noite para constatar que de fato a cidade oferece opções e, numa mesma noite, até alternativas (como se propõe a fazer o vídeo abaixo).

A afirmação é quase expressiva — e o resíduo informativo que sobra é parte injusto, (mas) parte verdadeiro. Injusto porque reflete uma espécie de denegação. Salvador não é uma metrópole e nós sabemos disso. É injustiça avaliá-la segundo parâmetros externos. Você pode ouvir rock todos os dias se estiver em São Paulo. Pode passar um bom tempo, inclusive, testando novas opções antes de voltar às suas primeiras escolhas. Em Salvador, se você quiser ouvir rock, é preciso (como sempre) checar a agenda da semana e programar suas saídas conforme as opções disponíveis. Com sorte você consegue sair duas ou três vezes. Claro, as opções serão sempre as mesmas, mas isso não é uma queixa e sim uma constatação. Muitas coisas mudaram e eu não estou certo de que essa mudança pode ou deve ser encarada necessariamente como uma evolução, mas é verdade que há sim opções.

(É claro que há novidades, mas não estou certo de que é uma representação adequada afigurar o passado elegendo o Calypso como modelo [como ilustrativamente Luciano Matos faz no vídeo] e pensando o presente como o alargamento das opções em relação a ele. O Calypso foi o mais duradouro ícone daquele tempo, mas outros lugares mais efêmeros talvez tenham sido, embora não tão constantes, mais representativos. O Idearium, por exemplo, ou mesmo Santana Sushi Bar. E com isso eu quero apenas mostrar que as opções eram também numerosas e menos minguadas do que parece à primeira vista).

A constatação de que nós devemos nos encaixar na agenda da cidade e não, ao contrário, a cidade deve estar a disposição do nosso ânimo, oferecendo diariamente opções as mais variadas, é um espelho das características da nossa cidade: não somos uma metrópole. E então nos deparamos com o aspecto verdadeiro apresentado pela queixa. As limitações de uma cidade que está apenas ensaiando os primeiros passos para se tornar uma grande cidade — mas que se depara com problemas estruturais elementares e aparentemente inssolúveis a curto prazo — se refletem claramente na vida cultural da cidade, na maneira como o setor privado organiza e financia as opções. A segurança com que se aposta em mercados estáveis, fugindo do risco de opções aparentemente menos rentáveis como o rock mais pesado, o estranho desprestígio das manifestações culturais ligadas à tradição baiana, usualmente só financiadas pela administração pública, são alguns desses indicadores.

Resumindo: “Salvador não tem nada pra fazer” não é uma afirmação que reflete a experiência de quem enuncia, antes, é uma queixa que revela o desejo (e a frustração consequente) de viver o regime de lazer de uma grande cidade, do capitalismo avançado que reserva seu público, setoriza e segmenta gostos a fim de explorá-los mais apropriadamente, criando nichos a serem desenvolvidos. Salvador é uma cidade que, em função da sua condição social e econômica, exige aquilo que o vídeo aponta acertadamente: que seus moradores sejam mais flexíveis e abertos a possibilidades externas (novas) que não aquelas que confortavelmente construímos ao nosso redor. Nem todos estão dispostos a isso, e essa é uma opção compreensível!

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Se no passado as opções para quem gosta de rock eram também numerosas, senão até majoritárias, no Rio Vermelho, por exemplo, talvez uma tese interessante seja a de que o sucesso da indústria do Axé forjou e fortaleceu o estigma de que, em Salvador, apostar em cultura fora do circuito do Axé System seja um risco financeiro a ser evitado. Mas talvez a tese esteja de saída contaminada, ignorando o fato de que os proprietários das antigas casas que promoviam eventos de rock eram, antes de tudo, entusiastas do gênero (e não empresários buscando minimizar prejuízos possíveis).

Em qualquer caso, é um bom terreno de discussão.

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