A filosofia não importa
Eu diria o seguinte: uma roda que pode ser rodada, sem que nada mais se mova não faz parte da máquina.
Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 271
É frustrante se dedicar a uma tarefa impossível, e desesperador se ver incapaz de escapar dela. Meu juízo é de que a escrita é uma atividade em processo de declínio, ou seja, em algumas décadas a sociedade terá uma relação radicalmente diferente com a escrita e, por consequência, com a leitura. Essa transformação será o efeito da mudança civilizacional que instaurou um novo paradigma tecnológico ao colocar o papel na condição de tecnologia de armazenamento secundária, permitindo o retorno da oralidade, mas, principalmente, será o resultado das transformações no sistema dopaminérgico provocadas pelos estímulos dos dispositivos digitais, estímulos que transformam quase inevitavelmente a capacidade de atenção e concentração de todos nós, especialmente dos mais jovens, dos nativos digitais.
Sempre haverá lugar para a escrita, e sempre haverá quem escreva, mas a função da escrita não será a mesma, de tal sorte que — perdoem o extremismo e o drama — produzir textos será uma atividade semelhante à atividade de produzir móveis e utensílio de vime ou de corda. Escrever filosofia então, nem se fala. Escrever filosofia no Brasil, em português? Céus! Quem lê filosofia hoje em dia? Quem lê filosofia em português? Talvez as pessoas ainda leiam Byung-Chul Han, ou Zizek, Olavão foi sucesso editorial com seu “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”, mas ninguém lê nomes importantes do pensamento filosófico no Brasil: Marilena Chauí, José Arthur Giannotti, Bento Prado Jr, ou até os mais jovens como Vladimir Safatle. Só quem lê filosofia no Brasil, e especialmente filosofia em português, são estudantes e professores de filosofia. Só. (Em realidade as pessoas pouco leem no Brasil, não é só uma questão com a filosofia)


E sabe por que? Porque a filosofia já não importa, nem no Brasil nem no mundo! Nos nossos dias, quando as pessoas querem justificar sua opinião sobre o mundo elas começam seus vídeos (e seus textos) dizendo alguma coisa assim: “segundo a ciência…”; os mais familiarizados com a atividade de investigação científica dirão: “Pesquisas científicas recentes apontam…” e em seguida aludem a algum fato que deveria mudar nosso sistema de crenças e nossa maneira de agir. Eu coleciono screenshots de matérias, textos e vídeos de pessoas explicando qual é o jeito certo de fazer a mala, como ser feliz ou como ter conversas significativas. Para tudo no mundo há um saber que nos falta, um conhecimento que logo algum especialista nos proverá e se transformará num know how determinado por esse saber, portanto, o mundo é um conjunto de fatos, a única diferença é que há fatos nós conhecemos, e outros que não. A filosofia não tem mais lugar nesse horizonte, pois ela não é mais a que explica e provê modelos de mundo, modo de ser e agir. A filosofia deveria ser a que confunde e desestabiliza, mas sua própria atividade desestabilizadora está neutralizada pelos melhoradores, por aqueles que, fazendo filosofia oficial e certificada pela Universidade, perpetuam a compreensão estabelecida de que a filosofia é apenas mais um saber entre os saberes produzidos pela academia, mais uma forma de conhecimento regido e produzido nos moldes do método científico, como todos os outros saberes e domínios universitários.
Tendo tudo isso em conta, para continuar escrevendo sobre filosofia sem se sentir um pastor gritando inutilmente palavras de salvação num ponto de ônibus ou numa estação de metrô, é preciso acreditar que a filosofia pode chegar a ter algum lugar na sociedade e deixar de ser o que é hoje, a trophy wife daqueles que, com a boca cheia e a cabeça vazia, falam em “alta cultura”. A filosofia não pode ser a parte ociosa de uma máquina complexa, uma parte do mecanismo que não interfere nas outras, e que não é mais que um elemento decorativo; a filosofia tampouco pode ser parte de uma cultura performativa e ostentatória, de especialistas e autoridades que legitimam este ou aquele conhecimento, este ou aquele ponto de vista (como funciona hoje a Universidade) — ou a filosofia é parte de uma cultura filosófica, ou não é nada. Isso significa que é preciso criar essa cultura, criar algo que nunca existiu, uma cultura onde o pensamento e a reflexão não são exclusividades de professores universitários, mas uma atividade a qual todos os membros dessa cultura se sentem irresistivelmente instados a participar.
Sabe qual é minha dificuldade diante de tudo isso? Eu não acredito que seja possível criar essa cultura, e no entanto não posso escapar ao imperativo de falar e escrever sobre filosofia, não posso escapar à necessidade de criticar severamente e cada vez mais a cultura cientificista e ingenuamente racionalista em que vivemos hoje. De um lado tenho a descrença pessimista que me diz, “isso não é possível!”, de outro a vergonha da fé que preciso ter para fazer isso que me parece imprescindível, escrever filosofia para leitores que não existem e que provavelmente nunca existirão. Talvez a vida seja isso mesmo, a árdua tarefa de acreditar, de ter fé e fé no impossível; a tarefa de aprender a ter fé e a ver a própria fé, incipiente e canhestra, não como algo vergonhoso, mas necessário. Fazer filosofia é aceitar o desafio de margear a loucura, de tornar-se a bruxa da floresta, aquela que precisa isolar-se para de novo comungar com a natureza (Gaia), sem se importa que os outros a achem louca!
