Por uma razão simples a ficção não pode ter um papel central na ciência nem na filosofia científica que temos adotado: elas estão centradas na verdade e em sua eficácia causal. A ficção não tem nenhum compromisso essencial com a verdade. Alguém poderia até dizer que algumas das experiências ficcionais mais significativas fazem da verdade um mero fantoche no jogo complexo de articulações em nada redutíveis ao verdadeiro. Pensem, pra ficar num exemplo a mão, nas muitas séries que amamos. Isso não significa que o ficcional não tenha nenhuma função na filosofia. Desde o gênio maligno de Descartes temos usado ficções para muitos propósitos, no entorno da fundamentação da ciência moderna. Até mesmo na filosofia analítica há celebres usos ficcionais, como a Terra Gêmea de Hilary Putnam. O próprio Richard Rorty, cada vez mais crítico da filosofia analítica, apontou magnificamente o papel central da ficção na cultura literária. Ainda assim, a variedade desses usos se distingue radicalmente dos usos de Wittgenstein, que sublinham a irredutibilidade do sentido e colocam a verdade num lugar secundário.
Quando Wittgenstein nos convida a imaginar pessoas que jogam xadrez sem o rei, outras que determinam o preço de madeira de um forma completamente disparatada, tribos que não tem mais que alguns pares de palavras, seu propósito não é trazer à luz alguma verdade. O propósito desses usos ficcionais é fazer ver o sentido de nossos próprios jogos, de nossas próprias normas, usando como instrumento regras e práticas estranhas (aliens seria a palavra mais adequada) aos nossos parâmetros. Seu propósito (ou o principal deles) é mostrar o óbvio, isto é, aquilo que estando sempre diante do nossos olhos, nós não conseguimos ver.
Para Wittgenstein, o óbvio é o mais difícil de notar e isso diz algo sobre aquilo que é mais geral num sistema de crenças. A generalidade dos aspectos mais centrais do nosso sistema lança sobre eles um véu que nos impede de enxergá-los. Como a visibilidade dos fatos naturais é um assunto que ronda minha pesquisa, quando tive que escolher a epígrafe da minha tese, decidi por um fragmento de Borges que, embora apontasse no sentido oposto, estava na mesma direção. Um pedaço de Deutschem Requiem que há tempos me fascina justo porque parece fazer daquilo que está sempre diante de nós não o fiador da própria racionalidade e do sentido, como julgava Wittgenstein, mas a própria semente da loucura:
Yo había comprendido hace muchos años que no hay cosa en el mundo que no sea germen de un Infierno posible; un rostro, una palabra, una brújula, un aviso de cigarrillos, podrían enloquecer a una persona, si esta no lograra olvidarlos. ¿No estaría loco un hombre que continuamente se figurara el mapa de Hungría?
De todo modo, a filosofia de Wittgenstein se distancia decisivamente da tradição ocupada com a verdade e com seu arcabouço lógico/formal e inaugura, nas entranhas dessa própria tradição, onde então ele se encontrava, uma abordagem que privilegia o sentido em relação à verdade. Isso não significa que a verdade fosse para ele desimportante, de modo algum, mas sua preocupação passa a centrar-se nos efeitos bombásticos de práticas para a determinação das regras e não o contrário, conforme pensava a tradição logicista da qual ele vinha. Seu olhar muda de uma perspectiva lógica para um enfoque etnológico.
Entretanto, as atividades de dar razões, de justificar a evidência, chegam a um limite — mas o limite não são certas proposições que nós reconhecemos imediatamente como verdadeiras, como se fosse um modo de ver de nossa parte; é nosso agir que se encontra na base do jogo de linguagem.
Wittgenstein, Sobre a certeza, § 204
Wittgenstein radicalizou a ideia de sentido de Frege, perdida na crítica de Russell ou simplesmente atrapalhadamente confundida na mistura entre sentido e significado (sense e meaning ou Sinn e Bedeutung). Mas nada disso interessa. O que interessa na ficção é a possibilidade de imaginar o mundo de forma radicalmente diferente — ficção e imaginação são ideias que vão juntas. Uma mudança radical num sistema de crenças pode resultar da imersão na experiência ficcional. Uma conversão. Os acordos tem limites e quando topamos com esses limites só podemos transpô-los deixando de ser quem somos. Abandonando alguma identidade, a identidade de certos acordos. E do abandono dessa identidade sairíamos como o rei, convencido por Moore:
Os homens tem acreditado que podem fazer chover, por que não poderia ser o caso de um rei que acreditasse que o mundo começou junto com ele? E se Moore e esse rei se encontrassem e discutissem, Moore poderia realmente provar que sua crença é a única verdadeira? Eu não digo que Moore não poderia converter o rei à sua perspectiva, mas essa seria uma conversão de um tipo especial; o rei seria levado a ver o mundo de um modo diferente.
Wittgenstein, Sobre a certeza, § 92
A ficção nos ajuda a transpor os limites da nossa cegueira, da cegueira imposta pelas nossas próprias normas. A cegueira que nos impede de superar desacordos e entender para além dos limites das nossas próprias regras — e das normas que nos confinam a uma identidade. A normatividade clínica e jurídica, como nos conta Foucault, é quem produz a identidade das sexualidades periféricas. É ela que transforma o que era estritamente moral em jurídico, portanto sujeito não à censura (moral) mas à interdição (institucional). Vejam o caso de Alan Turing. Se nós fossemos outros talvez pudéssemos ter evitado o final de Alan Turing. Talvez não tivéssemos sidos seus verdugos, mas fomos. Somos seus carrascos. E ele é nosso herói, não? Lutou com a inteligência contra o nazismo, sua espada era a matemática. Nós matamos nosso herói, Sófocles não teria pensado melhor. Sem a ficção — apegados a um desejo de controle e determinação impulsionado pelo crescimento exponencial na capacidade de produzir, armazenar e processar dados — dificilmente conseguiremos nos libertar do desejo de dominar, caminharemos cegamente em direção a esse abismo, sonhando um dia realizar algo semelhante àquilo que apresenta Minority Report (Philip Dick mais uma vez).
O ritmo das transformações de nossa era é inédito na história da humanidade, as coisas mudam numa velocidade que nada consegue acompanhar. As instituições e os processos deliberativos que elas exigem, processos de legitimicação e normatização, não conseguem acompanhar as mudanças determinadas em grande parte pela transformação tecnológica. A única coisa que acompanha, ou melhor, que alimenta esse ritmo é o mercado. São as economias dos nossos países crescimentistas e a necessidade de trabalho. É preciso haver produção, é preciso inovação, mais produtividade, automação completa, pois essas são as regras da competição nas economias modernas, nos lembra David Harvey. No mais, todo o resto segue atrasado, sendo arrastado pela locomotiva de mudanças aparentemente inescapáveis. Precisamos mudar o ritmo, escolher nosso próprio ritmo, não meramente aceitar o ritmo imposto de fora — mas também precisamos saber mudar. Sem a ficção (sem a imaginação) é difícil criar o sentido necessário para transformar nossas visões de mundo, e assim estaremos condenados a preservar a estabilidade de uma visão de mundo que recebemos sem questionar (daí porque a tendência a confirmação). Condenados a rejeitar a mudança (a acreditar em ideias conservadoras), a ter uma visão histórica estreita, maniqueista, talhada para atrair pessoas inclinadas à segregação e não à miscigenação. Necessitamos a mudança e a transformação para não estar em nossas mentes como um animal que não consegue mudar de pele, impedido de reacomodar as novas dimensões do nosso espírito. A exigência do nosso tempo é a de que sejamos capazes de derrogar nossas identidades e nos transformar num ritmo que nenhum outro ser humano jamais se transformou, e isso significa passar por um período sombrio de incerteza. Um período de transformações angustiante, apavorante, diferente da idílica conversão do rei persuadido por Moore. A transformação é um período de instabilidade porque a perda das certezas, dos eixos que orientam nossas visões de mundo, é um processo traumático, conturbado, de desorientação e, como Safatle não cansa de lembrar (com Freud), de desamparo. Não há garantias de que há um outro lado, de que um dia chegaremos a ser outra coisa, um outro tão estável e equilibrado como isso o que somos hoje, isso que defendemos e preservamos da mudança. É uma aposta, é como sair navegando pelo oceano a espera de encontrar algum novo lugar.
Não por outra razão eu quis escrever ¿Hemos ido a la Luna?, para discutir os efeitos da alteração nos eixos de nosso sistema de crenças. Sem imaginação, arriscamos perder-nos nessa passagem entre visões de mundo, incapazes de repor o sentido que se foi junto com as certezas fundamentais. Coincidentemente, quando eu estava escrevendo esse texto, Mia Couto deu uma entrevista pro Nexo em que dizia algo central pra tudo isso que eu esbocei precariamente aqui. Ele disse: “Eu tenho medo é de que as crianças não sejam capazes de criar suas próprias histórias”.
Bem, todo esse texto é apenas uma maneira de antecipar e registrar uma mudança. Quero usar a ficção, o cinema, a literatura, como instrumento principal de reflexões filosóficas. Por isso os textos ficarão cada vez menos comprometido com a verdade, com a realidade, com os nossos acordos e mais comprometidos com a imaginação, com a ficção e com a realidade do irreal. A excentricidade é uma margem do rio da loucura e nenhuma grande conversão pode se dar sem margear esse rio (esse margear não é um capricho, é uma necessidade lógica exigida pelas conversões, portanto não é acidente que seja assim).