Pensei em dar ao texto o título O império do perlocutório, mas esta é apenas uma de suas etapas e não o seu alvo. Usamos a linguagem não como as poetisas e os feiticeiros, usamos a linguagem como argumentadores, como quem calcula. Queremos, sobretudo, provocar efeitos, fazer com que nossas ideias afetem os outros e os transforme, mude seus sistemas de crenças e, consequentemente, suas ações e seu discurso, posto que falar é fazer (como nos ensinou Austin, e Wittgenstein antes dele). Portanto, eu chamo de Império do perlocutório a prevalência de um uso da linguagem que visa exclusivamente o efeito e que, por isso, lhe dá um caráter instrumental. Nada mais natural que, na Tecnosfera, vejamos a linguagem predominantemente como um instrumento.
O caso é que em muito poucas circunstâncias a linguagem é verdadeiramente um instrumento, em muito poucas circunstâncias ela funciona como um cálculo e, no entanto, a prevalência de semelhante concepção — e o mascaramento de outras dimensões que talvez tenham peso ainda maior — impede que possamos refletir sobre o uso que fazemos ou deveríamos fazer dela. Feyerabend apontava, visando concretamente a ciência, a necessidade de reconhecer variáveis externas que interferem nos planos e propósitos racionais e científicos:
Ora, se há eventos, não necessariamente argumentos, que são causa de adotarmos padrões novos, inclusive novas e mais complexas formas de argumentação, não caberá aos defensores do status quo oferecer, não apenas contra-argumentos, mas também causas contrárias? E quando velhas formas de argumentação se revelarem causa demasiado fraca, não deverão esses defensores desistir ou recorrer mais fortes e mais irracionais? (É muito difícil e talvez inteiramente impossível combater, através de argumentação, os efeitos da lavagem cerebral.) Até o mais rigoroso dos racionalistas ver-se-á forçado a deixa de arrazoar, para recorrer à propaganda e à coerção, não porque hajam deixado de ser válidas algumas das suas razões, mas porque desapareceram as condições psicológicas que se tornaram eficazes e as faziam susceptíveis de influenciar terceiros. E qual a utilidade de um argumento que não consegue influenciar pessoas?
Paul Feyerabend, Contra o método
Há tempos essa racionalidade, entendida simplificadamente como uma espécie de cálculo de razões, perdeu lugar para a propaganda, para a publicidade, precisamente porque as condições psicológicas não podem ser excluídas do cálculo, e, admitidas neste cômputo, já não permitem que pensemos a linguagem como cálculo, nem mesmo como instrumento (embora não deixem de poder ser igualmente instrumentalizadas). A Publicidade há tempos sorrateiramente substituiu a Razão, justo porque sabe o peso de variáveis não racionais e sabe ademais como manipulá-las, como instrumentalizá-las em seu favor. A publicidade, junto com ciência, constituem os dois eixos principais do capitalismo.
Mas não é isso o que me interessa agora. O que me interessa é saber se, para além do perlocutório, do propósito de provocar efeitos, há algo mais na linguagem? Podemos usá-la ainda que não vejamos de que modo ela afetará os outros? Devemos usá-la ainda que não existam esses outros? Devemos escrever uma carta, colocá-la numa garrafa e lançá-la ao mar na esperança de que alguém a leia? Devemos falar ao vento ou melhor recear que nos tomem como loucos?
Acreditar na linguagem num sentido lato não pode significar simplesmente acreditar que ela é um instrumento eficiente para levar a cabo os nossos propósitos dirigistas e para produzir os efeitos que desejamos. A linguagem é um todo que abarca o sistema cultural e também o natural. Sendo simbolismo, tendemos a esquecer sua dimensão natural e a esvaziá-la no caráter convencional e arbitrário que a constitui como símbolo e instrumento. Relegamos seu pertencimento ao mundo natural à expressão artística, àquilo que se manifesta como relação unívoca, do interior da nossa subjetividade ao mundo externo e objetivo, como coisa externalizada. Assim, por exemplo, ao cantar, sentimos que expressamos algo, mas o que é expresso vem de dentro e ao chegar ao mundo não o afeta como pode afetar um argumento, isto é, um elemento convencionalmente construído para ter efeitos precisos (melhor, determinados) sobre os outros, como numa espécie de cálculo. No mundo, no melhor dos casos, esse uso da linguagem agora devidamente categorizado como expressivo só pode afetar os sentimentos, este dominio por milênios menosprezado por uma tradicional racionalista ou protoracionalista.
Os sentimentos são um modo de abreviar e de rotular o espaço indeterminado do que não se submete à pretensão regulativa da razão, são, portanto, desrazão e irracionalidade; trocando em miúdos, coisa depreciável. Desse modo, nossa situação é a seguinte: aquilo que mais nos afeta está fora do rol das coisas importantes, relegado à animalidade (palavra maldita para nós, humanos racionais) que gostaríamos de esquecer se fôssemos capazes de nos transformar em máquinas, de agir a despeito do nosso pertencimento ao mundo natural. Não é por acaso que Spock é apresentado como ídolo numa representação estereotípica dos cientistas; não é por acaso o temor, a respeito das inteligências artificiais, quanto a possibilidade de elas tenham emoções (tratando os dois termos como familiares).
Enquanto a publicidade usa a não mais poder sentimentos e emoções humanas, a ciência sonha em mapear assepticamente este espaço de irracionalidade, em reduzi-lo às suas regras operativas e, portanto, restaurar a determinação e conjurar a arbitrariedade. A ciência não ouve a filosofia, ou melhor, ciência já não é mais filosofia, portanto, morrerá abraçada à fada da determinação (mito científico), incapaz de compreender a inevitabilidade do acaso e da arbitrariedade. Em momentos otimistas eu penso que a ascensão dos sistemas complexos, que a aparição dos sistemas emergentes (engenharia emergente, etc.), é um sinal de que a ciência talvez possa amadurecer e se orientar rumo a caminhos mais afins à compreensão do caráter inevitável da arbitrariedade. Mas essa é apenas uma ilusão otimista, a ciência não pode ensinar a lidar com o que está fora do âmbito do conhecimento (possível ou atual), só a filosofia pode extrair disso não um conhecimento, mas uma ética.
Voltamos então à questão, o que significa acreditar na linguagem? Entre outras coisas, acreditar na linguagem significa entender o significado de cantar, de imaginar, de evocar e invocar, significa entender o Verbo como espírito e também como carne; não como coisa contrária aos propósitos racionais, mas apenas irredutível às suas pretensões universais. Nada mais difícil do que ver o lado de fora quando não se acredita que ele exista.
Eu estou na prática bastante de acordo com o que você está dizendo. Na teoria eu gostaria de entender melhor qual a distinção que você faz entre racionalidade e irracionalidade. Eles não seriam simplesmente categorias arbitrárias dadas a formas de expressões do pensamento humanos? Quando algo deixa de ser racional e passa a ser irracional?
Na prática outra vez, eu gostaria de dizer que tanto o racional como o irracional têm o seu valor. Cada um deve julgar em que medida e em que situação ele deve usar a linguagem racional ou irracional.
Racionalidade e irracionalidade formam um tema complexo, não posso senão rabiscar alguma coisa sobre isso. Eu penso que a racionalidade é a pretensão de reduzir todos os fenômenos a regras (_ratio_, do latim, proporção, medida, razão), a regularidade permite a abstração, e portanto pode aspirar à universalidade, à generalidade (à determinação), que tem um peso e papel tão forte no mundo ocidental que parece uma mitologia. O irracional por outro lado é o espaço do irredutível às regras, do indeterminado, daquilo que nos conecta ao todo, à natureza, sem se reduzir às nossas pretensões de compreensão e categorização. O caso é que a racionalidade faz o irracional parecer um aspecto indesejado que deveríamos eliminar, como se pudéssemos converter o irracional em racional.. mas o irracional, por não ser estável, é justamente o espaço de emergência da grande parte da criação, além do espaço de comunhão com o mundo, manancial de um sentimento de pertencimento que jamais podemos experimentar por meio da razão.