Muito antes da esquerda

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Animais que se ajudam

Há 235 anos estourou a revolução francesa. Se a gente retroceder 5 vezes esse valor a partir do ano em que ela aconteceu, 1789, chegamos ao ano de 614. Distante, mas de um ponto de vista antropológico e evolutivo nem tão distante assim. Muito, muito antes da esquerda nascer já havia respostas aos dilemas postos pelos binômios: indivíduo e coletivo, sociabilidade e insociabilidade. E qual eram as respostas a esses dilemas e desafios? Nós éramos egocêntricos, narcisistas e individualistas como poderíamos dizer que somos hoje? A ênfase narcisista posta na ideia de individualidade é muito recente. Há 200 anos a ideia de indivíduo não era como nós a experimentamos hoje, e não é preciso ser nenhum Foucault para saber disso. O pertencimento a grupos, nações, tribos, coletivos, tinha um peso muito mais forte do que então atribuíamos ao indivíduo, ao agente (possuidor de agência), ao sujeito da liberdade de ação livre — ou quase.

Mas a força dos nossos quadros normativos impõe lentes tão fortes, lentes legitimadas por saberes os mais variados, que passamos a enxergar a história humana por meio desse filtro, dessas lentes — e nem mesmo consideramos a possibilidade de lentes alternativas. O caráter inescapável dessas lentes nós chamamos de universalidade, mas eu prefiro chamá-lo de cegueira normativa. E essa é também é a história do liberalismo, da ideia de competição e de propriedade privada, enfim, a história da ampla rede de ideias que lastreiam o capitalismo, entendido como modelo político-econômico vitorioso, predominante. (Modelo político-econômico ou forma de vida?) O que significa ver a história humana para além das lentes originadas na revolução francesa e em suas condições?

Significa entrar no pantanoso debate antropológico sobre a condição e a evolução humana, sobre uma arqueologia da civilização. Se você é um cientista, como era David Graeber, significa estudar a história humana para mostrar que a perspectiva predominante ao longo da nossa história é em realidade muito diferente do discurso sobre cada um por si e sobre a luta pela sobrevivência, de Thomas Huxley e de muitos liberais. É uma disputa sobre o significado de ser humano, e o que caracteriza essa disputa é a busca por determinar quando começa a civilização e o que nos distingue dos outros animais. Somos animais? Que tipo de animal nós somos? É no espírito dessas perguntas que David Graeber mobiliza Margaret Mead:

(…) Margaret Mead fez isso uma vez quando sugeriu que o primeiro sinal de “civilização” na história humana não foi o uso de ferramentas, mas um esqueleto de 15 mil anos que mostrava sinais de ter sido curado de um fêmur quebrado. São necessárias seis semanas, observou ela, para se recuperar de uma contusão dessas; a maioria dos animais com fêmures quebrados simplesmente morre porque seus companheiros os abandonam; uma das coisas que torna os humanos tão incomuns é que cuidamos uns dos outros em tais situações.

— David Graeber, El amanecer de todo

O que somos então? Somos animais que se ajudam. A direita (e os liberais ateístas) pode vangloriar-se de ter Richard Dawkins ao lado das suas teses atomizantes e individualizantes, como talvez tenha Darwin (quem vai saber?). Mas é difícil emprestar densidade científica e filosófica ao egocentrismo e à desconfiança mobilizados por aqueles que combatem, cientificamente, as perspectivas coletivistas, aquelas que afirmam que a centralidade da vida humana é (e deve ser) social, e não individual.

Por sorte não sou cientista, então não preciso me preocupar em apenas amealhar evidências que justifiquem minhas hipóteses, como se o que importasse fosse somente isso: juntar fatos e fazer os outros ver o peso dos nossos fatos, do que usamos para justificar nosso sistema de crenças. Quando a gente se liberta da verdade, o que resta é o modo como lidamos simbolicamente com o desafio da sociabilidade, de viver juntos; o que importa é a invenção da vida social e política, apesar de todas as merdas que a sociabilidade nos impõe. O que resta é a ética e a política entendidas como coisas que vão mais além do verdadeiro, como pensava Aristóteles contra Platão, algo que depende inteiramente das nossas ações e hábitos (pragmática).

Meu ponto de vista irredutível à ciência pretende deliberadamente escapar à cegueira das nossas lentes, escapar ao marco temporal em que nos instala a perspectiva progressista e desenvolvimentista.

E o que significa ver a ajuda e a colaboração — não a competição — como eixo da história humana? O que significa ver a história humana fora das lentes progressistas? E qual é o significado dessa tendência a ajudar? Como essa tendência se deixa marcar, não apenas na cultura humana, mas também na natureza humana, no corpo humano e em nossos genes? Quer dizer, será que altera a produção de certos hormônios no corpo quando estamos perto de outros seres humanos?

O corpo é também reserva de memória, disso que se constrói ao longo dos séculos e milênios. Nosso corpo sabe que “somos de esquerda”, ele sabe que nos ajudamos, que olhamos uns pelos outros há muito tempo e não apenas nos hostilizamos mutuamente, como querem nos fazer crer.

Podemos dar cores científicas a essa alegação, citando Michel Tomasello sobre a catraca cultural, o modo como evoluímos partilhando conhecimento; ou ainda delirando e imaginando que essa tendência ao coletivo é tão forte que certamente deixou marcas e mudanças nos nossos hormônios, nos níveis de oxitocina nos seres humano ao longo dos séculos (hormônio sempre associado a conexões e aspectos sociais dos animais). Podemos falar do conhecimento livre, do software livre e da colaboração que está na base não-proprietária dos computadores (software e hardware) e da sociedade digital.

Repito: verdades importam mas também não importam. O que realmente importa é não esquecer que o que se decide nesse debate individuo versus coletivo não são verdades (fatos), mas valoresvalores irredutíveis a fatos. E nesse sentido, contar a história da humanidade, como faz David Graeber não é só defender fatos (como excelente cientista que era), mas, sobretudo, determinar valores. Fazer política, escrever sobre política.

E diante dessa defesa de uma perspectiva sobre arqueologia da civilização, sobre a qual já escreveu tanta gente boa (como Herbert Marcuse e Sigmund Freud, só pra citar meus preferidos), o que passa pela minha cabeça é o seguinte: o que é a direita, de um ponto de vista antropológico e evolutivo?

Quais as raízes da defesa central da família, do medo e da desconfiança que em última instância se transforma numa espécie de paranoia survivalist contra os Outros — que a gente vê em filmes como Ao cair da noite, mas também em Sangue negro, com Daniel Day-Lewis —, do todos contra todos e do Homo Homini Lupus reivindicados por Thomas Hobbes? (O medo é algo objetivo, se grava profundamente na memória, como mnemótécnica de que fala Nietzsche, “grava-se com fogo para que fique na memória”). Qualquer que seja a resposta a essa pergunta, o certo é que predomina no discurso sobre o ser humano, hoje e há tempos, não a perspectiva que coloca a colaboração no centro, mas aquela que usa a rivalidade, a inveja e a competição como impulsos principais da sociedade humana. E diante desse perspectiva predominante, afirmar o papel da colaboração na história humana, ou da ajuda mútua, como fazia Kropotkin, é muito mais do que meramente afirmar hipóteses contrárias e justificá-las apontando a este ou aquele fato.

Trata-se de uma luta política e cultural. Os debates antropológicos, entendidos como disputa acadêmica encastelada em nichos restritos a especialistas, não são tão interessantes quanto a possibilidade de trazer essa discussão para um terreno mais amplo. Trazer a discussão para um terreno mais amplo não significa simplesmente popularizar ou simplificar a questão, pois há uma simplicidade irredutível na política que não deve se deixar ocultar por nenhuma complexa explicação ou descrição. Isto é, a política se manifesta em cada ato humano em sociedade, em cada ato humano em sociedade se manifesta o modo como cada um de nós se posiciona ante a questão posta a todos: “como conviver com o Outro, como lidar com os desafios da sociabilidade e, sobretudo, da insociabilidade?”

A importância da batalha de David Graeber e tantos outros cientistas por estabelecer certas perspectivas sobre a história humana, perspectivas que nos representam de uma maneira menos belicosa e conflitiva, de modo mais amável, aberto e afetuoso ao “estrangeiro”, ao “bárbaro”, ao Outro. Perspectivas que alimentam nossa vontade de saber (sic), vontade de verdade, mas também nos fazem lembrar que a política não é mera verdade, ela possui, como a poesia, um caráter de invenção. Um ímpeto criador que não é nada mais do que o reflexo de laços invisíveis que nos conectam desde tempos imemoriais, laços da ancestral inteligência humana (coisa coletiva e não individual), de seu enraizamento no mundo natural e de seu pertencimento à rede ecológica da qual é apenas um fragmento. Somos isso, animais que se ajudam.

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