Indústria cinematográfica e a saudosa manufatura do cinema

I

Faz alguns dias Chico comentou no Twitter, falando sobre baixar e assistir filme no computador: “Sou contra ajudar a levar a falência uma indústria que me dá tanto prazer”. Falência?

Em todo caso, indústria parece mesmo um termo bem empregado. Se é assim, o cinema segue a mesma lógica que outros setores ao qual se irmana. Isto é, se desenvolve um ritmo de produção acelerado e cego, porque circular. A produtividade industrial tem como única meta o aumento de sua própria produtividade. Cada demanda precisa ser explorada, cada pequeno vazio não preenchido pela indústria. Assim, todos os anos são lançados no mercado um sem número de títulos, para todos os gostos, cada vez mais amplos e, para evitar o fracasso de vendas, aposta-se em generalização, em roteiros que repetem sucesso de outros tempos. Se prestarmos atenção notaremos que é mesmo uma política de vendas que orienta o vetor cinematográfico, seja na produção ou na criação.

Há quem acredite que de outro modo o cinema não sobreviveria. Talvez, talvez. Talvez realmente tenhamos chegado ao ápice da indústria cultural e do agenciamento por esse meio. O fato é que uma crise na indústria cinematográfica talvez pudesse nos lançar de volta a tempos melhores (falando utopicamente, claro). O tempo em que o cinema se fazia como a construção de um Bugatti, num processo delicado e híbrido onde a tecnologia e as ferramentas disponíveis estão a serviço de propósitos internos. Nesse aspecto, o cinema é o caso oposto ao da indústria. Sua contaminação corresponde à introdução de aspectos exteriores que degeneram quase que por completo as determinações internas da criação e produção. O desenvolvimento, a proposta, o percurso em sua integridade ficam sujeitos a critérios de todos estranhos ao próprio cinema (aspectos comerciais, em geral). Critérios que o pervertem e deformam. Na indústria, ao contrário. A produção perdeu o rumo ao se distanciar totalmente de qualquer esquema racional, ao se dirigir exclusivamente segundo os propósitos postos pela sua própria lógica de manutenção, isto é, por aspectos internos, como se as ferramentas humanas não tivesse mais como intento e meta fundamental servir às nossas necessidades. Na medida em que se apresenta como provedora da nossas riquezas, a indústria não permite que a ampla diversidade de setores da atividade humana passe à margem de seus interesses. O problema é que os interesses da indústria nem sempre convivem pacificamente com a natureza de outros interesses. E como seu papel axial no financiamento e manutenção de certas atividades não pode ser dispensado, a consequência é uma progressiva desnaturação dessa atividades. No cinema, o resultado é um quadro de produções medíocres mas rentáveis. O bom cinema é interessante na medida em que é rentável. E mesmo a produção de cinema “descontaminado”, virou um nicho do própria indústria, na medida em que está vinculado a um público cativo e fiel.
É preciso salientar que a indústria não compromete todas as produções — pra não tornar isso aqui uma teoria conspiratória. O que acho é que a própria designação indústria cinematográfica ajuda a explicar certas mudanças na história do cinema e seu atual estágio produtivo e criativo. O compromisso com metas industriais não poderia passar sem deixar no corpo do cinema sérias mutilações. Eu ainda prefiro o cinema manufaturado, sem responsabilidade com cifras, números astronômicos e poderosas imagens. Não que o cinema tenha sido alguma vez uma atividade meramente dispendiosa e prejudicial aos seus financiadores, comprometidos com a arte a qualquer custo. Mas decerto ela já foi algo que não demandava tanta grandiosidade.

Adicionar comentário

outras redes

Perfis em outras redes

Preferidos

A categoria Preferidos é especial, porque reúne os textos que eu mais gosto. É uma boa amostra! As outras categorias são mais especializadas e diversas.

Categorias

Arquivos