Faz poucas semanas eu enviei a uma amiga alguns ebooks a fim de que ela pudesse compor o material necessário a uma ementa que aborda a cultura de massa e a indústria cultural. Puxando a sardinha para minha brasa, enviei Eros e Civilização — não sem considerações prévias. A questão não está entre as preocupações centrais do livro embora certamente figure como uma das suas peças. Bem, as observações que fiz me estimularam a escrever sobre um dos aspectos mais interessantes do livro: a distinção entre necessidades verdadeiras e artificiais. (É bem verdade que a distinção só aparece nitidamente em sua Crítica ao hedonismo, no entanto, se encaixa perfeitamente em Eros e civilização apesar do seu papel, por assim dizer, secundário). A sociedade repressiva, segundo o juízo de Marcuse, sobrevive à custa de uma produtividade cega e voraz que só se mantém se substituir as necessidades verdadeiras (de extração biológica e biologicamente determinadas) por necessidades artificiais forjadas no próprio sistema. A produtividade repressiva gira no vazio, alheia aos interesses que legitimaram a associação que deu origem à Civilização (Kultur). Bem, vamos entender esquematicamente como Marcuse chegou a esse panorama pelas vias do pensamento psicanalítico de Freud.
Tudo tem início numa teoria da civilização: Freud entende que a formação de uma organização social complexa encontra sua origem em arranjos biologicamente determinados. A estrutura familiar é berço da sociedade e da civilização. Daí a importância do mito de horda primordial. Essa noção é igualmente importante para Marcuse. Bem, nessa organização social primitiva, o pai cumpre uma função determinante: ele provê a segurança e a unidade familiar, enquanto restringe o prazer dos filhos. A ambivalência da relação é fundamental para entender posteriormente a formação do sentimento de culpa e sua importância para manutenção da ordem social. No limite da tensão pelo despotismo do pai, os filhos se insurgem e, em nome da liberdade, matam-no. A aparente liberdade e o prazer irrestrito logo dão lugar a um esgarçamento da organização social responsável pela segurança, por benefícios e vantagens que os filhos não estão dispostos a abdicar. Arrependidos, os filhos resolvem reeditar a antiga organização social mediante um pacto. A ordem deposta cuja força dependia da presença física do pai agora é renovada através de uma espécie de “contrato” estabelecido entre os filhos. O que dá coesão ao contrato? O receio de perder os benefícios que importam da organização social. É esse aprimoramento que substitui um poder identificado numa figura de carne e osso pela ordem abstrata mantida no interesse de vantagens associativas que Freud identifica como o primeiro passo da Civilização. Nesse cenário, a culpa consiste num fator cardinal. O parricídio lança na memória da espécie a culpa pela dissolução de uma organização social que, sendo custosa, é, mesmo assim, vantajosa. A coesão que mantém firme o pacto entre os membros de uma sociedade se estreita na medida direta em que a culpa aumenta. Ninguém quer ser o responsável por lançar a comunidade no caos que se seguiu pouco depois do assassinato do pai (houve ainda o período matriarcal que não convém abordar aqui).
Esse esquema é extremamente frutífero para a articulação de um crítica social tal como Marcuse o mobilizou. A organização social e a produtividade necessária à sua manutenção exigem um ônus biológico, o sacrifício do prazer. É assim que se constitui o Princípio de realidade, mediante a subordinação do prazer à ordem. A energia instintiva antes investida na busca pela satisfação agora é direcionada às atividades socialmente úteis. Essa reorientação é tolerável enquanto ela produz benefícios que ajudam a dispersar a tensão gerada pelo organismo (lembramos que o prazer e o desaprazer, no regime de energias orgânicas de Freud, é a contenção ou descarga de tensões acumuladas, nesse sentido o prazer é a descarga e o desprazer o acúmulo). Enquanto as tensões se dissipam o organismo tende à vida, isto é, a manter-se como está. O instinto de vida é Eros. Quando as tensões de acumulam, Eros se enfraquece e o organismo tende à morte. A morte, nesse regime, vale tanta quanto à paz, isto é, quanto a ausência de tensões. O que o organismo quer, ao final, é a homeostase, o equilíbrio, a possibilidade constante de descarga das tensões.
Mas como se encaixa a crítica social de Marcuse nesse plano de energias libidinais? Bem, destacamos o fato de que a organização social implica um ônus libidinal, é como se restrições impostas pela sociedade produzissem o combustível necessário para as atividades produtivas exigidas pela manutenção dessa ordem. No entanto, há limite para o que se pode exigir dessas restrições. A própria instituição de uma sociedade se legitima somente na medida em que a produtividade que lhe é própria se dirige a finalidades que busquem promover o benefício comum e assim, indiretamente, contrabalançar as perdas originais impostas ao organismo. A individualidade perde parte de sua liberdade de gratificação em nome de uma sociabilidade que deve restituir as perdas impostas com ganhos reais, vantagens que a condição social traz na medida em que se constitui como uma ferramenta mais apropriada na luta contra a natureza (Freud afirma que há incontáveis caminhos para a felicidade, mas apenas três vias para a infelicidade — e a força da natureza é uma delas: vide O mal-estar na civilização). No processo histórico, o elo entre produtividade e racionalidade se perde em algum momento. Isto é, a produtividade antes condicionada aos princípios originais de associação e à necessidade de desenvolver as ferramentas da luta pela existência passa então a se dirigir de forma autônoma. As demandas sociais são marginalizadas e o espaço se abre para o enfraquecimento de Eros e para o fortalecimento do instinto de morte. A violência crescente se explica nessa dinâmica. É assim também que se resolve o aparente paradoxo entre riqueza teórica e material acumulada pela humanidade e o indisfarçável mal-estar que cresce no próprio núcleo da sociedade. Mas as antigas demandas cobram seu espaço — é preciso lembrar que Freud concebe a felicidade como consecução de anseios primitivos — de sorte que à medida que a produtividade vazia cresce, é cada vez mais indispensável calar a voz insistente das necessidades biológicas, soterradas pelo trabalho alienado que não contempla suas necessidades. É assim que surge então o caminho no qual se permite uma leitura envolvida com as noções de indústria cultural e cultura de massa, no interior de Eros e civilização. A indústria cultural, nesse contexto, vem no sentido de substituir o motor biológico das necessidades — que restringe à produção a uma demanda que pode ser atingida e que, portanto, limita o ímpeto produtivo — pelo motor cultural de necessidades. A indústria cultural, portanto, é o lugar onde as necessidades são elaboradas para satisfazer ao impulso incontrolado da produtividade capitalista. A produtividade não tem nenhuma finalidade, ela é um fim em si mesma e, portanto, precisa de um mecanismo que seja capaz de alimentar uma sede incessante. A produtividade, no esquema anterior, no espaço original, se orientava pelo propósito de constituir as ferramentas que auxiliariam os homens na luta pela existência. Na medida em que avançava nessa luta, a tendência original era justamente a contrária: o abrandamento da força repressiva na medida em que fossem conquistadas as condições necessárias a uma menor exigência de trabalho. O cenário é complemente oposto ao que Freud e Marcuse enxergavam no século passado. A produtividade desenfreada só se conserva se alimentada por uma demanda igualmente incessante. As necessidades verdadeiras, derivadas da conformação biológica, são substituídas por necessidades artificiais, forjadas com o exclusivo intuito de manter operante o maquinário produtivo capitalista. No espírito da crítica marcuseana, retomar a autonomia e o lugar do homem no processo histórico consistia em restituir a autonomia do processo produtivo, detendo a cegueira do maquinário capitalista. A par dessa crítica sociológica, Marcuse alinhava o parecer psicanalítico freudiano que sublinha a esmagadora força da culpa exigida pela manutenção de um status tão frontalmente oposto aos desígnios instintivos. É certo que a “a felicidade não era um valor cultural” para Freud, mas os níveis atingidos na sociedade moderna ultrapassam um limite razoável.
Para mim, essa é uma rica abordagem para os problemas relativos à indústria cultural. Quer pelas perspectivas que abre, quer pelo arsenal teórico que mobiliza. Muitas outras questões se ligam ou derivam dessa perspectiva. O lugar do sentimento de culpa na manutenção da ordem social é, por si só, uma pauta interessantíssima. Ou o próprio estatuto da teoria psicanalítica e as consequências da visão de mundo que ela enforma. Caso vocês se interessem pelo tema, eu sugiro que leiam ao menos a introdução de Eros e civlização. Se se sentirem atraídos, estou certo que vocês encontrarão um livro profundamente estimulante. Não sem razão Lebrun pensava que havia dois Marcuses: um pensador rigoroso na linha direta de Heidegger (seu orientador) e de Hegel, seu horizonte, e o intelectual capaz de incendiar as mentes juvenis com ideias revolucionárias, interpretadas, erroneamente, com panfletárias.