Eficácia simbólica

E

O real para além do racional

Conceitos são portais para outros mundos, e uma vez transposto o umbral, não há volta. Um dia ainda quero falar sobre isso usando Foucault, mas hoje eu vou usar Claude Lévi-Strauss como exemplo. E o conceito em questão será o de eficácia simbólica, que dá nome a um texto do livro Antropologia estrutural.

Não quero falar do texto em si, mas sobre o significado filosófico de juntar duas palavras para forjar o conceito de “Eficácia simbólica”. Sozinho, o conceito de eficácia significa sempre eficácia causal, porque só existe eficácia causal, né? Até Lévi-Strauss toda eficácia era causal*. O antropólogo então opera uma distinção pela qual faz surgir um novo tipo de eficácia, qualificada como simbólica, o que isso significa?

Que exemplos desse novo tipo de eficácia Lévi-Strauss oferece, onde a gente pode ver o que caracteriza essa eficácia? Nas intervenções de um xamã, no seu discurso e no seu uso da linguagem. Por exemplo, o canto do xamã podem ter poder, digamos, analgésico, podem aliviar a dor de gestantes em trabalho de parto. A eficácia simbólica se dá pela mediação dos símbolos, portanto, aparentemente ela não pode ser capturada pelas normatividades epistêmicas (ela não é uma terapia ou uma clínica que funda ou reflete um saber). É como se Lévi-Strauss tivesse dito: o mundo simbólico e o mundo real não coincidem. O mundo simbólico é muito mais amplo e inclui sentidos, não apenas fatos, portanto inclui também mentiras, falsidades, fantasias, ilusões, poesias, encantamentos, tudo o que não precisa corresponder a nada na realidade. O mundo real inclui apenas fatos, aquilo que pode receber os predicados de verdadeiro ou de falso (tudo que é decidível).

Então, é como se ao utilizar a ideia de eficácia Lévi-Strauss dissesse não apenas que o Real está composto de dois (ou mais) mundos, mas também que “há um modo de intervir no Real que não se reduz à questão de afetar a cadeia causal, ou de usar instrumentos”. Nós não podemos ver o modo com as coisas sucedem no mundo simbólico, pois estamos nele, mas não podemos vê-lo, porque só vemos fatos, só vemos a realidade (e o mundo real). É preciso dizer que Lévi-Strauss não extrai do seu uso conceitual as mesmas consequências que eu, ele apresenta o conceito não como quem torna objetiva a própria ideia de magia, mas como um rigoroso cientista que confia que a psicanálise freudiana poderia lançar alguma luz onde nós só vemos fatos desconcertantes. Ele confia que a ciência saberá dizer como opera essa eficácia simbólica, possivelmente até o ponto que já não precisaremos mais do conceito de eficácia simbólica, porque entenderemos então como o símbolo atua na cadeia causal. Bem, talvez eu esteja fazendo uma caricatura de Lévi-Strauss apenas para não vinculá-lo às minhas sandices.

Quando li o relato e o uso do seu conceito de “Eficácia simbólica”, pensei que assim se abria um caminho importante para compreender o significado da ideia de multiplicidade dos mundos, da irredutibilidade do Real ao factual, do significado da magia. O primado do sentido sobre a verdade, que é um dos marcos da pós-modernidade no pensamento filosófico, induz uma atitude antropológica em relação à experiência que nos leva a ir mais além das explicações, ver o mundo não como um conjunto de fatos regidos por regras universais e atemporais, mas como um conjunto de símbolos com os quais nós fabricamos historicamente nossos fatos (objetividade). Atitude semelhante à de Rousseau, como o próprio Lévi-Strauss celebra em Jean-Jacques Rousseau, fundador das ciências do homem — citando-o:

A terra inteira está coberta de nações das quais apenas sabemos os nomes, e nos intrometemos a julgar o gênero humano! Suponhamos que homens do porte de um Montesquieu, de um Buffon, de um Diderot, de um d’Alembert, de um Condillac, viajando para instruir seus compatriotas, observando e descrevendo, como sabem fazer, a Turquia, o Egito, a Berbéria, o império do Marrocos, a Guiné, o país dos Cafres, o interior da África e suas costas orientais, as Malabares, o Mogol, as margens do Ganges, os reinos de Sião, de Pegu e de Ava, a China, a Tartária, e sobretudo o Japão: depois, no outro hemisfério, o México, o Peru, o Chile, as terras Magelânicas, sem esquecer os Patagãos, verdadeiros ou falsos, o Tucumã, o Paraguai, se possível o Brasil, e enfim o Caribe, a Flórida e todos os rincões selvagens, viagem a mais importante de todas e que seria preciso fazer com muito cuidado, suponhamos que esses novos Hércules, retornando dessas memoráveis perambulações, em seguida fizessem à vontade história natural, moral e política do que teriam visto, nós mesmos veríamos surgir de seus escritos um mundo novo e aprenderíamos assim a conhecer o nosso […] APUD Claude Lévi-Strauss, Discurso sobre a origem da desigualdade, nota 10

Se tratamos a eficácia simbólica como um nome que designa um tipo de eficácia ainda não compreendida pela ciência, nós vamos em direção à perspectiva determinista — que não é filosófica, mas científica, embora se vista com as roupas da filosofia científica dos EUA, a dos melhoradores —, pois o mundo simbólico aí não é mais que um mundo desconhecido. Mas se a eficácia simbólica designa abstratamente um mundo irredutível às leis da causalidade, <ficção> vamos por um segundo nos permitir pensar essa maluquice </ficção>, então o que nós ganhamos é um novo mundo, um mundo que não vemos, mas que podemos aprender a ver; um mundo cujas engrenagens não funcionam segundo leis, ainda que possamos intervir. Um mundo aberto à intervenção não-causal, não-instrumental, o que isso significa? O que pode ser um poder ou uma força não-instrumental? Qual é o significado de intervir de modo não determinístico? O que se busca nessas intervenções?

Como eu escrevi me referindo ao conceito de inconsciente, os conceitos importam não apenas pelo que nos permitem ver de objetivo, pelos fatos que geram, mas também pelas experiências e mundos que dão lugar. Mesmo que ainda estejamos emperrados na busca objetiva pelas suas referências, como no caso dos conceitos de “Deus” ou de “livre-arbítrio”, acreditando que o seu sentido depende da verdade daquilo a que supostamente teriam que apontar. O sentido pode se estabelecer com independência da verdade, como bem nos mostra a ficção, a arte de modo geral. Daí, hoje, mais do que nunca, que a arte precise ter um lugar mais central que a ciência na sociedade humana.

O mero conceito de eficácia simbólica é rico o bastante para suscitar uma dezena de questões filosóficas interessantes, e o mais interessante é que inadvertidamente suscite também discussões sobre verdade e realidade, num marco incomodamente pós-moderno. Ainda que sua intenção não seja pós-moderna (disruptiva e desestabilizante), não há dúvida que Lévi-Strauss nos leva a ver o mundo de outra maneira, e de que não há caminho de volta.


Não sei em que medida um cientista pode não acreditar em determinação (absoluta), acho que toda busca por explicações é fundamentalmente determinista a e reducionista, de tal maneira que mesmo a eficácia simbólica de que fala Lévi-Strauss consiste em pouco mais do que acontecimentos ainda não esclarecidos pelo lume da ciência. Mas eu não conheço o bastante seu pensamento para saber como ele responderia à questão do determinismo. Talvez, no fundo, sua filiação científica e a busca por explicações o aproximem a Robert Sapolsky e de sua crença na completa determinação das ações humanas e de todos os acontecimentos.


* Kant cria o reino da liberdade junto ao reino da natureza. A natureza tem suas leis, a liberdade não pode escapar às leis da natureza, mas pode inaugurar séries causais não previstas, porque a vontade pode escapar à determinação empírica (condicionamento sem determinação). Mesmo nesse âmbito, eficácia é ainda eficácia causal, porque a vontade (liberdade) quer atuar sobre a cadeia de causas e efeitos, quer ser eficiente neste meio. A ideia de eficácia não causal faz muito mais que abrir espaço para o ghost e para ação do espírito no mundo material, ela abre espaço para a ideia de mundos não redutíveis à instrumentalidade científica.

PS. Esse é o texto número 600 de um blog que completa, esse ano, 18 anos. Uma imensa coleção de exercícios de escrita eu tenho aqui.

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