Amor é coisa do corpo

A

Para a minha cheirosa…

O amor é coisa do corpo, lição da filosofia de Carlos Drummond de Andrade. Ou de Manuel Bandeira? Aqueles que se importam com a posse e com a autoria que decidam quem é o autor da lição. Eu prefiro suspender o juízo e apreciá-la como algo de todos; aprendizado oriundo dessa comunidade — manifesta frequentemente em poetas e loucos (morbus sacer) — que é subterrânea e inconscientemente nossa, do conjunto de seres simbólicos (os polvos simbolizam?)

Amor é cheiro, é toque, é voz e pele; amor é cheiro, definitivamente! É lembrança sim — é memória e eudaimonia —, mas no corpo se vive, pois o corpo é a morada do espírito (da memória), de sorte que não há dicotomia. Amor é coisa de pele, e sobre a extensão da pele, essa fronteira entre mim e o mundo, os melhores e mais desejados estímulos bombardeiam freneticamente nosso sentir, o cheiro, o tato, o sabor, a visão.. sem esquecer a audição. Enquanto dura o infinito do gozo o amor é puro corpo, é encontro de corpos.

E mesmo nas relações onde o corpo não é tão central quanto na relação sexual, ainda assim o corpo é importantíssimo e talvez devesse ser resgatado. O carinho não é uma das grandes lições da música de Dominguinhos? O carinho se estende ao amor e à amizade. Há corpo também na amizade, há palavras e símbolos, mas há também afeto que nós animais, nós macacos, sempre comunicamos mais diretamente pelo corpo. O amor não é uma linguagem, não pode ser usado instrumentalmente, para propósitos (fins), é ligação direta — conexão. O que fazemos com isso que, não podendo ser instrumento, ainda assim é imensamente poderoso?

O dualismo de Bandeira e Drummond não é tão surpreendente quanto essa filiação ao corpóreo, pois é como se esperássemos desses senhores respeitosos e ilustres uma inclinação ao espírito (res cogitans), coisa não sujeita à corrupção, que não apodrece, mas é imortal e una. E como se da mortalidade do corpo só pudessem advir coisas inferiores, condenáveis e indesejáveis, não compatíveis com o sublime da poesia e do poético. No entanto, sabiamente eles não apenas preferem o corpo, como também nos ensinam, em seus pensamentos, a ver o que nele há de singular, além das oportunidades que oferece aos espíritos.

E a (desespiritualização && corporificação) do amor lança luz sobre outros fenômenos, por exemplo, sobre o que há de cinzento e irreparavelmente impreciso na distinção (útil) entre amor e sexo. Amor é também mucosa, saliva e suor, e como pode que não haja também amor numa vontade sincera de fazer gozar? Amor é comunicação sem linguagem, conexão fundamental sobre a qual todo o propósito radical de uso da linguagem deveria assentar (o propósito que pretende sugerir novos fundamentos e eixos), sob pena de, de outro modo, encontrar barreiras incontornáveis. Outra lição dessa prolífica escola de pensamento.

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não

Manuel Bandeira, A arte de amar

Manuel Bandeira declama A arte de amar.


Curiosamente, estou lendo um livro, que me foi sugerido por um amigo, que trata justamente do modo como o corpo serve não de instrumento de comunicação, mas como meio de algo mais, de uma conexão que transcende o simbólico. O livro se chama El sabor de un hombre, da escritora croata Slavenka Drakulić. É fascinante!

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