Se você perguntar, todos sabem dizer a razão porque o mundo vai mal! (Perdão, eu espero que você me conceda isso, ou pelo menos que imagine que eu posso afirmar isso). E eu não sou diferente, tenho minhas razões. A principal delas é uma divergência entre Aristóteles e Platão, uma diferença expressa na Ética a Nicômaco, logo no começo, se não falha minha porca memória. Uma divergência a respeito do papel do conhecimento na Ética. Aristóteles não dava ao conhecimento o mesmo peso que Platão, pela importância que a ação tem no seu pensamento. Essa ainda continua a ser a questão central, o que mudou é que talvez não possamos dizer que somos platônicos. Porque (creio) a ética de Platão ainda se distingue do conhecimento, não é como se as duas ideias fossem, na realidade, uma só. Bem, eu não li mais que um par de páginas de Platão, mas parece razoável afirmar isso. Hoje, no nosso mundo, a Ética não existe, só existe o conhecimento, por causa de uma espécie de platonismo zombie. O platonismo zombie não é uma teoria que coloca o conhecimento como uma questão central para a Ética (como a teoria de Platão, diríamos esquematicamente), é a (crença inconsciente || dogma) de que o conhecimento nos dirá o que fazer. Pode parecer que é a mesma coisa, mas não é.
((O conhecimento não nos diz o que fazer [para Platão] no mesmo sentido em que cremos e dizemos hoje que o conhecimento pode nos dizer o que fazer. Não existiam então as ideias de normatividade e determinação tal como nós as entendemos hoje [mesmo que aceitássemos generosamente essa anacronia como modo de aproximação]; não havia uma pragmática, um modo de compreender regras e casos que coloca a ação, a Praxis, no início do ciclo de determinação da regra [portanto, em certo sentido tudo começa no caso, esse é uma maneira de afirmar um particularismo]. Se nós esquecemos esse contexto, perdemos de vista um espaço incomensurável em nome da pretensão de universalidade, para poder abarcar tudo. É como ficar cego deliberadamente para não ver o que não se quer. E o trabalho genea-lógico de Foucault, por exemplo, é o trabalho de nos lembrar que se nós esquecermos a pederastia, nós pensaríamos que os gregos eram homossexuais — e essas são duas coisas diferentes, é preciso saber e lembrar o que era a pederastia. E esse trabalho de Foucault, genealógico e histórico, é profundamente lógico no sentido de Wittgenstein, não custa enfatizar de novo, repetir, repetir, repetir, como faziam os dois, por cierto))
O platonismo zombie é o abandono da ética, e o abandono da filosofia. Rorty queria que a saída fosse a literatura. E eu quero estar com Rorty. Eu gostaria muito que nós pudéssemos passar da verdade redentora à cultura literária. Gostaria muito! Sem resgatar a filosofia, pra que nós precisamos da filosofia? Nós não podemos pensar e refletir com qualquer coisa? História, medicina, biologia, física, matemática, química, direito, música, culinária, pular amarelinha, tudo pode nos ensinar a refletir, não apenas a filosofia. Tudo nos ensina sobre todas as coisas.
A questão “você acredita que a verdade existe?” é uma abreviação para algo como “você acredita que há um fim natural da investigação científica (inquiry), um modo como as coisas realmente são, e que entender o modo como as coisas são vai nos dizer o que fazer de nós mesmos?”.
Richard Rorty, The Decline Of Redemptive Truth And The Rise Of A Literary Culture
Aqueles que, como eu, são acusados de frivolidade posmodernista não pensam que há um tal fim. Nós acreditamos que a investigação é apenas outro nome para a resolução de problemas e não podemos imaginar chegando a um fim a investigação sobre como seres humanos devem viver, sobre o que nós devemos fazer com nós mesmo. Pois soluções para velhos problemas produzirão novos problemas e assim eternamente. Assim como para o indivíduo, também para a espécie e a sociedade: cada estágio de maturação superará antigos dilemas para em seguida criar novos.
Mas não creio que a literatura possa assumir esse papel, não porque a literatura não seja sublime, mas porque nós ainda não somos. Nem mesmo chegamos a ser aristotélicos e já queremos ser homéricos. Aristóteles ainda não pode ser esquecido e Aristóteles está tão distante. O problema do mundo é impronunciável em tempos de terraplanismo, o problema do mundo é que nós esperamos que a ciência nos diga o que fazer — e a ciência não tem o que nos dizer. A tecnocracia não é uma ética, nem uma política.
PS. Se ainda não podemos esquecer Aristóteles, imagine então o novinho Thomas Kuhn, que kunhou (suponho!) esse termo fabuloso para falar da mentalidade científica: puzzle-solvers! Os puzzle-solvers vão nos dizer o que fazer? É por causa deles que nós vamos abandonar a política que Aristóteles nos recomendava no começo da sua Ética?