Espírito e dádiva

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Certa feita ouvi o seguinte comentário ao final de uma palestra de Maria Rita Kehl que eu assisti no Youtube: “Ao expor suas ideias Maria Rita faz a gente se sentir mais inteligente”. Não lembro ao certo, foi alguma coisa assim. Desde então essa ideia volta constantemente, quase como o mapa da Hungria que alguém não pudesse tirar da cabeça (felizmente, ela não é a semente de um inferno possível — mas de algo bom). A ideia ficou na minha cabeça não apenas porque era verdadeira — um modo cuidadoso e bastante inteligente de apresentar uma característica marcante do modo de Maria Rita Kehl lidar com outras inteligências —, mas também porque é muito interessante.

Era como se ela pudesse dar sua inteligência. Não lembro o que então me fez pensar que dar inteligência era uma ideia boba. Na certa foi a impressão de que assim se desvalorizava inadvertidamente o papel dos componentes inatos que constituem o sistema cognitivo. A ideia de dar inteligência parece apresentar a inteligência como algo infinitamente plástico, universal e quase imaterial, como se não houvessem determinações biológicas, químicas, físicas, que fixassem limites pra aquilo que pode ser adquirido no ambiente. Não é um oba-oba. Mas essa é uma falsa impressão, dar inteligência não significa que todo mundo é potencialmente inteligente ou que todos partilham o mesmo espectro de inteligência. A inteligência é uma ideia elusiva, porque embora nós a padronizemos — usando, nos casos mais sofisticados, nossa própria inteligência como uma espécie de padrão — ela tem uma característica emergente, pois desestabiliza os próprios padrões. Pra quem pode apreciá-las, claro, pois se abrir a apreciação da inteligência tem um preço e é uma escolha. Desestabilizados os padrões, mudam também os resultados de nossas medições e estamos num novo mundo. Não é tão simples quanto eu apresento, mas o reconhecimento da inteligência (ser capaz de reconhecer seu caráter emergente, isto é, dispensar os padrões) nos leva a ter que aceitar a instabilidade que ela carrega, junto como o fogo de Prometeu.

Toda pretensão de medir exige uma certa regularidade no comportamento do que se mede, de outro modo a medição se torna impossível.

Apenas em casos normais o uso das palavras nos é claramente prescrito; não temos nenhuma dúvida, sabemos o que é preciso dizer neste ou naquele caso. Quanto mais o caso é anormal, tanto mais duvidoso torna-se o que devemos dizer. Se as coisas fossem inteiramente diferentes de como elas efetivamente são — não haveria, por exemplo, expressão característica da dor, do medo, da alegria. Fosse o que é exceção, regra e o que é regra, exceção; ou se ambas se tornassem fenômenos de frequência relativamente semelhante — com isso nossos jogos de linguagem normais perderiam o sentido (Witz). O procedimento de colocar um pedaço de queijo sobre uma balança e determinar o preço conforme uma escala perderia seu sentido se os pedaços com frequência crescessem ou diminuíssem repentinamente, sem causas óbvias.

Wittgenstein, Investigações filosóficas, § 142

A irregularidade do comportamento do que se deseja medir torna impossível que um padrão de medida siga em vigor, pois a irregularidade colapsa a condição de sua função normativa. Diante de novas situações, novos padrões devem ser forjados, novas normas. E daquilo que desestabiliza o uso dos padrões pode ser dito que tem um caráter emergente. A inteligência tem esse caráter emergente.

Tudo isso só pra dizer que não dá pra entender a inteligência pensando apenas em termos estritamente quantitativos, paramétricos e normativos. Não dá pra entender a inteligência com espectros. O caráter desestabilizador da inteligência é um ônus que acena a uma expressão familiar, a ideia de espírito.

O universo simbólico, que é o ambiente da inteligência, não se reduz a zeros ou uns. E é por isso que a palavra espírito recupera a riqueza simbólica dispensada pela pretensão de generalidade dos zeros e uns. No ambiente do espírito podemos retomar a consideração sobre a ideia de dar inteligência sem maiores restrições, porque a dádiva não é estranha ao espírito.

“Are you free and evil or blameless and helplessly enslaved?”
Aproveitam enquanto o Youtube não derruba vídeo, é a terceira temporada de Westworld.

A dádiva é uma atitude diante da inteligência do outro. A internet está cheia de exemplos de pessoas que são capazes de nos dar um pouco da sua inteligência. É claro que é mais didático mostrar isso em relação a temas que são interessantes, mas distantes do âmbito de competência da maior parte de nós, pobres mortais. Porque assim, pelo contraste, fica mais fácil ver o quanto se alarga nosso campo de visão, para usar uma analogia conveniente. Michael Nielsen imagina um exemplo que é uma verdadeira dádiva quando precisa explicar como funciona um perceptron, que é basicamente uma unidade numa rede de modelos de decisão (uma rede neuronal). Ele explica a construção dos modelos de decisão a partir do exemplo da decisão banal de ir ou não a um festival de queijo. Então ele monta o sistema com pesos diferentes atribuídos a três fatores determinantes para decidir se ir ou não ao festival: x1 Vai fazer bom tempo? x2 Seu namorado ou sua namorada vai te acompanhar? x3 Há algum transporte público até o local do festival (você não tem carro)? Um bom exemplo é uma dádiva de inteligência, assim como uma boa explicação.

O output é a decisão ponderada a partir do que foi determinado como peso de cada fator e do valor de cada input, 0 ou 1.

A dádiva torna possível que os outros, se quiserem, adentrem universos que pareciam inacessíveis. Não estou dizendo nada que ninguém não sabia, estou dizendo o óbvio. O difícil não é conceber que os espíritos têm o dom da dádiva e que a inteligência pode ser dada, duro é entender porque então, se nós sabemos disso, nem sempre aceitamos a inteligência que nos é oferecida? Não é simples responder a essa pergunta e eu acho que pra respondê-la de modo satisfatório seria preciso falar da relação entre poder e inteligência. Falar, por exemplo, sobre como o medo de ser idiota pode ter se tornado uma arma política tão importante e sintomática. Mas não quero falar sobre isso agora, então permitam que eu me atenha a uma certa reação quase natural que nós temos diante da inteligência. Um recuo, uma recusa é um reflexo quase instintivo diante da instabilidade que a inteligência carrega. Por isso a recusa é uma (decisão && escolha), se é que realmente podemos chamá-las assim. Há pessoas e situações que nos permitem acreditar no dizer da inteligência, como quem se permite ouvi um canto de sereia, mas quando somos confrontados com ela assim abruptamente, despreparados, recusamos prontamente seus convites. Recusamos a instabilidade que pressentimos.


A inteligência precisa oferecer algo de convidativo, precisa ser sentida como a cegueira que se segue a um forte clarão, para que olvidemos o chiado que emite a instabilidade que lhe acompanha (eu me pergunto se inteligência e instabilidade são duas coisas, ou uma só). Usei o exemplo de Maria Rita Kehl, da rede neuronal, mas há muitos outros. Outro bom caso é o desse camarada falando de Garota de Ipanema (e da ambiguidade da Bossa Nova). É notória sua formação técnica, sua competência no uso dos conceitos, mas, acima de tudo, a organicidade com que o domínio técnico se articula ao seu uso da linguagem natural. Ele está à vontade, pois sua inteligência é como que parte de seu próprio corpo. Isso potencializa enormemente sua capacidade de se comunicar, atrai e amplia inteligência alheia eclipsando o zumbido da instabilidade que a acompanha. Dá vontade de largar tudo e estudar música.

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