Desde que comecei a ler filosofia, na adolescência, minha vida tem oscilado entre a razão e a fé, com claro pendor racional, devo dizer. Na descoberta de que algo tão natural (e naturalizado) quanto a fé pode ser questionado há qualquer coisa de profundamente transformador. Pouco a pouco foi se desenvolvendo em mim um respeito pelas armas e instrumentos racionais, ao passo que sentia a fé como mero consolo, quando não um embuste feito exclusivamente para manipular. Por consequência, diminuia a estima e o respeito pelas visões religiosas. Não é coincidência que meu interesse pela filosofia tenha começa com Sartre e Nietzsche.
Hoje em dia eu penso que a principal diferença entre a fé a razão diz respeito à visão da totalidade. O conhecimento é o instrumento com que a razão lida com o real, de tal sorte que a totalidade está dividida entre o que se conhece e o que não se conhece (não há nada excluído desse espaço lógico). Mesmo aquilo que não se conhece não está fora do radar científico (considerando que a ciência é a mais forte expressão da razão). Por exemplo, não sabemos de que forma os disparos neuronais em baixo nível são capazes de criar um efeito de alto nível como a consciência, mas isso não nos impede de considerar a consciência um tema científico e um fenômeno inteiramente biológico (para repetir o mantra de John Searle). Tampouco sabemos como é possível que galáxias e outros sistemas astronômicos se mantenham unidos se a gravidade entre corpos que os compõem não é suficiente para explicar essa união, mas é exatamente a falta desse conhecimento o que deu lugar à hipótese da matéria escura. O que se conhece e o que não se conhece estão ali no mesmo mapa, sob o mesmo olhar ansioso por transformar em conhecimento todo o desconhecido. Portanto, a ciência é um progressivo conquistar novos territórios, convertendo em conhecimento o que antes era desconhecido. O mais marcante da ciência é justo a pretensão de virar o jogo e transformar a totalidade em espaço conquistado pelo conhecimento.
A medida que o tempo passou, a antiga visão conflitiva da relação entre razão e fé foi arrefecendo e eu passei então a resgatar o respeito pelas visões religiosas e a me reconciliar com minha própria história, porque, como a maioria dos brasileiros, a religião faz parte da minha história e das minhas circunstâncias. Curiosamente, a filosofia foi também o catalisador dessa mudança. É claro que a insistência de Antonio Simas em sublinhar a força e o enraizamento das nossas heranças culturais também determinou uma mudança de atitude, mas foi sobretudo com Wittgenstein que pude, entendendo mais detidamente a razão, entender também a fé. Wittgenstein me fez entender que a razão é, sobretudo, a crença no poder das explicações e talvez tenha sido a formulação mais cortante do Tractatus Logico-Philosophicus, um livro que se propõe a realizar a tarefa de estabelecer as condições de todo discurso com sentido, que tenha me despertado do meu sono dogmático.
6.52 Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é precisamente essa.
Esse comentário explodiu como uma bomba em minha cabeça, pois ele é parte do livro que foi uma referência para filósofos preocupados em exconjurar tudo que não fosse redutível à verificação, à confirmação racional e científica. O próprio livro trata como esforço vão a tentativa de articular um discurco significativo sobre ética, estética e, naturalmente, sobre questões religiosas — embora Wittgenstein reconheça o que há de louvável nesse esforço. Nesse contexto, vê-se porque parece estarrecedor que se insinue num livro tão pouco favorável a perspectivas religiosas que o próprio sentido é irredutível à pretensão de emoldurá-lo no quadro de problemas e soluções com o qual a ciência aborda o quer quer que seja. Os problemas da vida estão fora do alcance da ciência. É claro que o pensamento de Wittgenstein mudará radicalmente, mas persistirá a percepção de que ciência não é mais que um instrumento (e um instrumento a serviço da verdade) e de que o sentido está sempre num nível acima, inalcancável ao propósito totalizante (totalitário?) da ciência (embora sempre expresso no trabalho da arte e da poesia). As percepções de Wittgenstein sobre ciência, verdade e, sobretudo, sentido, me levaram a pensar que a religião é uma perspectiva diferente diante da totalidade. Enquanto a ciência é a expectativa de que a totalidade possa converter-se num espaço inteiramente familiar e o desejo de alcançar aquilo que Hilary Putnam chama de God’s point of view, a religião parece uma atitude assumidamente resignada em relação à distância entre o que se conhece e o que não se conhece. Mais do que isso, ela é uma atitude propositalmente dirigida a esse abismo, é uma aceitação. Tendo isso em vista, naturalmente começou a medrar em mim um olhar mais tolerante e interessado pela experiência religiosa, porque me pareceu que em alguma medida precisamos de uma atitude semelhante e que, portanto, a religião poderia nos ensina algo.
Quando não está inteiramente encaixada nos estereótipos e tipos pelos quais é acusada por todos os males do mundo, a religião representa e cultiva uma atitude inteiramente diferente em relação à totalidade. A busca pelo conhecimento que se desdobra da ânsia pelo controle e domínio tem consequências políticas e pessoais que não podem ser remediadas com mais conhecimento. (Ainda somos platônicos, e não aristotélicos, no que diz respeito a relação entre ética e conhecimento). Não é como se ao atingirmos um certo domínio de conhecimento nos convertêssemos automaticamente em sábios, em pessoas cuja relação com o que se ignora é não apenas saudável, mas capaz de dar lugar a visões, perspectivas e ações transformadoras (do ponto de vista ético e político). Em suas melhores expressões a religião é o esforço para encontrar um atitude diante do abismo intransponível do que não explica, uma atitude que não seja a urgência neurótica pela totalidade do conhecimento, pela busca do God’s point of view. É preciso que fique claro que não há nessa atitude nada de incompatível com a busca pelo conhecimento. O que a atitude religiosa tenta cultivar é uma relação com a totalidade não mediada pelo saber — sem desvalorizar o saber. A relação do saber com a totalidade é instrumental. O saber quer mapear todo o campo do possível, quer determinar tudo que pode acontecer e como, de modo a poder controlar esse acontecer. Controle é a palavra chave. Não é coincidência que o determinismo seja uma tese forte entre filósofos e cientistas. (Desculpa, não é uma tese, mas um fato; o ônus da “prova” está com os que afirmam a liberdade, nesse modo de compreender o dilema.) Embora a religião institucionalizada aponte caminhos, fórmulas, mitos, ritos, isso não significa que a religião não possa ser experimentada fora das igrejas e instituições religiosas. O desafio dessa religião, ou melhor, das pessoas que sentem e vivem esse sentimento religioso é o de construir sua própria relação com a totalidade. Uma relação que lhes permita saber, conhecer, e ao mesmo tempo viver com o que sabem sem que sejam assombradas por aquilo que não se sabe; que lhes traga a paz que nunca pode vir do desejo de controle absoluto, algo que lhes permita aceitar que a mente humana, mesmo a mais privilegiada, verá sempre em algum campo da experiência uma zona de sombra que não pode ser iluminada por nenhuma luz — algo que lhes permita aceitar tudo isso sem cair em desespero.
@
Parecia impossível terminar esse texto. No fim, ele se dirigia a discussões laterais que me levavam a temas interessantes, mas não organicamente articuladas ao que nele era medular. Por coincidência (ou não) assisti First Reformed e consegui rematá-lo. Queria muito poder recortar um pedaço do filme e colocá-lo aqui, mas é uma pena que as políticas do Youtube sejam tão restritivas com armazenamento de conteúdo copyright. Fiquem então com o trailer e a recomendação.
Por mais paradoxal que pareça, eu não pude deixar de pensar, mais uma vez, quando escrevi o final do texto no Amor Fati de Nietzsche.
Claro que o resgate da minha estima pelas questões religiosas tem um quê de essencialmente fideista e místico.