O mito da ordem e da autoridade. Ou por que a polícia e o exército não resolvem nada

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Se quiser ter alguma legitimidade, a solução para um país mergulhado em problemas tem que falar ao maior número de pessoas. Qualquer pessoa com senso prático terá uma proposta para solucionar um problema por mais distante que esteja dele ou ainda que não esteja familiarizado com seu enquadramento técnico. E ela não está errada em pensar assim, questões políticas não se reduzem a problemas técnicos, mesmo que técnicas, tecnologias e saberes científicos possam e devam ser empregadas como auxiliares na sua resolução. Em relação aos problemas do país não é diferente, todo mundo tem uma solução. No entanto, nem todo mundo está disposto a discuti-la. Se todos discutíssemos o que acreditamos ser a solução para nossos problemas, logo isso se transformaria numa questão política, com todos os benefícios que isso implica, pois embora exista quem recuse qualquer diálogo, há muita gente disposta a refletir sobre ideias distintas e a flexibilizar seus pontos de vistas. Porém, quando as pessoas estão tão convencidas do que acreditam a ponto de não estarem interessadas em ouvir ou mesmo considerar perspectivas diferentes, a política perde toda a relevância. E isso se torna ainda mais perigoso quando muitas delas coincidem sobre aquilo que creem ser a solução. Esse é o caso da crença no poder mágico da autoridade e da ordem.

As razões porque os brasileiros parecem inclinados a crer no mito da ordem a da autoridade são muitas, não me atrevo senão a mencionar um ou dois motivos. Há em muitos casos uma preguiça política, um descompromisso com o debate político que os leva a apostar nas soluções aparentemente mais fáceis e a buscar atalhos. Mas há também quem simplesmente projete numa escala mais geral o modelo paternal de resolução de problemas. Nesse cenário, toda confusão pode ser solucionada desde que uma figura forte o suficiente assuma as rédeas e submeta, com mão de ferro, os indisciplinados a sua força disciplinadora. A ordem assim se restaura. Dois marcos muito próximos confluem nessa solução: o modelo paternal-familiar e o modelo da guerra do bem e do mal. O Exército, a Polícia, são o time do bem, são também o nome do pai, da ordem, da autoridade encarregada de disciplinar. Por outro lado não faltam representações do mal, de tudo aquilo que deve ser subjugado e disciplinado: os criminosos, os corruptos, os pervertidos, [insira aqui a sua representação do mal preferida]. Essa perspectiva é profundamente atrativa, porque é acessível, todo mundo compreende a luta do bem contra o mal, todos sabem e apoiam em alguma medida o poder disciplinador dos pais. Não há porque complexificar demasiadamente as coisas — parte fundamental do desprezo que certas pessoas sentem por alternativas a esse modelo simplificado de resolução de problemas se baseia numa rejeição à intelectualização, ou seja, essa rejeição está fundamentada numa desconfiança a respeito de tudo aquilo que, sendo complexo, é difícil de ser entendido. As pessoas querem entender de que modo as coisas serão ajeitadas, o que é natural. Para muitas delas, por exemplo, se lhes pedissemos para compreender a violência ou a criminalidade como um feixe complexo de fatores que se articulam, elas possivelmente rejeitariam essa ideia e nos diriam que somos nós que não conseguimos ver que aquelas pessoas (bandidos e criminosos) são simplesmente pessoas más. Para elas estamos tergiversando e complexificando o que é simples, ou até protegendo e vitimizando criminosos. Embora essa atitude seja compreensível, é preciso combatê-la, pois a simplificação é um instrumento eficiente de manipulação, as pessoas que se recusam a compreender por si mesmas um cenário complexo estão sujeitas a serem iludidas por leituras simplórias fornecidas por pessoas que têm interesses em fazê-las pensar assim e que sabem que haverá sempre uma demanda por respostas fáceis.

Não estou dizendo que o Exército ou a Polícia não podem vir a ser parte importante da resolução de certos problemas, mas apenas que esse apelo fácil à força e à violência não parece razoável, nem tampouco tem bons precedentes. Nessa onda autoritária, o nome de Jair Bolsonaro logo ganha relevância, e o que ele tem a oferecer? Palavras duras e fortes pronunciadas com uma convicção que dificilmente acompanha força argumentativa ou inteligência. Se pudesse, Bolsonaro nunca argumentaria com ninguém, atiraria em quem quer que discordasse das coisas que ele diz. É a lógica da força, é a lógica militar. (Não é muito diferente desses que convocam coletivas de imprensa e controlam as perguntas que lhes são feitas). O exército não é nenhuma cultura para o pensamento, ao contrário, pois o pensamento interfere na cadeia de comando e a obediência depende da cegueira para alternativas, de uma confiança indiscutível nas ordens e instruções transmitidas pelos superiores. No momento que um elo na cadeia de comando passa a avaliar reflexivamente as instruções que recebe deixa de ser um mero cumpridor de ordens e ameaça assim a eficiência militar. Como exemplo de tudo isso, Bolsonaro é truculência, palavras duras e gestos expansivos feitos para dar a impressão de força — não é isso que se espera de uma autoridade? —, não é inteligência. Quem acha Bolsonaro inteligente não sabe distinguir uma pessoa inteligente de uma porta. Agora, prestem atenção às outras figuras à frente da intervenção do Rio de Janeiro, podemos confiar na inteligência deles? Não estou dizendo que não pode existir algum nível de inteligência e razoabilidade no alto escalão militar (admito mesmo a possibilidade de que existam seres pensantes), mas as figuras que aparecem à frente desse circo não parecem mais que velhos senhores apaixonados pelas suas próprias ideias e dogmas — fechados a tudo que seja diferente. Eu entendo que a força e a autoridade tem seu apelo, entendo também a desconfiança em relação à complexidade das soluções que não passam por uma guerra do bem contra o mal, mas eu me sinto incapaz de conversar com quem acredita seriamente que a solução para os problemas do Brasil dispensa o uso da inteligência, que não precisamos de líderes e autoridades inteligentes, pois qualquer valentão convicto de sua própria estupidez (ou meia dúzia deles) vai nos levar de volta à tão sonhada ordem (e ao progresso, não é mesmo?). Esse é um mito perigoso que coloca a força onde deveria estar a inteligência e eu simplesmente não consigo ver como investir de poder pessoas que acreditam piamente na força e na violência como solução para problemas complexos pode nos levar a qualquer cenário desejável. 

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