Na fronteira do ateísmo

Eu nunca fui um ateu caricato, cuidei pra não ser. Desses que citam Bertrand Russell em sua fase mais panfletária. Mesmo em sua fase mais panfletária, permitam que eu me corrija, as coisas que Russell escrevia ou dizia tinham a marca de sua notória inteligência e generosidade. Bem, o que eu quero dizer é que meu ateísmo tem grande componente de reflexividade, não é um mero ativismo intelectual. Eu nunca o escondi, o ateísmo hoje em dia está numa posição muito confortável comparado com o passado, mas nunca fui ativista. Acho simplória a ideia de que as religiões são o mal do mundo, como vejo circular por aí, embora no Brasil de hoje seja muito difícil não se ressentir do lucrativo e poderoso mercado que se criou em torno da figura de Cristo.

Piauí: Sem fiéis, sem dízimo, sem palanque

Há sociedades que nós classificaríamos como religiosas que nem sequer possuem o conceito de religião, porque não fazem separações conceituais que nós fazemos e nas quais acreditamos cegamente. A coisa é muito mais complicada e não se resolve com um mero apontar o dedo contra as religiões e denunciá-las como formas de servidão mental e manipulação. As pessoas são mais complicadas que nossos mais elaborados esquemas.

Flying Spaghetti Monster - Wikipedia
É verdade que às vezes me divertiam as gozações do ativismo ateu, o humor abranda a gravidade de tudo. E já preenchi um par de formulários me declarando pastafarian.

E o caso é que o ateísmo pode ser também uma forma de ativismo, tem gente que se crê soldado do ateísmo — o soldado do bem, só que sem o bem. Um soldado, com ou sem o bem, é um soldado, não é alguém dado à reflexão, mas à ação e à obediência. A reflexão exige tempo, ponderação e o bom exercício do juízo (autonomia). É certo que temos nos acelerado absurdamente, mas nunca até o ponto de que coincidam a urgência de nossa necessidade de ação (intervenção) e o tempo necessário ao exercício do juízo. Se até os processadores tem limites físicos de aceleração no seu processo de desenvolvimento (aumento da frequência), não somos nós quem vamos ganhar essa corrida — nós, seres primitivos e puramente biológicos.

Ainda que eu valorize a reflexão e a reflexividade ao ponto de aceitar seu lado, digamos, sombrio — a instabilidade, o relativismo, a dissonância — isso não significa que estou livre dos hábitos, especialmente dos hábitos de pensamento. Quando me interesso por fenômenos fora do espaço da ciência, eu os observo com um olhar analítico do qual não sei me despir. Tudo começa já ao categorizá-los como fenômenos, com a separação e a rotulação. Por exemplo, a meditação como fenômeno. Duvido que em alguma cultura oriental, que a incorpore como parte fundamental das suas práticas, trate a meditação em termos estritamente materialistas. E pra mim é difícil me esquivar dessa tendência. A verdade é que faz muito sentido, digo, a redutibilidade materialista é fascinante. No vídeo abaixo, essa tendência se revela numa perspectiva orientada ao Business. Há um enorme mercado de produtividade, um mercado onde circula muito dinheiro porque os clientes desse mercado são os CEOs de empresas importantes da nossa amada economia globalizada.

Imagine quanto dinheiro esses caras não ganham fazendo consultoria pra jovens empresários querendo ser Brilliant every single day. Por preconceito, eu só consigo pensar em American Psycho.

A meditação me atraí, mas como método milenar de controle da variabilidade da frequência cardíaca. E faz muito sentido. Dada nossa constituição biológica, os níveis fisiológicos mais fundamentais determinam os processos corporais e mentais mais complexos. Aí de repente me vejo enrolado na consideração histórica do debate sobre a ascendência do corpo sobre o mental, ou da posição contrária, a força determinante do espiritual (ou mental, a res cogitans) sobre o material; ou ainda à crítica ao dualismo nas neurociências. E mais uma vez imensamente distante de qualquer coisa que não seja intelectual.

É difícil para um ateu livrar-se das lentes do ateísmo, pois, em geral, o ateu crê que não usa lentes. Todos os outros usam, não os ateus. Os ateus veem o mundo objetivamente, como ele é. Eles adotam uma atitude imparcial e desde essa perspectiva veem o mundo objetivamente, sem valores — como naquele livro de fatos de que Wittgenstein fala na Conferência sobre ética, um livro que conteria a descrição total do mundo e onde não estaria nenhum juízo de valor. No Tractatus Logico-Philosophicus há um comentário que explica muito da atitude cientificista e ateísta.

A lógica preenche o mundo; os limites do mundo são também seus limites.

Wittgenstein,Tractatus Logico-Philosophicus 5.61

Não há um lado de fora, a lógica preenche o mundo. Quem crê que existe um lado de fora do campo da determinação (lógica ou natural) está apenas se iludindo e inventando uma desculpa pra não lidar com sua imensa ignorância sobre o mundo (e com o sentimento que essa ignorância traz). As pessoas que acreditam na ciência se esforçam para compreender o mundo, para explicá-lo, por mais que saibam que talvez nunca possamos esvaziar o imenso reservatório da nossa ignorância (é preciso reservar um espaço lógico para a indeterminação), eles se empenham diariamente em conhecer mais. Supor um lado de fora é uma posição comodista, preguiçosa e anticientífica.

Nem todo mundo postula um lado de fora do espaço lógico como resposta preguiçosa a um problema teórico. O lado de fora se coloca mesmo dentro da própria lógica, com o problema da cegueira normativa, por exemplo. E essa discussão poderia tomar o rumo da discussão de Wittgenstein sobre a antropologia, as Observações sobre o Ramo de Ouro e suas respostas a Frazer. Mas eu prefiro usar Nietzsche, pra não perder o costume.

A necessidade do ilógico. — Entre as coisas que podem levar um pensador ao desespero está o conhecimento de que o ilógico é necessário aos homens e que do ilógico nasce muita coisa boa. Ele se acha tão firmemente alojado nas paixões, na linguagem, na arte, na religião, em tudo o que empresta valor à vida, que não podemos extraí-lo sem danificar irremediavelmente essas belas coisas. Apenas os homens muito ingênuos podem acreditar que a natureza humana pode ser transformada numa natureza puramente lógica; mas, se houvesse graus de aproximação a essa meta, o que não se haveria de perder nesse caminho! Mesmo o homem mais racional precisa, de tempo em tempo, novamente da natureza, isto é, de sua ilógica relação fundamental com todas as coisas.

Nietzsche, humano, demasiado humano, 31

A relação fundamental com todas as coisas é algo que sinto que devo resgatar (resgatar?!) depois de estar por tanto tempo usando as lentes do ateísmo. Como um desafio, não intelectual, mas espiritual. Enxergar o que não fomos treinados a ver é um imenso desafio, porque exige uma nova espécie de atenção, uma atenção que está constantemente sob ameaça de ser de novo tragada para as engrenagens analíticas do racionalismo, da minha tendência lógica e intelectual. É difícil aceitar a indeterminação porque aceitá-la exige mais que virtudes intelectuais, requer a coragem de quem ama o destino e é capaz de dizer sim a todas as coisas, não fugir do necessário — abandonar a ilusão do controle (que é o motor da ciência) e cruzar as fronteiras do ateísmo em direção a algo não inteiramente conhecido.


Antonius Block ainda é um dos meus heróis.

Sobre a Astrologia

De onde vem a tendência crescente a negar o caráter científico da Astrologia? O Círculo de Viena tinha sólidas razões para querer eliminar do mapa tudo que não pudesse sustentar as credenciais científicas. Quando o Wittgenstein do Tractatus Logico Philosophicus apareceu com seu modelo figurativo da linguagem não surpreende que ele tenha sido saudado como o tão esperado Messias. (Um meme pode ser incrivelmente didático pra explicar algo complexo.) Ante um modelo figurativo da linguagem o anseio de falar (produzir discurso) sobre Ética, Estética, Religião ou Metafísica deveria ser entendido como disposição compreensível, embora o discurso resultante dessa disposição não chegasse nem mesmo a ser falso, era simplesmente carente de sentido. Para uma linguagem figurativa o mundo é um conjunto de fatos e todo enunciado que não pode ser reduzido a fatos não cumpre exigências elementares e necessárias para que seja significativo, embora possamos compreender o pendor a falar do que está fora do radar factual (Kant, antes de Wittgenstein, já havia tratado disso). Nada mais indicativo desse projeto do que o título do livro de Rudolf Carnap, A construção lógica do mundo. Esse projeto radical, no entanto, já foi pro brejo há muitos anos*.

No entanto, a tendência atual a recusar o caráter científico da Astrologia parece na realidade impulsionada pela polarização política que tem varrido o mundo. As pessoas se sentem instadas a se posicionar ou a favor da ciência e do progresso ou a favor dos terraplanistas e do obscurantismo de todos aqueles que, de um modo ou de outro, acabam associados a este segundo grupo. A mera omissão ou a recusa em apresentar imediata e prontamente o apoio à ciência pode ser suficiente para lançar alguém na zona cinzenta que envolve esse segundo grupo. (Imagine então criticar a ciência e os cientistas.) Por isso as pessoas se apressam em criticar o que aparentemente deve ser criticado e em manifestar seu apoio incondicional (dogmático?) à ciência. — Afinal de contas, não é hora para críticas, nesse momento devemos agir como os militares, como uma ordem unida.

Não acho que a Astrologia precise da chancela da ciência, tal como não acho que a religião precise fundamentar suas perspectivas com argumentos racionais — embora seja inteiramente compreensível a tendência a emular a ciência. Há valor e importância fora da ciência, embora pareça difícil enxergá-los. A ciência tornou-se um empreendimento tão imensamente colossal, tão absurdamente inalcançável para nós, pobres mortais, que sentimos que devemos, mesmo sem compreendê-la minimamente, manifestar nosso apoio, pela intuição de que isso é o correto a ser feito. E é claro que essa intuição se reforça pela representação binária e redutora de tudo que não é científico, como se a luta entre bem e o mal fosse reencenada agora num novo palco.

O neurologista Sidarta Ribeiro tem uma perspectiva interessante sobre o sonho, ele lembra que o sonho sempre foi um fator importante na hora de decidir o que fazer. Não se trata de voltar ao tempo em que tínhamos mais fatores que considerar, se trata apenas de avaliar reflexivamente o papel da conhecimento como único fator de determinação do que devemos fazer — e nossa consequente atitude em relação a todos os outros possíveis fatores. Se você perguntar ao entusiasta apoiador da ciência como o conhecimento ajuda na constituição dos quadros normativos da sociedade pode estar seguro de que invariavelmente será soterrado por uma avalanche de lugares comuns. E isso não se limita aos leigos. Mesmo entre cientistas e estudiosos da ciência está longe de ser mais que um lugar comum o entendimento sobre o lugar da (ciência|conhecimento) na sociedade. Para quem não se sente confortável repetindo (papagaiando!) irrefletidamente argumentos alheios convém hesitar e tomar distância da tendência reativa a condenar imediatamente o que não é científico. É difícil acreditar que algo útil, interessante ou desejável resulte dessa tendência.

E para quem quiser se aprofundar nessa discussão vale a pena ler essa série de posts sobre o filósofo da ciência Paul Feyerabend e a Astrologia. Feyerabend foi apresentado numa entrevista à Scientific American assim: “Paul Feyerabend foi realmente o pior inimigo da ciência?” Essa ideia é uma tremenda injustiça, mas a quem ainda importa ser justo?

* Eu já ouvi um professor de Física dizer, se não me falha minha traiçoeira memória, que o neopositivismo já nasceu morto por ignorar (quase deliberadamente) os impactos filosóficos da indeterminação quântica.

O compromisso com a vida

Spoilers de First Reform (No coração da escuridão, tradução portuguesa)

Uma das cenas chave de First Reform é quando o pastor vai (orientar || aconselhar || conversar com) o ambientalista que não concorda com sua esposa, que está grávida, sobre ter um filho. Essa cena é importante não apenas porque ao final o pastor lembra-o de que o corpo que carrega a criança é de sua esposa e que a decisão cabe a ela. É importante também porque o que está em jogo na cena é uma discussão sobre o compromisso com a vida.

O ambientalista defende que não estamos zelando pelo verdadeiro compromisso com a vida e que por isso seria egoismo lançar uma nova vida nesse ambiente desastroso e hostil que temos permitido que nosso planeta se transforme. Como é um cientista, ele soterra o pastor com uma tonelada de dados que tornam praticamente irrefutável o cenário catastrófico que ele projeta. O pessimismo demonstrado e demonstrável. Para quem não substituiu a crença na providência divina pela crença cega na capacidade da técnica e da ciência é realmente difícil não ver o colapso logo adiante. Eu não tenho notícia de nenhum marco teórico (físico, matemático, econômico ou tecnológico de maneira geral) que ofereça a mera possibilidade de soluções para a rede de problemas derivados de nossa necessidade de produção desenfreada. Do amplo e heterogêneo espectro de tecnologias de ponta que poderíamos desenhar, de machine learning até o uso de hidrogênio como matriz energética, nada disso parece senão uma promessa de redenção tecnológica — mas nada nem perto de possibilidades verdadeiramente transformativas no curto e médio prazo. Mas na certa eu ando desinformado sobre as novidades teóricas do mundo tecnológico — é muita coisa pra acompanhar, vocês sabem. Elon Musk anda dizendo que vamos pra Marte, então parece que logo tudo se ajeitará. (Se é que realmente nós temos algum problema, como nos lembra não poucas vezes a rara inteligência de alguns presidentes de paises do continente americano e seus conselheiros).

Constantemente volta à minha lembrança essa tirinha genial

De todo modo, o caso é que embora eu esteja alinhado ao pessimismo do ambientalista (e às suas verdades), há muitas maneiras de considerar qual é realmente o verdadeiro compromisso com a vida. Por exemplo, há quem pense que o verdadeiro compromisso com a vida consiste em não permitir que nenhuma gestação seja interrompida. Eu sempre fui a favor do aborto e continuo sendo, mas não acho que seja possível impor às pessoas uma certa concepção do que é verdadeiro. Mesmo que essa concepção seja alguma das muitas que exemplificam a variedade das concepções científicas. Isso não significa que a ciência seja desimportante, significa apenas que a ciência nunca poderá eliminar a vontade, o arbítrio — como sempre quis (e continua tentando, mesmo por vias filosóficas). As consequências disso são tremendas. O que me lembra uma observação de Schopenhauer anotada por Wittgenstein:

Se você se encontra perplexo tentando convencer alguém de algo sem ser capaz de sair do lugar, diga a si mesmo que é a vontade e não o intelecto que você está enfrentando. 

Se a vontade fosse eliminada, a coerção linguística reinaria (tornando o uso da linguagem quase meramente sintático, como as instruções e rotinas de programação), como reina na lógica e na matemática* e assim poderíamos fazer quase que uma engenharia de visões de mundo. Seríamos como robôs. Como isso me parece um projeto (ou um sonho) que não se adequa à experiência que temos da linguagem, sempre que minha visão de mundo (altamente cientificizada) se vê desafiada pela visão de mundo das pessoas que são contra o aborto por motivos religiosos penso que minha persectiva em relação a elas não pode ser a de alguém que precisa demonstrar. Quer dizer, eu não preciso eliminar a possibilidade contrária e assim provocar um constrangimento que, sendo lógico e não empírico, é necessário. Ninguém pode ser a coagido a aceitar a conclusão de um argumento, por mais evidente que ele seja e por mais falsa que seja a posição contrária. E, no entanto, continua sendo essa a mais importante tarefa da verdade e sua maior pretensão: eliminar a possibilidade contrária (o falso). Desde Descartes, e quem sabe até antes disso. Minha tarefa deve ser menos convencer e mais persuadir.

Quando se encontram dois princípios que não podem ser reconciliados, seus partidários se declaram mutuamente loucos e hereges

Wittgenstein. Sobre a certeza, §611

Para mim, a diferença entre a minha perspectiva e das outras pessoas não é uma diferença entre modos de determinar o verdadeiro (aquilo que é fato), os modos científico e o religioso**. Antes, se trata de uma diferença de valores e de modos de ver o mundo que não se excluem. Meus valores me obrigam a estender meu compromisso com a vida mais além dos fetos, para os que nascem, às crianças, aos adultos, aos mais velhos e até às pessoas que ainda não nasceram. Em realidade, me sinto compelido a ver a vida em termos sistêmicos, de modo que o humano é apenas parte de uma imensa rede interdependente, a vida de todas as criaturas é significativa e tende a me sensibilizar. Por isso compartilho do pessimismo do ambientalista, creio que não respeitamos a vida como um substantivo singular, como algo que só arbitrariamente pode ser separado e dividido em partes. As unidades que compõe o tecido da vida, os seres vivos — e mais particularmente os seres humanos —, não são mais que uma ilusão linguística, por assim dizer (a vida é um sistema contínuo e não discreto), que provoca efeitos profundamentamente indesejados. Todos os serem vivos (unidades) dependem da vida (totalidade).

Assim, o compromisso com a vida que se restringe à defesa de fetos me parece demasiadamente estreito, mero automatismo de defender aquilo que fomos treinados a defender. Se abandonamos a perspectiva sistêmica para olhar o ser vivo em sua circunstância, como dizer sim incondicionalmente a tudo que lhe pode acontecer? A vida pode ser muito dura, árida e insustentável, para que possamos preferi-la em qualquer condição. Albert Camus abre O mito de Sísifo afirmando que o único problema filosófico realmente importante é saber se a vida vale a pena. Fico feliz que existam tantas pessoas plenamente convictas sobre algo que inspirava dúvidas filosóficas em Camus, mas eu não tenho a mesma convicção. E por isso não acho que possamos nos livrar, sem embaraço, da responsabilidade de lançar uma nova vida no mundo. Em certa medida não deixamos de ser causalmente responsáveis por tudo que virá, pelas condições miseravelmente sombrias que legaremos às futuras gerações pela adesão a um pragmatismo cego e conveniente. Somos sim responsáveis. (Não sou nada nietzscheano, como podem ver). E diante da nossa enorme responsabilidade e das suas gigantescas consequências, como não desesperar?

O filme oferece uma resposta, ou melhor, o pastor, em um momento kierkegaardiano. O desespero só pode ser combatido com coragem. Mas então outras questões se colocam: onde encontrar a coragem para enfrentar esse tsunami que nós mesmo criamos? Em realidade, como fazer com que pessoas já tão imensamente sobrecarregadas com as dificuldades de suas próprias vidas, ou iludidas pelas falsas promessas que o capitalismo vende para mantê-las presas à ilusão do consumo, prestem alguma atenção a esse problema?

* Mesmo que os acordos de matemáticos e lógicos sejam ainda fortes o bastante para sustentar (simbolicamente) esse status paradigmático que os estudos formais e as hard sciences disfrutam, a verdade é que há hoje diferenças significativas que em certo sentido já abalaram as bases desse paradigma desenhado e sonhado (de maneiras distintas) por Descartes, Kant e Frege, por exemplo.

** O modo científico não admite modelos alternativos, diga-se de passagem. Se eu coloco as duas perspectivas lado a lado é porque não tomo partido da verdade e assumo uma perspectiva antropológica.

Razão e Fé

Desde que comecei a ler filosofia, na adolescência, minha vida tem oscilado entre a razão e a fé, com claro pendor racional, devo dizer. Na descoberta de que algo tão natural (e naturalizado) quanto a fé pode ser questionado há qualquer coisa de profundamente transformador. Pouco a pouco foi se desenvolvendo em mim um respeito pelas armas e instrumentos racionais, ao passo que sentia a fé como mero consolo, quando não um embuste feito exclusivamente para manipular. Por consequência, diminuia a estima e o respeito pelas visões religiosas. Não é coincidência que meu interesse pela filosofia tenha começa com Sartre e Nietzsche.

Hoje em dia eu penso que a principal diferença entre a fé a razão diz respeito à visão da totalidade. O conhecimento é o instrumento com que a razão lida com o real, de tal sorte que a totalidade está dividida entre o que se conhece e o que não se conhece (não há nada excluído desse espaço lógico). Mesmo aquilo que não se conhece não está fora do radar científico (considerando que a ciência é a mais forte expressão da razão). Por exemplo, não sabemos de que forma os disparos neuronais em baixo nível são capazes de criar um efeito de alto nível como a consciência, mas isso não nos impede de considerar a consciência um tema científico e um fenômeno inteiramente biológico (para repetir o mantra de John Searle). Tampouco sabemos como é possível que galáxias e outros sistemas astronômicos se mantenham unidos se a gravidade entre corpos que os compõem não é suficiente para explicar essa união, mas é exatamente a falta desse conhecimento o que deu lugar à hipótese da matéria escura. O que se conhece e o que não se conhece estão ali no mesmo mapa, sob o mesmo olhar ansioso por transformar em conhecimento todo o desconhecido. Portanto, a ciência é um progressivo conquistar novos territórios, convertendo em conhecimento o que antes era desconhecido. O mais marcante da ciência é justo a pretensão de virar o jogo e transformar a totalidade em espaço conquistado pelo conhecimento.

A medida que o tempo passou, a antiga visão conflitiva da relação entre razão e fé foi arrefecendo e eu passei então a resgatar o respeito pelas visões religiosas e a me reconciliar com minha própria história, porque, como a maioria dos brasileiros, a religião faz parte da minha história e das minhas circunstâncias. Curiosamente, a filosofia foi também o catalisador dessa mudança. É claro que a insistência de Antonio Simas em sublinhar a força e o enraizamento das nossas heranças culturais também determinou uma mudança de atitude, mas foi sobretudo com Wittgenstein que pude, entendendo mais detidamente a razão, entender também a fé. Wittgenstein me fez entender que a razão é, sobretudo, a crença no poder das explicações e talvez tenha sido a formulação mais cortante do Tractatus Logico-Philosophicus, um livro que se propõe a realizar a tarefa de estabelecer as condições de todo discurso com sentido, que tenha me despertado do meu sono dogmático.

6.52 Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é precisamente essa.

Esse comentário explodiu como uma bomba em minha cabeça, pois ele é parte do livro que foi uma referência para filósofos preocupados em exconjurar tudo que não fosse redutível à verificação, à confirmação racional e científica. O próprio livro trata como esforço vão a tentativa de articular um discurco significativo sobre ética, estética e, naturalmente, sobre questões religiosas — embora Wittgenstein reconheça o que há de louvável nesse esforço. Nesse contexto, vê-se porque parece estarrecedor que se insinue num livro tão pouco favorável a perspectivas religiosas que o próprio sentido é irredutível à pretensão de emoldurá-lo no quadro de problemas e soluções com o qual a ciência aborda o quer quer que seja. Os problemas da vida estão fora do alcance da ciência. É claro que o pensamento de Wittgenstein mudará radicalmente, mas persistirá a percepção de que ciência não é mais que um instrumento (e um instrumento a serviço da verdade) e de que o sentido está sempre num nível acima, inalcancável ao propósito totalizante (totalitário?) da ciência (embora sempre expresso no trabalho da arte e da poesia). As percepções de Wittgenstein sobre ciência, verdade e, sobretudo, sentido, me levaram a pensar que a religião é uma perspectiva diferente diante da totalidade. Enquanto a ciência é a expectativa de que a totalidade possa converter-se num espaço inteiramente familiar e o desejo de alcançar aquilo que Hilary Putnam chama de God’s point of view, a religião parece uma atitude assumidamente resignada em relação à distância entre o que se conhece e o que não se conhece. Mais do que isso, ela é uma atitude propositalmente dirigida a esse abismo, é uma aceitação. Tendo isso em vista, naturalmente começou a medrar em mim um olhar mais tolerante e interessado pela experiência religiosa, porque me pareceu que em alguma medida precisamos de uma atitude semelhante e que, portanto, a religião poderia nos ensina algo.

Quando não está inteiramente encaixada nos estereótipos e tipos pelos quais é acusada por todos os males do mundo, a religião representa e cultiva uma atitude inteiramente diferente em relação à totalidade. A busca pelo conhecimento que se desdobra da ânsia pelo controle e domínio tem consequências políticas e pessoais que não podem ser remediadas com mais conhecimento. (Ainda somos platônicos, e não aristotélicos, no que diz respeito a relação entre ética e conhecimento). Não é como se ao atingirmos um certo domínio de conhecimento nos convertêssemos automaticamente em sábios, em pessoas cuja relação com o que se ignora é não apenas saudável, mas capaz de dar lugar a visões, perspectivas e ações transformadoras (do ponto de vista ético e político). Em suas melhores expressões a religião é o esforço para encontrar um atitude diante do abismo intransponível do que não explica, uma atitude que não seja a urgência neurótica pela totalidade do conhecimento, pela busca do God’s point of view. É preciso que fique claro que não há nessa atitude nada de incompatível com a busca pelo conhecimento. O que a atitude religiosa tenta cultivar é uma relação com a totalidade não mediada pelo saber — sem desvalorizar o saber. A relação do saber com a totalidade é instrumental. O saber quer mapear todo o campo do possível, quer determinar tudo que pode acontecer e como, de modo a poder controlar esse acontecer. Controle é a palavra chave. Não é coincidência que o determinismo seja uma tese forte entre filósofos e cientistas. (Desculpa, não é uma tese, mas um fato; o ônus da “prova” está com os que afirmam a liberdade, nesse modo de compreender o dilema.) Embora a religião institucionalizada aponte caminhos, fórmulas, mitos, ritos, isso não significa que a religião não possa ser experimentada fora das igrejas e instituições religiosas. O desafio dessa religião, ou melhor, das pessoas que sentem e vivem esse sentimento religioso é o de construir sua própria relação com a totalidade. Uma relação que lhes permita saber, conhecer, e ao mesmo tempo viver com o que sabem sem que sejam assombradas por aquilo que não se sabe; que lhes traga a paz que nunca pode vir do desejo de controle absoluto, algo que lhes permita aceitar que a mente humana, mesmo a mais privilegiada, verá sempre em algum campo da experiência uma zona de sombra que não pode ser iluminada por nenhuma luz — algo que lhes permita aceitar tudo isso sem cair em desespero.

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Parecia impossível terminar esse texto. No fim, ele se dirigia a discussões laterais que me levavam a temas interessantes, mas não organicamente articuladas ao que nele era medular. Por coincidência (ou não) assisti First Reformed e consegui rematá-lo. Queria muito poder recortar um pedaço do filme e colocá-lo aqui, mas é uma pena que as políticas do Youtube sejam tão restritivas com armazenamento de conteúdo copyright. Fiquem então com o trailer e a recomendação.




Por mais paradoxal que pareça, eu não pude deixar de pensar, mais uma vez, quando escrevi o final do texto no Amor Fati de Nietzsche.

Claro que o resgate da minha estima pelas questões religiosas tem um quê de essencialmente fideista e místico.

O que a ciência e a religião nos contam sobre a experiência e a totalidade

Pilares da criação

6.52 Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é precisamente essa.

Acho que consegui formular uma ideia geral sobre aquilo que me atrai nesse aforismo de Wittgenstein que aparece inúmeras vezes aqui. É que aí fica evidente até onde podemos confiar na ciência, e pra quê. Vivemos numa sociedade que confia cegamente na ciência: nós a colocamos no lugar de Deus — pra usar uma imagem nietzscheana. E é fascinante que Wittgenstein, em Cambrigde, escrevendo um livro que iria inspirar o positivismo lógico, não tivesse pudores em exibir uma desconfiança tão aberta em relação à ciência.

É claro que à ciência interessa a totalidade, o todo, a experiência entendida como um continuum sem partes, tal como a experimentamos cotidianamente, ao abrir os olhos. Entendida como um projeto ideológico racional, a ciência aspira responder a todas as questões científicas possíveis, mas isso não significa nada mais do que estabelecer um controle absoluto sobre os fenômenos. Por exemplo, gostaríamos de poder compreender e unificar as forças e leis quânticas (subatômicas) às leis clássicas, de sorte que todo fenômeno possível do universo pudesse ser determinado por um conjunto de leis relativamente homogêneo. A chave dessa perspectiva é: controle — e se olharmos mais de perto: segurança. O desejo de subsumir todos os fenômenos a leis muito gerais, leis que atravessam todo o campo do possível, não é senão o desejo de mapear todos os fenômenos de acordo com a cartografia científica, de determinar todo o campo do possível, de sorte que toda a expressão momentânea do desconhecido se traduza, pela aplicação dos nossos conhecimentos, num fenômeno imediatamente conhecido, explicado e, consequentemente, controlado. A ciência é ambiciosa, sua produtividade e eficiência são colossais, mas por sua própria característica ela está sempre pouco à vontade ante um fator importante da experiência e da experiência compreendida como totalidade: o desconhecido. Para a ciência, o desconhecido é aquilo que deve ser eliminado.

(Claro, o desconhecido não é mais que uma metáfora, um modo de designar algo que está necessariamente do lado de fora e que não pode ser excluído pelo esgotamento das questões científicas.)

O aforismo de Wittgenstein não faz mais do que enfatizar que o conjunto dos objetos (e questões) possíveis da ciência não coincide com o conjunto de questões que nos parecem importantes. A experiência do mundo transcende e transborda para além dos limites da ciência e do conhecimento. É um todo maior do que a soma das partes. Para mim, isso significa que de saída o projeto científico — de controle e segurança — tem algo de profundamente ingênuo e, em certo sentido, ineficiente. Quer dizer, nós moldamos nossa sociedade e nossos modelos de produção e de relação social em função de algo que não pode se dar. E aqui uma frase de Kafka, da sua Carta ao pai, talvez possa ajudar de alguma maneira: “A vida não comporta cálculo”. Quer dizer, a experiência do controle, da subordinação dos fenômenos a regras e leis definidas pela ciência não esgota o espaço total da própria experiência, a vida. E é assim que estamos sempre e inevitavelmente diante da vida: como quem não tem ferramentas suficientes para enfrentá-la. Então a questão talvez seja abandonar essa perspectiva predominantemente instrumental que é o sentido da própria ciência. Por sua vez, o que a religião nos oferece é uma perspectiva diferente. Claro, a própria religião se contaminou com o propósito produtivo da ciência, com seu poder, de sorte que suas próprias questões parecem exigir uma explicação (pra ilustrar uma outra ocasião em que o aforismo de Wittgenstein aparece). Mas a religião tem um sentido irredutível a esse enfeitiçamento pelo poder explicativo da ciência, um sentido que nos coloca diante da experiência (e do desconhecido) de uma outra maneira. Wittgenstein sempre manifestou enorme simpatia e respeito pela experiência religiosa (Dewi Zephaniah Phillips, conhecido wittgensteiniano, escreveu um livro que há tempos quero ler: Religion without explanation). Em certo sentido, esse estar à vontade diante de um universo pleno, não fragmentado analiticamente e cindido pela barreira intransponível do desconhecido, parece caracterizar a perspectiva religiosa e marcar sua diferença com respeito à ciência.

Quando não enfetiçada pelo poder que inevitavelmente engendra, a religião, ou pelo menos uma certa perspectiva mística, parece refletir um ethos mais ajustado a uma experiência que não pode elidir essa totalidade na qual o desconhecido se integra como componente inseparável. É bem verdade que esse ethos não tem como única fonte a religião e a mística (bem o sabia Nietzsche), mas convém reconhecer, nesses tempos em que a polarização entre os apoiadores da ciência e seus supostos detratores ganha evidência, que a experiência religiosa não é uma forma primitiva, proto-científica, mitológica, de lidar com a experiência. Ela tem algo de uma sabedoria que a própria ciência parece ignorar e que, por consequência, tem desaparecido do quadro das ferramentas com que lidamos com o mundo.

As duas perspectivas (científica e religiosa) não são incompatíveis, mas a ciência tem um quê de totalitário, o que significa que entre outras coisas lamentavelmente suas limitações são cada vez menos percebidas, ainda que hoje, mais do que nunca, uma perspectiva crítica em relação à ciência seja necessária. Precisamos não apenas desenvolver uma presença não instrumental no mundo, mas reconhecer o próprio papel dos cientistas na determinação do seu panorama atual — e reconhecer que embora a ciência possa nos ajudar a alcançar todas as metas postas pela humanidade, seu instrumental não tem privilégios quando se trata de estabelecer as próprias metas.

Por fim, deixo um outro comentário interessante de Wittgenstein:

Quando alguém que acredita em Deus olha ao redor e pergunta: “De onde vem tudo isso que eu vejo?” “De onde vem tudo?” ele não está pedindo uma explicação (causal); e o propósito de sua pergunta é que é a expressão de um tal pedido. Assim, ele está expressando uma atitude com respeito a todas as explicações. Mas como isso se manifesta em sua vida? É uma atitude que toma certa questão com seriedade, mas então em determinado ponto já não lhe trata seriamente, e declara que outra coisa é ainda mais séria. Nesse sentido uma pessoa pode dizer que é muito sério que fulano tenha morrido antes de terminar um certo trabalho; e em outro sentido não tem nenhuma importância. Aqui nós usamos as palavras “em um sentido profundo”. 

Essa atitude com respeito a todas as explicações dá muito o que pensar.

PS. A ideia era comentar uma impressão causada pelo aforismo de Wittgenstein, e não o aforismo ele mesmo. Ainda que meu comentário tangencie aspectos vinculados ao aforismo, minha pretensão não era analisá-lo.
PPS. A ideia da psicanálise como uma ética (mais que uma ciência, como as psicologias comportamentais, por exemplo) me parece interessante porque ela não tem como objetivo uma cura, no sentido em que uma ciência busca uma resposta, mas uma certa atitude. Em alguma medida, apesar de tudo, essa atitude parece guardar alguma afinidade com certas questões religiosas e místicas.

Teologia da prosperidade: egocentrismo a serviço de uma máquina de fazer dinheiro

Diferente de mim, talvez vocês conheçam crédulos (especialmente evangélicos) dignos de serem reconhecidos como pessoas boas. A maior parte das que eu conheço (estimativamente 96 a 98%) são pessoas completamente mundanas, absorvidas por inteiro em seus próprios problemas e preocupações. Quando porventura se arriscam a olhar pro lado, quase sempre o fazem para julgar e condenar aqueles que não se encaixam em suas estreitas visões de mundo. Não são praticantes da famosa (e irrealizável) prescrição biblíca “amar o outro como a si mesmo”, antes, são odiadores prontos a destilar rancor em quem quer que se apresente para lhes dizer o mínimo de contrariedade (ou às vezes nem isso).

Autoproclamadas cristãs, essas pessoas costumeiramente passam ao largo de qualquer gesto de bondade, tolerância, compreensão e amor (que não seja o universal self-love). E, no entanto, vejam só, não só esperam com sinceridade estarrecedora que um Deus as recompense por suas vidas devotadas aos seus próprios interesses, como investem dinheiro nisso, alimentando fábricas de lucro a que costumamos chamar igrejas.

Será que o egoísmo refletido aí é uma consequência ou um pressuposto da participação nesses cultos? Eu bem sei quanta tolice é preciso engolir para acreditar nas coisas que dizem pastores cada vez mais — para dizer o mínimo — limitados (há algo de desculpável em ser enganado por pessoas astutas, o que não é o caso*), contudo, é preciso um estado de completa letargia e estupor egoístico para acreditar que num mundo preenhe de maldade e absurdos inomináveis, um suposto Deus iria recompensar, não boas pessoas e seus atos bondosos, mas burocráticos oradores e pagadores de dízimo. Será que isso faz sentido na cabeça deles?

* Ou talvez a maior prova de que eu esteja errado seja a eficiência com que eles arrecadam caminhões de dinheiro.