Foto de Pierre Verger |
Quando voltei ao Brasil, depois de alguns anos morando em Madrid, notei o que até então não havia notado: como a desigualdade se manifesta no modo como as pessoas se enxergam e se tratam. É claro que em certo sentido eu sabia disso, mas eu não sabia o que poderia significar uma transformação no modo como as pessoas se tratam até vir pra cá. O que me fez lembrar algo importante: saber e entender podem ser coisas diferentes. Quando você tem a oportunidade de viver numa sociedade um pouco mais igual que a brasileira algumas coisas ficam claras e o que mais me chamou a atenção tem a ver com a ideia de respeito. O respeito é decisivo para determinar o modo como as pessoas se veem e se tratam. Em linhas gerais, o respeito dá lugar a uma escala com dois extremos: numa ponta estão as pessoas que sentem que precisam ser respeitadas, na outra as pessoas que agem como se já tivessem respeito. Quando você sente que precisa ganhar o respeito dos outros, é preciso lutar e você está constantemente atento ao desrespeito. Por outro lado quando alguém sente que já tem respeito, nem mesmo o nota (por isso, por exemplo, é comum que brancos não entendam as demandas raciais, etnicas, etc). Sentir e notar podem ser coisas distintas: nós todos sentimos nosso coração batendo mas nem sempre o notamos. Notar é, por assim dizer, um jogar a luz da consciência sobre algo. Quando se tem a cabeça livre da luta diária pelo respeito, se está livre para pensar o que quiser, imaginar o que quiser, e, repito, não é incomum que por isso não se compreenda a luta alheia (pois esse entendimento exige além de capacidade cognitiva, uma certa disposição emocional). O respeito é algo muito elementar e tem um efeito muito forte na psicologia humana, suas expressões são inegáveis e frequentes mesmo no reino animal. O respeito regula e mantem a relação entre pares nas mais diversas espécies animais. Tudo isso nos leva a algumas perguntas: como e de que modo cada um obtém sua quota de respeito? Há quem simplesmente não tenha quota alguma? Grupos, pessoas? O respeito pode vir pelo medo, pela força, não é mesmo? O que isso implica?
Eu acho que nós não estamos acostumados a olhar as pessoas com um respeito indiscriminado, que não faz distinção de quem sejam elas (daí porque a cultura do “Você sabe com quem está falando?”). Não fomos ensinados a tratá-las como se cada uma tivesse sua própria vida, suas próprias dores e tragédias. É muito comum, no Brasil (embora eu não pretenda que essa constatação seja nada mais que uma simples impressão), esse olhar que toma o outro como um mero elemento num cálculo de interesses — objetificado, num certo sentido. Não nos importamos com o que não nos diz respeito. Ou ainda aquele outro que se manifesta na boca de quem diz: “Vai trabalhar, vagabundo!” pra uma pessoa que está pedindo esmola ou simplesmente na rua, sem casa. Não importa qual seja a parte que cabe a esse tipo de mentalidade no quadro nacional, ela é sintomática de um modo superficial de olhar o outro, que não reconhece a história e a profundidade intrínseca de certas pessoas. Digo certas pessoas porque, claro, uns serão sempre mais iguais que outros. E quando eventualmente estes olhares se fixam naquilo que normalmente não notam (visibilidade está ligado a tudo isso, me parece), tendem a ter um carácter acusatório. Por exemplo, não é incomum encontrar quem ache por bem culpar moradores de rua pela sua condição. Ora, um morador de rua pode bem ter sido o “culpado” pela sua situação, a questão não é essa, o que importa nessa atitude é o que ela pode trazer de recusa a avaliar o outro segundo uma medida que não seja a sua própria, intrínseca, insular, quase solipsista. É como se ela quisesse dizer: “esse vagabundo não fez as coisas certas e agora quer me envolver nos seus problemas”. O importante nessa frase é a ideia de um modo único (e correto) de lidar com a vida e a acusação contra aqueles que não seguiram este modo. O respeito é o esforço constante e quase sempre malogrado de olhar o outro com profundidade, e não implica o abster-se de julgar tão comumente professado entre cristãos, mas solicita uma certa capacidade de julgar e um compromisso com o aprimoramento do juizo. Quer dizer, uma vontade de julgar cada vez melhor, de maneira mais justa. Pela profusão de tribunais que os nossos tempos abrigam está muito claro que a importância da capacidade de criar leis e normas suplantou o valor da faculdade de julgar — e de julgar com justiça. É perfeitamente compreensível que as lutas de algumas minorias e maiorias subjugadas tenha produzido a necessidade de ampliar direitos, de criar normas onde predominava a arbitrariedade (quando não a tirania) de forças normativas conservadoras (não reflexivas), mas é preciso ter em conta também, se o objetivo é mesmo a justiça, a nossa capacidade de julgar — e de julgar mesmo os “culpados”. Isto é, a justiça parece exigir também um compromisso de aperfeiçoar constantemente nosso modo de encarar outras visões de mundos, outras experiências e percursos, outras formas de vida.. e mesmo outras vidas*. A convicção do juízo não pode ser frouxa, mas a dúvida deve sempre alimentar nossa vontade de conhecer melhor a grande variedade, o formigueiro das ações humanas, para usar uma expressão do velho Wittgenstein. No Brasil parece predominar uma sede de julgar e, ao mesmo tempo, uma preguiça e um desinteresse em conhecer, em inteirar-se das circunstâncias da vida das outras pessoas. Se é perfeitamente compreensível que não nos interesse a vida de todo o ser humano com que cruzamos, ao menos devemos admitir a possibilidade de que sua história não seja determinada pelas mesmas regras e circunstâncias que a nossa, do contrário o “Vai trabalhar vagabundo” parece inevitável.
A discussão mais ampla na verdade se dirige à má distribuição do respeito que alimenta a desigualdade não apenas econômica mas também social, da qual a desigualdade econômica é um reflexo. Esse má distribuição se faz sentir no modo como as pessoas se tratam, na relação entre elas no mais variados ambientes da cidade, públicos ou privados. Mesmo eu, típico mestiço brasileiro, nunca me senti a vontade em certos ambientes em Salvador, enquanto que raramente me sinto desconfortável em Madrid. Não porque sofresse racismo ou qualquer coisa do gênero, é que em Salvador certas misturas não acontecem (salvo no carnaval e, hoje em dia, em tempos de camarote, talvez nem isso) e as pessoas naturalizam um olhar que vê tudo aquilo que não pertence à bolha na qual circulam com certa condescendência. Essas pessoas estão acostumadas a estar em um ambiente homogêneo, onde estão sempre os mesmos tipos e tudo que parece destoar deste padrão é visto com desconfiança e não com naturalidade. Assim, uma das maneira de representar, ou melhor, de apresentar uma sociedade mais igual, de ilustrá-la, consiste em dizer que numa sociedade mais igual a maior parte das pessoas pode se sentir a vontade num número maior de ambientes. Porque há um maior respeito pelas diferenças, respeito que se sente sensivelmente mesmo que seja meramente formal ou ainda que conflitos e mesmo abismos existam (pensando na França e em Paris, por exemplo).
O que é que determina essa diferença, esse clima (talvez não exista palavra melhor) tão comum em muitos ambientes no Brasil? Não sei nem por onde começar, há tantas respostas, tantas perspectivas, não me arrisco a apresentar a minha versão. No entanto, suspeito que a escravidão é um aspecto comum a todas elas. De todo modo, o que eu queria era apenas registrar brevemente essa conversão de um olhar. De um olhar que, vendo a mesma coisa, passa então a ver algo diferente, em função de uma mudança de entendimento. E, claro, as possibilidades éticas (práticas) e teóricas que isso implica.
* Tudo isso segundo uma medida que deve sempre tender a respeitar a singularidade da vida de cada um quase até o ponto de tornar inviável a própria justiça, tamanho o entendimento da sua dinâmica interna, isto é, quase apagando a diferença decisiva entre entender e justificar.