Não há profissional de Filosofia que já não se tenha embaraçado por essa pergunta. Respondê-la é uma tentação, pois ela mesma é um bom convite à filosofia. Por isso devemos examinar com cuidado o que há por trás dela.
Por que a filosofia deve servir a alguma coisa? A utilidade e a serventia podem se dirigir indiscriminadamente a todos os pontos? Quando faz sentido perguntar pela utilidade de algo? Valor e utilidade estão ligados?
Não é preciso responder às perguntas acima para adivinhar o rumo do texto. O que está em jogo aí é uma utilidade que se impõe como padrão avaliativo quase com exclusividade, obscurecendo as práticas e dimensões que não estejam abrangidas em seu domínio, ou fazendo-as recair no seu próprio espaço. Falando superficialmente, o Império da Utilidade talvez seja a expressão da contaminação da maior parte das camadas da vida pelo ponto de vista científico. Filosoficamente, é a marca da falta de clareza sobre os limites entre o empírico e o conceitual. A discussão filosófica é rica, abrangente e distingue linhas bem diversas na filosofia (os que acreditam que é possível fazer teoria filosófica e os que negam o papel teórico da filosofia, pra citar um aspecto). No entanto, aqui, convém nos deter apenas na contaminação cientificista.
Marcuse escreveu um livro cujo título traduz com fidelidade aquilo que é central a essa discussão, chama-se The one dimensional man. Em português ele recebeu o título Ideologia da Sociedade Industrial — e com isso muito se perdeu, pois talvez seu aspecto central seja a crítica a uma filosofia que parece estreitar laços com a ciência. O título original é seguramente mais representativo. Essa crítica se deve à leitura singular do pensamento dos positivistas lógicos e da obra de juventude de Wittgenstein. Ainda que a leitura não seja de todo satisfatória, a questão que Marcuse levanta é não só coerente, como instigante. Talvez o próprio Wittgenstein não fosse insensível às suas preocupações se considerarmos a afirmação de que se “todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados”; no entanto, alimentou suas críticas quando retirou do domínio do que pode ser dito significativamente todas essas questões centrais. Marcuse se negava a aceitar que a ciência fosse a nossa única ferramenta para lidar com o mundo. O modelo explicativo, racionalista, que compartimenta todas as coisas em categorias reguladas pelo pensamento lógico e suas regras, não pode dar conta da experiência em todas as suas dimensões — nisso, estranhamente (e Marcuse não percebeu), ele e Wittgenstein concordavam. Porém, duas filosofias tão distintas, embora tenham pontos em comum, não podem ser cotejadas assim superficialmente. Interessante mesmo é a imagem de um homem unidimensional, incapaz de contemplar outras perspectivas.
Perguntar pela utilidade da filosofia em geral é já estar contaminado pelo imperativo produtivo que exige de cada atividade, um retorno, um produto, como se as ações que não fossem dirigidas por fins concretos caressem de sentido e propósito. O poder sedutor da ciência, que tanto aliciou durante os séculos recentes, parece exigir que se estenda seu modo de operação até outros segmentos da vida humana, na esperança de que o sucesso científico se repita também em outras paragens. É assim que se constitui a homegeneidade que Marcuse capturou na expressão Homem unidimensional. Pouco a pouco a multiplicidade vai dando lugar à pretensão cega de reduzir tudo a uma única dimensão. É um equívoco do mesmo gênero daquele que está na base etnocentrismo. Com ele, vem junto a indisposição para aceitar outras formas de saber, outras formas de vida. A pergunta pela utilidade da filosofia, como uma etapa sintomática dessa contaminação, não deve ser respondida, ela precisa ser investigada a fim de que se esclareçam os pontos que confluem para a necessidade de se buscar ali uma utilidade. A filosofia não é inútil, mas também não é útil, não serve a nada. Compreender o porquê disso talvez seja um empreendimento filosófico, mas descobrir o que anima essa confusão, e a pergunta pela serventia, é uma investigação que também se envolve no exame das motivos a privilegiar um modelo em relação aos outros e as consequências dessa escolha.
Faz bem lembrar, sempre que acossados pela pergunta contundente sobre a utilidade, quantas dimensões indispensáveis à nossa própria vida não se deixam abranger por ela. Pergunte por que se penteia assim — e não assado — e verá que não é um propósito que aqui guia suas ações. Não é uma utilidade que está no lastro das mais belas peças e composições musicais, e com isso não se quer dizer que elas são inúteis, apenas que não se deve falar de utilidade, ou que isso não é necessário. Há contextos em que é significativo perguntar por ela — mas quando a pergunta se espalha indistintamente é porque estamos num estágio preocupante de contaminação, prestes a nos tornar homens unidimensionais.
Mas é preciso lembrar que há contexto teóricos em que a pergunta é legítima, no sentido em que é coerente com certos modos de tratamento de questões filosóficas. O que estou dizendo é que em geral, fora da filosofia, quando um leigo nos aborda buscando uma utilidade para ela, subrepticiamente ele advoga em prol dessa visão unidimensional. Reparem que a pergunta “pra que serve a filosofia?” quase sempre pode ser traduzida em (ainda que isso não se confesse): “Por que fazer filosofia se ela não serve pra nada?” É um modo de afirmar esse ponto de vista produtivo e utilitário.