É comum pensar, quando algo nos comove, que estamos sendo afetados diretamente. Como se as impressões acessassem nosso espírito sem intermediários. Por outro lado se consideramos os pensamentos, a atividade intelectual, julgamos executar uma operação, exercer uma atividade que não é nada mais do que uma elaboração do material acumulado pelos sentidos e armazenado na memória. Curioso como o modo mais comum de encarar o funcionamento dos sentidos ou mesmo da atividade intelectual é vivamente marcado por uma forte tradição filosófica. Talvez fosse conveniente dissolver as categorias razão e sensibilidade (para usar o binomio clássico eternizado também pela literatura), contudo, penso que pode haver algo de produtivo em manter as coisas assim a fim de mostrar que, mesmo com esse esquema, as coisas podem correr de maneira diferente (e efetivamente correram, na história da filosofia).
Essa ruptura radical entre razão e sensibilidade* alimenta a antiga ideia segundo a qual tudo que é racional é meramente mecânico, e como se as operações e atividades intelectuais fossem uma espécie de corrupção do sentido original da impressão. Tudo que a racionalidade pode fazer é manipular a matéria das impressões armazenada na memória, já esmaecidas, destituída do brilho singular que a distinguia. Razão é cálculo, frio e sem espírito. A sensibilidade, por sua vez, na medida em que é pura, é intensa. Têm a força das coisas indomadas, incontidas. A sensibilidade é a matriz do conteúdo manipulado pela razão, mas o sentido dessa sensibilidade pura é maior antes de ser condicionado nas categorias racionais.
A oposição da racionalidade categorizante, opressora porque ansiosa por domesticar os impulsos sensíveis, à sensibilidade originária, mãe generosa de todas as impressões, rica, selvagem e incontrolada, é o manancial infindável da literatura, da poesia — e mesmo da filosofia. Tantos foram os poetas que denunciaram o estreitamento promovido pela linguagem ((o Orkut ficaria algo mais autêntico se os depoimentos ali não pudessem se servir da antiga premissa que sugere que as palavras nunca podem ser fiéis aos sentimentos, manifestação clara de uma espécie de consequência dessa ruptura)). Clarice Lispector foi maestra na arte de levar essa ideia às bordas da criação: A paixão segundo G.H. narra a deposição dos limites de um identidade lógica, gramatical, psicológica, como se postas abaixo as fronteiras da individualidade, o que restasse fosse uma unidade absoluta com o todo, capaz de nos fazer coexistir e experimentar mesmo o mais repulsivo. Essa unidade é uma forma radical de “negação” do fracionamento racional, um retorno à imensidão do sentido pré-condicionamento intelectual, à vivência do absoluto — o mar é a imagem que Clarice usa para simbolizar esse absoluto.
Há algo de injusto no tratamento dispensado à razão. As fronteiras não são assim tão nítidas. Razão e sensibilidade se confundem no instante da elaboração do olhar. Esse tema, a propósito, ocorreu quando recordei um par de epifanias tolas que ilustram esse entrelaçamento. Bem, deixem então que eu conte uma delas. É bobagem, adianto, mas eu gosto de flagrar não a descoberta da beleza, mas a sua invenção. Ainda que talvez o significado — ou a própria identididade daquilo que considero belo só possa receber a chancela dos meus proprios valores e dos de ninguém mais.
Certa feita eu entrei num ônibus e assim que passei a catraca** constatei com pesar que quase todas as janelas estavam ocupadas. Inconscientemente, demorei um pouco mais observando o modo como cada uma das pessoas se ocupava com o recorte da paisagem emoldurado pela janela. Cada uma delas tinha o seu próprio mundo. Mas isso ainda não era significativo para mim. O que havia apenas era a constatação factual de que as pessoas estavam ocupando as janelas do ônibus, de costas umas para as outras. Sentei perto da catraca, na cadeira do corredor. Pouco depois entrou uma mãe com uma criança e sentou na quarta ou quinta fileira do ônibus. A criança descobria que podia gritar, brincava, parecia divertido. Mas era de tal modo divertido vê-la brincar, balbuciar sons inarticulados, berrar, que as pessoas antes ocupadas de suas vidas e de suas paisagens particulares, passaram a olhar para ela. De repente então eu me dei conta do cenário: a criança havia conseguido fazer confluir o que antes era disperso. Mais do que isso, no rosto de cada um dos passageiros havia um sorriso bobo de complacência, desses que a gente dirige às crianças como se dissesse: “eu entendo”. E eu ali atrás com o mesmo sorriso bobo e com os olhos marejados de um certo orgulho infantil, não por ter descoberto aquela cena, mas por tê-la fabricado. Talvez outra pessoa, por desatenção ou qualquer outro motivo, não tivesse pensado o mesmo. Mas eu estava ali testemunhando a espessura da dispersão que agora eu simbolizava — mobilizando todos os clichês da crítica à sociedade moderna — como a insensibilidade, o atomismo e a individualidade dos nossos tempos ser vencida pela leveza dos caprichos e brincadeiras de uma criança. E isso guardava para mim, e talvez só pra mim, uma beleza sem nome.
Essa é uma das razões por que eu pensei que talvez nós não precisássemos conservar esse distanciamento das coisas racionais, imputando a elas uma frieza própria do que não tem sentimento. O sentimento mesmo já se confunde com um certo modo de olhar — ainda que um olhar que busque o infinito, o absoluto — como um recorte e uma organização racional, sim!, por que não? O trabalho do artista talvez seja o de um organizador empenhado em construir novas figuras a partir de unidades com as quais nós só conseguimos formar as mesmas imagens puídas e cansadas. Talvez, então, se pudermos pensar assim a razão, possamos encontrar algo mais libertador do o retorno ao absoluto pré-condicionamento categórico da razão, possamos encontrar a promessa da beleza nesse esforço, acessível a todos, de buscar sempre um novo olhar que revele, não a essência das coisas, mas algo que nós queremos ver, algo de nós mesmos, não encrustado, mas projetado sobre elas, sobre o mundo.
* Toda vez que eu uso conceitos filosóficos assim tão levianamente meu supergo filosófico açoita com sofreguidão as costas do meu ego.
** Catraca = Borbuleta (dicionário de baianês)