O conceito de vida

O

Os religiosos descrevem a vida como aquilo que tem sua origem na concepção. Os cientistas a descrevem segundo uma certa combinação de fatores. Por assim dizer, os dois grupos aplicam “regras de descrição” diferentes. Porém, o que cada um descreve como vida, e ser vivo, não pode ser justificado por nenhuma experiência do mundo, pois a “experiência” que cada um tem é determinada pelas regras que eles aplicam. Mais do que isso, a experiência pressupõe as regras. Se a descrição pressupõe as regras, nenhuma das duas diferentes regras de descrição — a científica ou a religiosa — pode ser justificada pela própria descrição. Aquilo que é pressuposto não pode ser justificado pelo resultado da pressuposição (ou então, aquilo que é condição de possibilidade de descrição não pode ser justificado pela própria descrição).

Desse modo, não se pode falar de “um conceito de vida correto” absolutamente, pois um conceito de vida é correto sempre em relação às suas regras de descrição. A pretensão de identificar descrições certas ou erradas, verdadeiras ou falsas, corretas ou incorretas, é equívoca — quando se está comparando modelos de descrição. Não há pontos de convergência entre eles. Não há uma experiência pura que possa testemunhar a favor de um ou de outro. Não há nada em comum entre dois modelos diferentes de descrição.

Portanto, toda tentativa de justificar o conceito de vida é o gesto de imposição de um modelo. Não de justificação.

Isso quer dizer que nenhuma investigação empírica pode justificar o conceito de vida. Nas discussões que orbitam esse conceito — aborto, células tronco, etc — devemos portanto abandonar a pretensão de justificar e nos deter nas consequências das possíveis mudanças conceituais para nossa organização social, jurídica, para o sistema de saúde pública, para as mães grávidas, etc. O que justifica as mudanças, o que as legitima, é o interesse pelas consequências de uma possível alteração das formas de organização social ligadas ao conceito — e não uma experiência ao qual o conceito “corresponda”. As regras organizam as práticas e usos linguísticos e o conceito de vida não escapa a esse destino, ele também depende de regras que constituem seu significado — e com isso não está excluída a possibilidade de regras diferentes, que são apenas diferentes e não erradas ou falsas.

((Observações sobre a gramática do conceito de vida))

PS. É possível — e talvez até salutar — que parte de vocês não entendam o que eu aqui estou discutindo. Não se preocupem! A propósito, os parênteses duplos são tiradas de humor, pra bons entendedores.

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