PNDH: aborto e direitos humanos

Alon em seu blog sugeriu, entre outras coisas, que fosse repensada a inclusão do aborto no quadro de questões de direitos humanos, em respeito à memória de gente que trabalha pelos direitos humanos mas tem opinião diversa sobre o aborto (considerando o contexto do PNDH e da morte de Zilda Arns). Como não poderia deixar de ser, eu discordei. Mas como acontece sempre que alguém aborda o tema, a cantilena anti-abortista não tarda a chorar pitangas, mobilizando argumentos como um poeminha que começa com o seguinte verso: “A mother is two lives”, ou como a seguinte pergunta de uma outra comentarista: “o nascituro não tem diretos tambem ser defendidos?” Foi uma boa ocasião para sumarizar minha posição a esse respeito. Abaixo alguns dos comentários que enviei:

Difícil ter que explicar algo tão elementar, mas é preciso, diante do comentário da Dra. Tereza e do poema bobinho citado acima. Leiam com atenção:

Quem defende o aborto não está sugerindo que se mate ou torture uma criança ou um ser vivo, está defendo um conceito de vida que não abrange um certo estágio da gestação. Os defensores do aborto não o defendem incondicionalmente, em qualquer etapa da gravidez, o que eles admitem é a possibilidade do aborto até determinado estágio, onde convencionalmente, pesando inumeros fatores (e considerando mesmo a flexbilidade desses fatores), se determina quando a vida se inicia. Essa é uma discussão longa que envolve o difícil entendimento de que a vida é um conceito que não se justifica na experiência, ao contrário, que possibilita os usos e aplicações do conceito de vida — inclusive a aplicação médica/biológica.

Dizer que “A mother is two lives” ou perguntar se “nascituro não tem diretos tambem ser defendidos” é já supor que o debate que estamos agora realizando esteja superado, em prol dos anti-abortistas. Ou seja, só para um anti-abortistas “uma mãe é duas vidas”, só para ele o “nascituro tem direitos”. Não que aqueles que defendem o aborto, como eu, pensem que as crianças não têm direitos.. nós só não achamos que eles começam na concepção. Porque não faz sentido pensar que é a experiência que nos ensina o que é (o que significa, o uso de) um conceito (vide todo o debate do início do século passado contra os [neo]positivistas). Só um “acordo” pode nos dizer o que é um conceito, e só depois dele estabelecido nos podemos aplicá-lo e determinar, portanto, o que é ou não a vida (do mesmo modo que só depois de definido um padrão de medida, é possível realizar medições; as medições supõem o padrão de medida, assim com quem diz “A mother is two lives”, supõe que esteja dado aquilo que nós estamos, aqui e agora, discutindo: quando começa a vida).

Desculpe os exemplo aparentemente frios, é preciso simplificar um pouco e apelar para alguns exemplos distantes do tema, para fazer entender a confusão conceitual envolvida nesse debate e quanta retórica há nos apelos a uma suposta vida que ainda está em questão.

PS. A determinação dos “limites” da vida é uma discussão política que deve ser aberta e largamente difundida. Procurem saber como se posicionam a respeito os paises mais desenvolvidos, aqueles que tem indicadores satisfatórios de respeito aos direitos humanos.

Depois de algumas objeções que envolviam a afirmação de que o feto é um “ser morto” para quem defende o aborto e a consideração da possibilidade de que uma convenção ou uma decisão política decida que a vida começa aos 8 meses, respondi mais uma vez.

A simplificação é sempre uma boa arma.

Que seja uma deliberação não implica uma absoluta arbitrariedade. Há fatores a serem considerados e muitos, mas o fundamental é que o conceito se define não pela experiência. A experiência não pode dizer o que é um conceito, já que nós só podemos ir até ela, e dizer o que é ou não é a vida, tendo algum já disponível.

Quando se define esse tipo de coisa, em contendas como a que aconteceu no STF (no caso das células tronco), é preciso considerar aspectos científicos relevantes como a formação de órgãos e tecidos a serem definidos como essenciais, o risco para mãe, e especialmente as consequências de uma dada definição para as políticas públicas de saúde, para a organização jurídica do país, etc. Nós já temos experiência com um conceito de vida que se inicia na concepção, ele é vigente no Brasil, e representa um incrível índice de mortalidade feminina (conforme ilustrado no primeiro caso), problemas de saúde pública os mais diversos derivados das condições precárias (e ilegais) de assistências às mulheres que querem abortar. Qual é a solução para essas mulheres? Educação religiosa? Quem não quer abortar não é afetado pela descriminalização, mas para as milhares de mulheres que morrem ou ficam severamente doentes todos os anos nas mãos de açougueiros, em açougues, o acesso a um serviço de saúde público é determinante para suas vidas.

É fácil, em nomes de princípios religiosos bem abstratos, defender que não se mate um “ser vivo” ou supor retoricamente que uma “deliberação” política/jurídica chamada a definir o conceito de vida iria por hipótese estabelecer 8 meses como o estágio inicial (os abortos só são recomendáveis até antes dos 3 MESES, depois disso, o risco para a mãe é significativo e ele só deve ser feito em casos especiais), mas se sensibilizar pela mortes reais e incontestáveis de mulheres em clínicas clandestinas, isso parece impossível. Os jogos de palavras inúteis que tornam o feto no período posterior um “ser morto”, pois não existe “um meio termo”, só tem apelo retórico, e se endereçam aqueles que já estão convencidos de suas concepções anti-abortistas. Eu estou falando para quem quer argumentar, se você tem certezas, bem, volte pra igreja, o ambiente dialógico não é lugar para quem não admite a possibilidade lógica de estar errado. Se você quer jogos de palavras, então aqui vai um para desfazer sua retórica: só pode ser considerado um “ser morto” quem já viveu, se o feto não entrou no período abrangido por nossa definição de vida, ele não pode ser considerado morto (nem vivo), do mesmo modo como não falamos que uma pedra é um ser morto (porque ela nunca chegou a viver).

A discussão continuou por lá (aliás, ela está toda lá, para quem quiser acompanhar o contexto), sem nada realmente produtivo, é verdade, porque às objeções à minha posição eram meramente retóricas e o que solicitavam era que eu me desfizesse de jogos de palavras e apelos falaciosos. A discussão é importante, em todo caso, e seria interessante considerar respostas que pudessem dialogar com as posições apresentadas e não meramente impor perspectivas, como se elas se anulassem mutuamente. O aborto é uma questão política delicada e quanto antes deliberarmos sobre ele, melhor para centenas de mulheres que hoje se submetem aos porcos serviços de clínicas clandestinas.

O conceito de vida

Os religiosos descrevem a vida como aquilo que tem sua origem na concepção. Os cientistas a descrevem segundo uma certa combinação de fatores. Por assim dizer, os dois grupos aplicam “regras de descrição” diferentes. Porém, o que cada um descreve como vida, e ser vivo, não pode ser justificado por nenhuma experiência do mundo, pois a “experiência” que cada um tem é determinada pelas regras que eles aplicam. Mais do que isso, a experiência pressupõe as regras. Se a descrição pressupõe as regras, nenhuma das duas diferentes regras de descrição — a científica ou a religiosa — pode ser justificada pela própria descrição. Aquilo que é pressuposto não pode ser justificado pelo resultado da pressuposição (ou então, aquilo que é condição de possibilidade de descrição não pode ser justificado pela própria descrição).

Desse modo, não se pode falar de “um conceito de vida correto” absolutamente, pois um conceito de vida é correto sempre em relação às suas regras de descrição. A pretensão de identificar descrições certas ou erradas, verdadeiras ou falsas, corretas ou incorretas, é equívoca — quando se está comparando modelos de descrição. Não há pontos de convergência entre eles. Não há uma experiência pura que possa testemunhar a favor de um ou de outro. Não há nada em comum entre dois modelos diferentes de descrição.

Portanto, toda tentativa de justificar o conceito de vida é o gesto de imposição de um modelo. Não de justificação.

Isso quer dizer que nenhuma investigação empírica pode justificar o conceito de vida. Nas discussões que orbitam esse conceito — aborto, células tronco, etc — devemos portanto abandonar a pretensão de justificar e nos deter nas consequências das possíveis mudanças conceituais para nossa organização social, jurídica, para o sistema de saúde pública, para as mães grávidas, etc. O que justifica as mudanças, o que as legitima, é o interesse pelas consequências de uma possível alteração das formas de organização social ligadas ao conceito — e não uma experiência ao qual o conceito “corresponda”. As regras organizam as práticas e usos linguísticos e o conceito de vida não escapa a esse destino, ele também depende de regras que constituem seu significado — e com isso não está excluída a possibilidade de regras diferentes, que são apenas diferentes e não erradas ou falsas.

((Observações sobre a gramática do conceito de vida))

PS. É possível — e talvez até salutar — que parte de vocês não entendam o que eu aqui estou discutindo. Não se preocupem! A propósito, os parênteses duplos são tiradas de humor, pra bons entendedores.

Mais duas notas sobre a questão das células-tronco

Caso deferida a ação de inconstitucionalidade, será aberto um precedente para que outras ações paralisem o trabalho de manipulação de células embrionárias. As clínicas de reprodução podem ser o novo alvo. Ora, pau que dá em Chico dá em Francisco. Jornal de Valor:

Segundo a lei aprovada, as pesquisas só podem ser feitas com embriões descartados (isto é, aqueles que não servem para ser implantados em ovários) por clínicas de reprodução humana e naqueles congelados há mais de três anos, e desde que com autorização dos pais.

Descartar embriões é crime tanto quanto usá-los em pesquisas — para um lei que julgue procedente a ação de inconstitucionalidade em causa. Portanto, a demanda tem longo alcance e essa variável precisa ser considerada pelos magistrados do STF.

A vida tem início da concepção, diz a Igreja. Para alguns cientistas ela começa com as primeiras atividades cerebrais. A discussão não se dá no terreno do certo ou do errado, do verdadeiro ou do falso — a menos que se queira retroceder décadas e, com os positivistas, afirmar que a legitimidade dos enunciados científicos repousa na possibilidade de verificação dos seus componentes elementares. Para dizer o que é ou não é a vida, o que está ou não vivo, exige-se que o debate sobre o conceito de vida já tenha cessado. Toda positividade nessa matéria resulta de já se ter adotado um dos dois lados, ou qualquer outro. Por isso a discussão toma rumos nebulosos quando os cientistas tentam pintá-la com as cores da objetividade. Todo o arsenal teórico e o esforço descritivo empreendido por profissionais de medicina, genética, bioética, neurociência, antropologia, convocados para a primeira audiência pública do STF, não pode resolver uma questão que não é descritiva, mas normativa.

Imagine um sujeito egresso da periferia de Chorrochó do Barro Dentro, analfabeto e obtuso, agora imagine-o diagnosticando uma doença pulmonar qualquer através de uma chapa de raio X, imagine-o descrevendo as aspectos que o levaram ao diagnóstico. Impossível! Quem nunca teve acesso às normas teóricas não sabe o que procurar numa chapa de raio X, mal vê, como eu e todos os que não dominam o saber médico, a forma humana externa com a qual estamos familiarizados. Quem crê que um geneticista pode nos mostrar o que é a vida, crê que um sujeito obtuso e iletrado pode ler um chapa de raio X sem dominar as técnicas médicas, crê que a experiência nos dá as formas elementares do conhecimento, sem intermediários. O problema dessa perspectiva é que ela atribui a ciência o status de ditadora exclusiva das coisas humanas, porque suas afirmações estão ancoradas numa base empírica universalmente válida. A validade dos enunciados científicos não é universal, tampouco ela colhe sua força de bases empíricas verificáveis. Ao contrário, seu desenvolvimento define seu objeto. A teoria médica define a experiência de um médico frente a uma chapa de raio X de sorte que, vendo o mesmo que todos nós, sua experiência, porém, não é a mesma que a nossa. De igual modo, a estrutura científica define e exige uma concepção de vida, a coerência interna do sistema exige que essa peça seja de tal e tal natureza — e não uma outra, a questão do conceito de vida responde a uma exigência sistêmica. A vida, no sistema científico, precisa ter o status de um postulado, de uma norma — que flutua ao sabor do desenvolvimento teórico. Portanto, o papel dos profissionais convocados para audiência pública deveria se limitar à exposição dos interesses e consequências que uma barreira externa poderia provocar no desenvolvimento da pesquisa científica. Duvido muito, porém, que tenha sido essa a função efetivamente exercida.

É temerário que a ciência assuma o papel que antes cabia a Igreja, neste caso teremos saído da cruz direto para a caldeirinha — ou pior. O tom com que se rechaça o a priori religioso dá a entender que as pessoas pensam que a ciência lê o mundo como ele é, que há um objeto que se contrapõe ao sujeito científico e que a legitimidade do que diz o sujeito expressa a correspondência entre suas idéias e a coisa a qual ele se reporta. Imensa bobagem que nos põe reféns da ciência. A ciência, digo mais uma vez, forja seu objeto — e a vida, nessa questão particular, é regra pela qual ela organiza determinadas experiências. É a norma que deve anteceder toda experiência e que portanto não pode ser verificada na experiência. É a regra pela qual se diz o que é certo ou errado, verdadeiro ou falso — ou o absurdo — e que não pode ser dada pelo objeto sobre o qual incide, mas antes têm que estar no domínio de quem a opera, da mesma forma que, antes de ter a experiência de um raio X como um instrumento pró-diagnóstico, é preciso dominar uma técnica médica particular (do contrário, a chapa de raio X não passa de agregado disforme que lembra algo da nossa forma externa).

Eu creio que a ação será indeferida, infelizmente, não pela compreensão do lugar da pesquisa científica, dos obstáculos que o deferimento introduziria e da derrota que seria imposta, em caso contrário, ao interesse público, mas pela força com que se crê na ciência e pelo açodamento com que se julgam obscuras as matérias religiosas. No final das contas, ciência e religião aproximam-se mais do que se distanciam.

Ver também: Considerações sobre o aborto

Considerações sobre o aborto

O aborto consiste na interrupção induzida ou natural do processo de gestação. O que está em causa na polêmica presente no debate público é o conceito de vida. O que parece obstruir o curso desse debate é alguma confusão instalada no uso que se faz dos conceitos de vida e das ferramentas que estão ao seu serviço; vejamos em que casos podemos elucidar tal mal entendido.

Ao contrário do que se imagina, a vida não nomeia uma série de qualidades próprias aos seres vivos — não é no domínio epistêmico que se enquadra a discussão sobre o aborto. O significado da palavra vida não está emoldurado nas descrições que fazemos ao identificar um ser vivo, antes, o inverso, o conceito de vida funda e possibilita toda descrição possível e, portanto, permite que possamos operar os múltiplos fatores que estão vinculados a esse conceito, na diversidade dos domínios da cultura humana.

Vejamos um exemplo ilustrativo: sem esforço podemos imaginar um país europeu do século XV ou XVI e as circunstâncias que determinam sua constituição: política, ciência, economia, etc. Sem nenhum embaraço podemos igualmente conceber que a noção de vida empregada nesse período compreende o tempo transcorrido do nascimento (parto) até a morte. Nesse caso, qualquer interrupção da gestação não caracteriza atendado à vida, assassinato, ou coisa do gênero — um paradigma diverso anima os usos da palavra vida aqui. Talvez outro exemplo possa ainda ser apresentado: vamos admitir que em algum estágio do desenvolvimento da medicina três critérios fixavam os limites da vida, sendo, pois, referências irrefutáveis à verificação de condições de vida e morte. São eles os seguintes: 1. presença de pulsação arterial, atestando o funcionamento do coração 2. constrição da púpila 3. flexibilidade muscular, em contraposição a rigidez cadavérica. Imaginemos que nesse período tais critérios serviam a contento, permitindo que os médicos desenvolvessem suas funções na organização social em vigor. Num caso rotineiro, porém, após ter sido declarado o óbito, um senhor levanta-se da mesa de exame obituário, para surpresa do legista. O que concluiríamos, pois? Que desconhecíamos algum critério relevante? Que antes dele muito devem ter morrido por nossa ignorância? Reagimos a uma doença que produz sintomas semelhantes aos critérios definidos para identificar a morte, acrescentando seu diagnóstico como condição de possibilidade de identificação da vida, ou seja, só está vivo quem, na ausência dos três critérios supracitados, apresentar sintomas da doença mencionada. Mas voltando ao nosso tempo, se imaginamos que a vida é a correspondência entre os limites demarcados pela vasta literatura médica e a identificação objetiva dos elementos por ela prescritos, como dissiparíamos a dúvida sobre se temos enterrado vivas milhares de pessoas enfermas de uma doença desconhecida que, de modo semelhante ao caso anterior, oculta a vida simulando a ausência de critérios decisivos para sua afirmação?

Não é menos importante para nossa experiência a apresentação de critérios com os quais julgamos identificar características essenciais à vida, porém, o que parece relevante destacar para investigação dos problemas relativos ao aborto é a multiplicidade do conceito de vida, que comporta-se ora como nome para um conjunto de descrições empíricas, ora como conceito gramatical que organiza os quadros de referência pelos quais podemos operar com conceitos como morte, aborto, etc.

Quando tratamos de temas semelhantes (morte, aborto), não temos dúvidas sobre suas aplicações — um conceito de vida que se estenda à fase intra-uterina reivindica sanções penais devidas quando num caso particular a gestação é interrompida. O aborto é inegavelmente um atentado à vida, nos termos vigentes. Mas não é isto que está em jogo no debate sobre o aborto. Quando abordamos essa questão estamos em volta com as razões pelas quais identificamos a vida de uma forma e não de outra. O fato de atribuirmos vida ao feto em formação no útero não é motivado pela conformidade às descrições regulares de identificação da vida que se aplicam aos humanos já nascidos. Poderíamos, a partir da complexidade dessas descrições, sublinhar as diferenças ao invés das semelhanças e justificar o aborto alegando incompatibilidade conceitual. A causa desse vínculo é de ordem externa aos fatos do mundo, quer dizer, não se põe no nível de determinação causal, nem retira seu significado dos fatos, mas é própria à natureza de nossa linguagem, de seu caráter convencional, relativa ao modo como, através do uso que fazemos do conceito, organizamos a experiência. A constituição do significado da vida é arbitrário, quer dizer, não se reporta a nenhum elemento mundano, sendo, ao contrário, condição para que passamos lidar com as coisas as quais esta palavra, vida, está vinculada.

As convenções que estabelecem o paradigma definem as regras de uso relativas a um determinado contexto, selecionando, desse modo, o que deve ou não constituir critério para operação de tudo que estiver subordinado ao conceito — no caso em questão, ao conceito de vida.

Assim podemos entender as sucessivas mudanças de paradigma na curso da história; se adotamos um conceito de vida que se dirige à fase intra-uterina é por que nossa ciência desenvolveu-se a ponto de marcar a importância desse estágio para fase posterior da constituição humana, nossos arranjos políticos, por seu turno, atendem à necessidade fundante de distribuição equânime dos direitos e cuidados empreendido pelos Estados nacionais. Se dispomos do conhecimento da relação causal entre formação do feto e desenvolvimento pós-natal, de instrumentos que nos permitam, quando necessário, intervir nesse processo de formação e se somos compelidos pela nossa organização social a zelar pela saúde de nossos iguais, como forma de legitimar o pacto de associação que está na base da constituição das sociedades organizadas (no ocidente), nada mais natural do que delimitar a vida no espaço abrangente que compreende o período pré-natal até o instante da morte. Numa sociedade por assim dizer primitiva, na qual a ciência estivesse tão precariamente desenvolvida quanto os arranjos políticos e jurídicos, poderíamos compreender que um conceito de vida envolvesse tão somente o intervalo entre o nascimento e a morte. A delimitação desse conceito obedece convenções que se orientam pelos usos pretendidos e pelos interesses coletivos, de sorte que ele é sempre anterior a toda descrição.

“Um cutelo serve mais adequadamente ao propósito de destrinchar uma costela de porco que um bisturi.”

Uma analogia expressa a lógica de constituição do paradigma e seu caráter convencional (e arbitrário): a relação de semelhanças que partilhamos com os macacos pode ser estendida ad nauseam, contudo, decidir se devemos ou não considerá-los humanos e portanto conceder-lhes os direitos inerentes a nossa condição é algo não se dissolve pelo simples exame de questões de fato, isso não pode ser decidido em laboratório, nem em nenhuma instância que toque à ciência. Perdoem o abuso de trazer um exemplo tão extravagante para um domínio onde a deferência é a regra, mas o absurdo cumpre uma função especial. A “vida” não é um problema epistêmico, não envolve a formulação, descrição e exame de proposições científicas, mas a decisão acerca de que técnicas são mais convenientes a nossa experiência de maneira a articular (e harmonizar) a experiência relativa ao uso que se faz da noção de vida e de todos os outros valores e conceitos importantes para nossa sociedade. Se o progresso científico puder fracionar o curso da formação fetal em mil partes, não encontraremos, mesmo assim, nenhuma razão na ordem dos fatos para demarcar um início. Grosso modo, a vida começa onde queremos que ela comece. Esse querer contrapõe-se ao saber, é um gesto autônomo e arbitrário, independente de qualquer conhecimento posterior, proveniente não do mundo e das coisas de fato, mas do modo como queremos lidar com ele (o mundo).

Por fim podemos sublinhar mais uma vez o caráter arbitrário desse conceito mediante apresentação da analogia com um caso familiar. O brutal assassinato do menino João Hélio reanimou por algum tempo o debate sobre a redução da maioridade penal. O conceito de maioridade penal, tal como o conceito de vida relativo às questões do aborto, não se segue do exame de fatos, antes disso, ele é condição para que se possa falar deles de tal e tal modo. Argumenta-se nesse sentido: “Eles têm autorização para escolher seus candidatos, alguns dirigem, muitos bebem, por que devemos isentá-los de culpa?”. O que está sendo sugerido é uma mudança no modo como lidamos com o conceito de maioridade e caso ela seja acatada, a descrição da maioridade passaria de 18 para 16 anos – assim como os limites referentes a vida deslocaram-se da fronteira inicial estabelecida no momento do nascimento para o estágio pré-natal.

É a mudança da norma que condiciona a descrição, não o contrário.
O que caracteriza as discussões sobre o aborto são conflitos de interesses e é nesse horizonte que elas devem ser mantidas. O litígio origina-se da sugestão de revisão da norma (do paradigma), portanto, para efeito de contra-argumentação, não se pode replicar às posições dos que pretendem uma revisão alegando que elas ferem a norma em causa – isto é óbvio. O que pretendi esclarecer aqui é que a norma pode ser revisada (e sempre foi revisada ao longo da história) porque ela é arbitrária, a força da sua verdade repousa sobre a utilidade que resulta da sua aceitação. Se fossemos dotados da capacidade especial para intuir o início da vida, tudo isto se resolveria de modo simples, mas enquanto esta capacidade não nos é nada, devemos, pois, decidir arbitrariamente quando ela começa, e desse modo podemos lidar com a vida de modo satisfatório, preservando e negociando seguramente com suas implicações no âmbito da complexa rede de elementos antropológicos, ou talvez, para abrigar algo ainda mais amplo, no âmbito das nossas formas de vida.



Adendo


Talvez esse fragmento seja mais ilustrativo que todo o texto anterior.

Tomemos a proposição “O objeto A é mais claro que o objeto B” como verdadeira. Podemos imaginar circunstâncias no mundo que alterem esse estado de coisas, falseando, por conseguinte, a proposição. Se o objeto B tornar-se mais claro que o objeto A concluiremos, pois, que a proposição mencionada agora é falsa. Esta contingência liga-se a natureza empírica da proposição em causa.

Agora consideremos verdadeira a seguinte proposição “A vida é a descrição de fenõmenos fisiológicos X e Y”. Retomemos a tentativa de imaginar um caso no mundo no qual os fenômenos fisiológicos X e Y estejam ausentes, podemos imaginá-lo? Obviamente (qualquer que seja o X e Y adotado!) E o que se segue disso? A “verdade” dessa proposição é abalada? Nem por um segundo. Quando na ausência desses fenômenos, sabemos apenas que não é caso de utilizarmos o conceito de vida neste domínio. Nenhuma configuração do mundo, da ordem dos fatos, pode alterar o valor de verdade da proposição em questão pois sua natureza é gramatical. Ela não se refere a nada no mundo, ao contrário, ao fixar seus limites precisamente pela presença de outros conceitos, permite-nos organizar um conceito de vida segundo critérios determinados e adequados às ferramentas que disposmos, aos usos que dele queremos fazer, à sua utilidade — e é de absoluta importância para nossa sociedade saber lidar com o conceito de vida.

A proposição “A vida é a descrição de fenõmenos fisiológicos X e Y” é a norma através da qual usamos o conceito vida num determinado contexto. E uma norma não é um fato do mundo, mas antes um instrumento por meio do qual lidamos com ele e que responde a interesses particulares. O conceito de vida não consiste na descrição de propriedades inerentes aos seres vivos, mas na determinação dessas propriedades. Determinação essa forjada no interior de um discurso, de uma linguagem que se reportam a hábitos, instituições e atitudes frente as coisas com que se relaciona. A mais elaborada descrição científica da vida sustenta propriedades cujo nexo se estabelece não por motivos lógicos, psicológicos nem causais, mas convencionais. A relação interna entre as propriedades da vida é fruto do arbítrio humano e embora seja, pois, convencional, sua significação não se esgota na compreensão dessa natureza. O papel que assume um tal conceito na organização das nossas experiência nos dá a pista do seu valor e da conveniência dessa convenção, mas essa função é sempre insaturada, pois as práticas e atitudes que se relacionam ao conceito são sempre externas a ela, mobilizam técnicas e domínios relativas aos uso pretendidos por aqueles que o manipulam, sendo o sistema sempre aberto e passível de novas combinações.