Considerações sobre o aborto

C
O aborto consiste na interrupção induzida ou natural do processo de gestação. O que está em causa na polêmica presente no debate público é o conceito de vida. O que parece obstruir o curso desse debate é alguma confusão instalada no uso que se faz dos conceitos de vida e das ferramentas que estão ao seu serviço; vejamos em que casos podemos elucidar tal mal entendido.

Ao contrário do que se imagina, a vida não nomeia uma série de qualidades próprias aos seres vivos — não é no domínio epistêmico que se enquadra a discussão sobre o aborto. O significado da palavra vida não está emoldurado nas descrições que fazemos ao identificar um ser vivo, antes, o inverso, o conceito de vida funda e possibilita toda descrição possível e, portanto, permite que possamos operar os múltiplos fatores que estão vinculados a esse conceito, na diversidade dos domínios da cultura humana.

Vejamos um exemplo ilustrativo: sem esforço podemos imaginar um país europeu do século XV ou XVI e as circunstâncias que determinam sua constituição: política, ciência, economia, etc. Sem nenhum embaraço podemos igualmente conceber que a noção de vida empregada nesse período compreende o tempo transcorrido do nascimento (parto) até a morte. Nesse caso, qualquer interrupção da gestação não caracteriza atendado à vida, assassinato, ou coisa do gênero — um paradigma diverso anima os usos da palavra vida aqui. Talvez outro exemplo possa ainda ser apresentado: vamos admitir que em algum estágio do desenvolvimento da medicina três critérios fixavam os limites da vida, sendo, pois, referências irrefutáveis à verificação de condições de vida e morte. São eles os seguintes: 1. presença de pulsação arterial, atestando o funcionamento do coração 2. constrição da púpila 3. flexibilidade muscular, em contraposição a rigidez cadavérica. Imaginemos que nesse período tais critérios serviam a contento, permitindo que os médicos desenvolvessem suas funções na organização social em vigor. Num caso rotineiro, porém, após ter sido declarado o óbito, um senhor levanta-se da mesa de exame obituário, para surpresa do legista. O que concluiríamos, pois? Que desconhecíamos algum critério relevante? Que antes dele muito devem ter morrido por nossa ignorância? Reagimos a uma doença que produz sintomas semelhantes aos critérios definidos para identificar a morte, acrescentando seu diagnóstico como condição de possibilidade de identificação da vida, ou seja, só está vivo quem, na ausência dos três critérios supracitados, apresentar sintomas da doença mencionada. Mas voltando ao nosso tempo, se imaginamos que a vida é a correspondência entre os limites demarcados pela vasta literatura médica e a identificação objetiva dos elementos por ela prescritos, como dissiparíamos a dúvida sobre se temos enterrado vivas milhares de pessoas enfermas de uma doença desconhecida que, de modo semelhante ao caso anterior, oculta a vida simulando a ausência de critérios decisivos para sua afirmação?

Não é menos importante para nossa experiência a apresentação de critérios com os quais julgamos identificar características essenciais à vida, porém, o que parece relevante destacar para investigação dos problemas relativos ao aborto é a multiplicidade do conceito de vida, que comporta-se ora como nome para um conjunto de descrições empíricas, ora como conceito gramatical que organiza os quadros de referência pelos quais podemos operar com conceitos como morte, aborto, etc.

Quando tratamos de temas semelhantes (morte, aborto), não temos dúvidas sobre suas aplicações — um conceito de vida que se estenda à fase intra-uterina reivindica sanções penais devidas quando num caso particular a gestação é interrompida. O aborto é inegavelmente um atentado à vida, nos termos vigentes. Mas não é isto que está em jogo no debate sobre o aborto. Quando abordamos essa questão estamos em volta com as razões pelas quais identificamos a vida de uma forma e não de outra. O fato de atribuirmos vida ao feto em formação no útero não é motivado pela conformidade às descrições regulares de identificação da vida que se aplicam aos humanos já nascidos. Poderíamos, a partir da complexidade dessas descrições, sublinhar as diferenças ao invés das semelhanças e justificar o aborto alegando incompatibilidade conceitual. A causa desse vínculo é de ordem externa aos fatos do mundo, quer dizer, não se põe no nível de determinação causal, nem retira seu significado dos fatos, mas é própria à natureza de nossa linguagem, de seu caráter convencional, relativa ao modo como, através do uso que fazemos do conceito, organizamos a experiência. A constituição do significado da vida é arbitrário, quer dizer, não se reporta a nenhum elemento mundano, sendo, ao contrário, condição para que passamos lidar com as coisas as quais esta palavra, vida, está vinculada.

As convenções que estabelecem o paradigma definem as regras de uso relativas a um determinado contexto, selecionando, desse modo, o que deve ou não constituir critério para operação de tudo que estiver subordinado ao conceito — no caso em questão, ao conceito de vida.

Assim podemos entender as sucessivas mudanças de paradigma na curso da história; se adotamos um conceito de vida que se dirige à fase intra-uterina é por que nossa ciência desenvolveu-se a ponto de marcar a importância desse estágio para fase posterior da constituição humana, nossos arranjos políticos, por seu turno, atendem à necessidade fundante de distribuição equânime dos direitos e cuidados empreendido pelos Estados nacionais. Se dispomos do conhecimento da relação causal entre formação do feto e desenvolvimento pós-natal, de instrumentos que nos permitam, quando necessário, intervir nesse processo de formação e se somos compelidos pela nossa organização social a zelar pela saúde de nossos iguais, como forma de legitimar o pacto de associação que está na base da constituição das sociedades organizadas (no ocidente), nada mais natural do que delimitar a vida no espaço abrangente que compreende o período pré-natal até o instante da morte. Numa sociedade por assim dizer primitiva, na qual a ciência estivesse tão precariamente desenvolvida quanto os arranjos políticos e jurídicos, poderíamos compreender que um conceito de vida envolvesse tão somente o intervalo entre o nascimento e a morte. A delimitação desse conceito obedece convenções que se orientam pelos usos pretendidos e pelos interesses coletivos, de sorte que ele é sempre anterior a toda descrição.

“Um cutelo serve mais adequadamente ao propósito de destrinchar uma costela de porco que um bisturi.”

Uma analogia expressa a lógica de constituição do paradigma e seu caráter convencional (e arbitrário): a relação de semelhanças que partilhamos com os macacos pode ser estendida ad nauseam, contudo, decidir se devemos ou não considerá-los humanos e portanto conceder-lhes os direitos inerentes a nossa condição é algo não se dissolve pelo simples exame de questões de fato, isso não pode ser decidido em laboratório, nem em nenhuma instância que toque à ciência. Perdoem o abuso de trazer um exemplo tão extravagante para um domínio onde a deferência é a regra, mas o absurdo cumpre uma função especial. A “vida” não é um problema epistêmico, não envolve a formulação, descrição e exame de proposições científicas, mas a decisão acerca de que técnicas são mais convenientes a nossa experiência de maneira a articular (e harmonizar) a experiência relativa ao uso que se faz da noção de vida e de todos os outros valores e conceitos importantes para nossa sociedade. Se o progresso científico puder fracionar o curso da formação fetal em mil partes, não encontraremos, mesmo assim, nenhuma razão na ordem dos fatos para demarcar um início. Grosso modo, a vida começa onde queremos que ela comece. Esse querer contrapõe-se ao saber, é um gesto autônomo e arbitrário, independente de qualquer conhecimento posterior, proveniente não do mundo e das coisas de fato, mas do modo como queremos lidar com ele (o mundo).

Por fim podemos sublinhar mais uma vez o caráter arbitrário desse conceito mediante apresentação da analogia com um caso familiar. O brutal assassinato do menino João Hélio reanimou por algum tempo o debate sobre a redução da maioridade penal. O conceito de maioridade penal, tal como o conceito de vida relativo às questões do aborto, não se segue do exame de fatos, antes disso, ele é condição para que se possa falar deles de tal e tal modo. Argumenta-se nesse sentido: “Eles têm autorização para escolher seus candidatos, alguns dirigem, muitos bebem, por que devemos isentá-los de culpa?”. O que está sendo sugerido é uma mudança no modo como lidamos com o conceito de maioridade e caso ela seja acatada, a descrição da maioridade passaria de 18 para 16 anos – assim como os limites referentes a vida deslocaram-se da fronteira inicial estabelecida no momento do nascimento para o estágio pré-natal.

É a mudança da norma que condiciona a descrição, não o contrário.
O que caracteriza as discussões sobre o aborto são conflitos de interesses e é nesse horizonte que elas devem ser mantidas. O litígio origina-se da sugestão de revisão da norma (do paradigma), portanto, para efeito de contra-argumentação, não se pode replicar às posições dos que pretendem uma revisão alegando que elas ferem a norma em causa – isto é óbvio. O que pretendi esclarecer aqui é que a norma pode ser revisada (e sempre foi revisada ao longo da história) porque ela é arbitrária, a força da sua verdade repousa sobre a utilidade que resulta da sua aceitação. Se fossemos dotados da capacidade especial para intuir o início da vida, tudo isto se resolveria de modo simples, mas enquanto esta capacidade não nos é nada, devemos, pois, decidir arbitrariamente quando ela começa, e desse modo podemos lidar com a vida de modo satisfatório, preservando e negociando seguramente com suas implicações no âmbito da complexa rede de elementos antropológicos, ou talvez, para abrigar algo ainda mais amplo, no âmbito das nossas formas de vida.



Adendo


Talvez esse fragmento seja mais ilustrativo que todo o texto anterior.

Tomemos a proposição “O objeto A é mais claro que o objeto B” como verdadeira. Podemos imaginar circunstâncias no mundo que alterem esse estado de coisas, falseando, por conseguinte, a proposição. Se o objeto B tornar-se mais claro que o objeto A concluiremos, pois, que a proposição mencionada agora é falsa. Esta contingência liga-se a natureza empírica da proposição em causa.

Agora consideremos verdadeira a seguinte proposição “A vida é a descrição de fenõmenos fisiológicos X e Y”. Retomemos a tentativa de imaginar um caso no mundo no qual os fenômenos fisiológicos X e Y estejam ausentes, podemos imaginá-lo? Obviamente (qualquer que seja o X e Y adotado!) E o que se segue disso? A “verdade” dessa proposição é abalada? Nem por um segundo. Quando na ausência desses fenômenos, sabemos apenas que não é caso de utilizarmos o conceito de vida neste domínio. Nenhuma configuração do mundo, da ordem dos fatos, pode alterar o valor de verdade da proposição em questão pois sua natureza é gramatical. Ela não se refere a nada no mundo, ao contrário, ao fixar seus limites precisamente pela presença de outros conceitos, permite-nos organizar um conceito de vida segundo critérios determinados e adequados às ferramentas que disposmos, aos usos que dele queremos fazer, à sua utilidade — e é de absoluta importância para nossa sociedade saber lidar com o conceito de vida.

A proposição “A vida é a descrição de fenõmenos fisiológicos X e Y” é a norma através da qual usamos o conceito vida num determinado contexto. E uma norma não é um fato do mundo, mas antes um instrumento por meio do qual lidamos com ele e que responde a interesses particulares. O conceito de vida não consiste na descrição de propriedades inerentes aos seres vivos, mas na determinação dessas propriedades. Determinação essa forjada no interior de um discurso, de uma linguagem que se reportam a hábitos, instituições e atitudes frente as coisas com que se relaciona. A mais elaborada descrição científica da vida sustenta propriedades cujo nexo se estabelece não por motivos lógicos, psicológicos nem causais, mas convencionais. A relação interna entre as propriedades da vida é fruto do arbítrio humano e embora seja, pois, convencional, sua significação não se esgota na compreensão dessa natureza. O papel que assume um tal conceito na organização das nossas experiência nos dá a pista do seu valor e da conveniência dessa convenção, mas essa função é sempre insaturada, pois as práticas e atitudes que se relacionam ao conceito são sempre externas a ela, mobilizam técnicas e domínios relativas aos uso pretendidos por aqueles que o manipulam, sendo o sistema sempre aberto e passível de novas combinações.

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