PNDH: aborto e direitos humanos

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Alon em seu blog sugeriu, entre outras coisas, que fosse repensada a inclusão do aborto no quadro de questões de direitos humanos, em respeito à memória de gente que trabalha pelos direitos humanos mas tem opinião diversa sobre o aborto (considerando o contexto do PNDH e da morte de Zilda Arns). Como não poderia deixar de ser, eu discordei. Mas como acontece sempre que alguém aborda o tema, a cantilena anti-abortista não tarda a chorar pitangas, mobilizando argumentos como um poeminha que começa com o seguinte verso: “A mother is two lives”, ou como a seguinte pergunta de uma outra comentarista: “o nascituro não tem diretos tambem ser defendidos?” Foi uma boa ocasião para sumarizar minha posição a esse respeito. Abaixo alguns dos comentários que enviei:

Difícil ter que explicar algo tão elementar, mas é preciso, diante do comentário da Dra. Tereza e do poema bobinho citado acima. Leiam com atenção:

Quem defende o aborto não está sugerindo que se mate ou torture uma criança ou um ser vivo, está defendo um conceito de vida que não abrange um certo estágio da gestação. Os defensores do aborto não o defendem incondicionalmente, em qualquer etapa da gravidez, o que eles admitem é a possibilidade do aborto até determinado estágio, onde convencionalmente, pesando inumeros fatores (e considerando mesmo a flexbilidade desses fatores), se determina quando a vida se inicia. Essa é uma discussão longa que envolve o difícil entendimento de que a vida é um conceito que não se justifica na experiência, ao contrário, que possibilita os usos e aplicações do conceito de vida — inclusive a aplicação médica/biológica.

Dizer que “A mother is two lives” ou perguntar se “nascituro não tem diretos tambem ser defendidos” é já supor que o debate que estamos agora realizando esteja superado, em prol dos anti-abortistas. Ou seja, só para um anti-abortistas “uma mãe é duas vidas”, só para ele o “nascituro tem direitos”. Não que aqueles que defendem o aborto, como eu, pensem que as crianças não têm direitos.. nós só não achamos que eles começam na concepção. Porque não faz sentido pensar que é a experiência que nos ensina o que é (o que significa, o uso de) um conceito (vide todo o debate do início do século passado contra os [neo]positivistas). Só um “acordo” pode nos dizer o que é um conceito, e só depois dele estabelecido nos podemos aplicá-lo e determinar, portanto, o que é ou não a vida (do mesmo modo que só depois de definido um padrão de medida, é possível realizar medições; as medições supõem o padrão de medida, assim com quem diz “A mother is two lives”, supõe que esteja dado aquilo que nós estamos, aqui e agora, discutindo: quando começa a vida).

Desculpe os exemplo aparentemente frios, é preciso simplificar um pouco e apelar para alguns exemplos distantes do tema, para fazer entender a confusão conceitual envolvida nesse debate e quanta retórica há nos apelos a uma suposta vida que ainda está em questão.

PS. A determinação dos “limites” da vida é uma discussão política que deve ser aberta e largamente difundida. Procurem saber como se posicionam a respeito os paises mais desenvolvidos, aqueles que tem indicadores satisfatórios de respeito aos direitos humanos.

Depois de algumas objeções que envolviam a afirmação de que o feto é um “ser morto” para quem defende o aborto e a consideração da possibilidade de que uma convenção ou uma decisão política decida que a vida começa aos 8 meses, respondi mais uma vez.

A simplificação é sempre uma boa arma.

Que seja uma deliberação não implica uma absoluta arbitrariedade. Há fatores a serem considerados e muitos, mas o fundamental é que o conceito se define não pela experiência. A experiência não pode dizer o que é um conceito, já que nós só podemos ir até ela, e dizer o que é ou não é a vida, tendo algum já disponível.

Quando se define esse tipo de coisa, em contendas como a que aconteceu no STF (no caso das células tronco), é preciso considerar aspectos científicos relevantes como a formação de órgãos e tecidos a serem definidos como essenciais, o risco para mãe, e especialmente as consequências de uma dada definição para as políticas públicas de saúde, para a organização jurídica do país, etc. Nós já temos experiência com um conceito de vida que se inicia na concepção, ele é vigente no Brasil, e representa um incrível índice de mortalidade feminina (conforme ilustrado no primeiro caso), problemas de saúde pública os mais diversos derivados das condições precárias (e ilegais) de assistências às mulheres que querem abortar. Qual é a solução para essas mulheres? Educação religiosa? Quem não quer abortar não é afetado pela descriminalização, mas para as milhares de mulheres que morrem ou ficam severamente doentes todos os anos nas mãos de açougueiros, em açougues, o acesso a um serviço de saúde público é determinante para suas vidas.

É fácil, em nomes de princípios religiosos bem abstratos, defender que não se mate um “ser vivo” ou supor retoricamente que uma “deliberação” política/jurídica chamada a definir o conceito de vida iria por hipótese estabelecer 8 meses como o estágio inicial (os abortos só são recomendáveis até antes dos 3 MESES, depois disso, o risco para a mãe é significativo e ele só deve ser feito em casos especiais), mas se sensibilizar pela mortes reais e incontestáveis de mulheres em clínicas clandestinas, isso parece impossível. Os jogos de palavras inúteis que tornam o feto no período posterior um “ser morto”, pois não existe “um meio termo”, só tem apelo retórico, e se endereçam aqueles que já estão convencidos de suas concepções anti-abortistas. Eu estou falando para quem quer argumentar, se você tem certezas, bem, volte pra igreja, o ambiente dialógico não é lugar para quem não admite a possibilidade lógica de estar errado. Se você quer jogos de palavras, então aqui vai um para desfazer sua retórica: só pode ser considerado um “ser morto” quem já viveu, se o feto não entrou no período abrangido por nossa definição de vida, ele não pode ser considerado morto (nem vivo), do mesmo modo como não falamos que uma pedra é um ser morto (porque ela nunca chegou a viver).

A discussão continuou por lá (aliás, ela está toda lá, para quem quiser acompanhar o contexto), sem nada realmente produtivo, é verdade, porque às objeções à minha posição eram meramente retóricas e o que solicitavam era que eu me desfizesse de jogos de palavras e apelos falaciosos. A discussão é importante, em todo caso, e seria interessante considerar respostas que pudessem dialogar com as posições apresentadas e não meramente impor perspectivas, como se elas se anulassem mutuamente. O aborto é uma questão política delicada e quanto antes deliberarmos sobre ele, melhor para centenas de mulheres que hoje se submetem aos porcos serviços de clínicas clandestinas.

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