Pode parecer anacrônico perguntar pelo mal em pleno século XXI, mas não é. A questão está muito presente em nossa realidade, mascarada em diversas visões de mundo.
Por exemplo, o que vocês acham que está em questão quando uma associação de classe defende as ações indefensáveis de seus agentes alegando que não aceita a criminalização de policiais? O que está em jogo quando é pronunciada a já clássica sentença: “bandido bom é bandido morto”? Essas posições tem em comum o fato de não aceitarem abrir mão de uma perspectiva orientada fundamentalmente pela distinção entre bem e mal. Nesse sentido, o mal nada mais é do que uma parte constitutiva de um antigo e funcional sistema de referências. Nós lidamos com o mundo a partir de esquemas que tentam dar sentido à nossa experiência, o bem e o mal fazem parte de um marco de referências antigo e muito abrangente. Isso significa que ele permite organizar e, em certo sentido, explicar experiências as mais variadas. Mas o que é que isso tem a ver com “bandido bom é bandido morto” e com a reação da associação?
Nós vivemos numa sociedade que quer, pelo menos no discurso, fazer prevalecer sobre o marco de referência do bem e do mal uma perspectiva científica e racional, que explica a experiência a partir de fatos ordenados segundo causas e efeitos. A perspectiva científica do mundo não é exatamente plural (embora seja, em certa medida, internamente plural), ela não admite concorrência. A concorrência é, antes de mais nada, uma ameaça à sua eficiência instrumental e ao seu poder, mas não vem ao caso discutir isso agora. O fato é que quando a ciência toma a frente na interpretação do mundo, ela desloca todos os antigos sistemas simbólicos e a suas perspectivas sobre a experiência para um terreno marginal. Vejamos tudo isso num caso concreto: um homem comete um crime e é linchado com a conivência de policiais. Os autores do linchamento são identificados e presos e os policiais afastados do serviço. Segue-se a isso o natural protesto daqueles que acham que operou-se uma inversão: o criminoso foi vitimizado e os policiais, condenados. A palavra vítima aqui é central e não sem razão ela aparece com frequência no discurso contrário aos direitos humanos. A ciência não está ocupada em determinar quem é vítima, quem é culpado, essa é a função da justiça, ela pode auxiliar no processo judicial, mas seu papel aí é meramente instrumental (como sempre, aliás). Mas é verdade que ela desmobiliza uma certa perspectiva de poder ao complexificar um fenômeno e apresentar alternativas pra interpretar um mesmo fato. Quem orienta sua visão de mundo a partir da distinção entre bem e mal está quase sempre em guerra e opera todas suas distinções segundo uma lógica binária que identifica bons e maus. Neste terreno estrito não raras vezes as pessoas consideradas boas agem de modo incondicionalmente bom e pessoas más agem de modo incondicionalmente mau. Cada grupo e cada papel social está incondicionamento instalado no lado do bem ou do mal, independente de suas ações. Por isso a associação de classe não aceita a mudança de papéis, nenhum ato de uma pessoa boa pode convertê-la numa pessoa má, mesmo que o ato seja a tortura e o assassinato. O bem e o mal, nesse cenário, são estratégias de mobilização de afetos e de construção de poder — como o nacionalismo, em certa medida. Quando a ciência substitui essas amplas e gerais categorias por uma perspectiva instrumental multidisciplinar, ocupada fundamentalmente com fatos, ela pergunta pela causa e não pela natureza moral do agente. E o interesse da ciência é compreender para controlar. Nesse sentido, ela de fato atenua a força mobilizadora do combate ao mal, fazendo da manifestação do mal — do ato do homem que cometeu um crime — um efeito num quadro de causais possíveis e quase sempre determináveis.
E o que isso significa? Significa que a possibilidade de apontar o dedo para culpados perde sua força mobilizadora pela compreensão do ato maligno como uma ação que talvez pudesse ser evitada influindo sobre as suas causas. Percebam que em um sentido muito importante a ciência pode sim atenuar os efeitos de um crime, mostrando que as ações de um criminoso são parcialmente determinadas por causas comprováveis e que sofreram influências de variáveis ambientais ou endógenas. Num ensaio sobre as paixões, Gérard Lebrun lembrava que nosso ordenamento jurídico admite a possibilidade de atenuantes para crimes passionais. Isso quer dizer que nem é preciso estar patologicamente afetado, mas apenas temporalmente incapacitado, parar beneficiar-se da compreensão de que nem sempre temos pleno controle de nossas ações. É preciso insistir quantas vezes forem necessárias que isso não significa que a ciência converta culpados em vítimas, ela apenas apresenta um fato de tal sorte que possamos vê-lo como um ponto sobre o qual incidem inúmeras variáveis desconhecidas embora muitas delas sejam determináveis. Ao fazer ver essas variáveis, que muitas vezes tem naturezas distintas — social, psicológica, bioquímica —, a ciência converte-se também num instrumento político. Quer dizer, se você aceita compreender a violência, o crime, em termos de suas circunstâncias e causas, você está a um passo de questionar a adesão imediata e incondicional exigida por parte de quem está do lado do “bem”. Não porque você deixou de reconhecer o bem e o mal, ou mesmo de distinguir entre vítimas e culpados, mas porque o entendimento dos fenômenos da vida se complexificou. Se os “guerreiros do bem” rejeitam essa complexificação a todo custo não é porque ela transforma heróis em culpados e criminosos em vítimas, mas porque uma perspectiva complexa erode o apoio incondicional que eles precisam para se manter como força política, capaz de moldar visões de mundo, investir contra ideias, direcionar e mobilizar pessoas contra alvos precisos.
E como é que a guerra contra o mal pretende combatê-lo? Os guerreiros do bem pretendem vencer o mal acabando literalmente com ele, daí o “bandido bom é bandido morto”. Se traduzimos esse objetivo em termos teóricos, fica estampada a fragilidade da estratégia: não parece razoável esperar que os efeitos do mal (a violência, o crime, etc) acabem pela simples eliminação dos seus agentes (isso equivaleria a descartar por completo variáveis ambientais e sociais). Mas quem se recusa pensar a violência em termos de suas variáveis determinantes precisa exibir uma crença quase infantil no efeito pedagógico da punição. “Vamos matar e punir, assim os próximos pensarão duas vezes antes de cometer crimes”. Como alguém pode justificar uma crença como essa? É bem verdade que o medo é uma ferramenta poderosa, mas isso não significa que ele seja eficiente em todos os casos. Alguém conhece algum país com taxas de criminalidade razoáveis que tenha atingido essa condição eliminandos todos os seus criminosos? Esse é o tipo de argumento que se constitui e se sedimenta por mero condicionamento, pela repetição de ideias que circulam e acabam transformando-se em verdades irrefletidas, admitidas quase como dogmas, e pelo apelo simplificador e sedutor do autoritarismo.
O perigo de comparar o ponto de vista científico com a perspectiva de quem não admite abandonar o bem e o mal como único parâmetro para enxergar o mundo é transformar o debate numa luta dos iluminados contra o obscurantismo e o atraso. Desde que Trump entrou na Casa Branca, o mundo se viu varrido por uma legião de seres iluminados que tem lutado bravamente para salvar a ciência e o conhecimento humano. Essa ideia reedita a luta binária do bem contra o mal em outro cenário, aplaina uma conjuntura complexa e enfraquece a nossa já combalida capacidade de criticar a ciência e de entendê-la como parte da solução, mas também do problema. (Acho que esse texto do New Yorker dá uma boa medida disso que estou falando).
Por fim, o bem e o mal seguem sendo referências fundamentais em todos os tipos de sociedade, embora já não seja a perspectiva explicativa primordial. Os filmes de terror exploram isso. Apesar de seu poder, a ciência tem limites e nem tudo pode ser determinado e explicado cientificamente. Quando um ato maligno não se explica segundo causas, mesmo depois de uma busca exaustiva, é natural que as pessoas pensem que foi a maldade própria ao agente a responsável pelo ato. Esses dias eu li a história de um garoto que tentou matar os pais sem motivos aparentes, e pensei que essa história bem poderia ser explicada apelando a alguma força maligna. Nesse caso, fica evidente o poder explicativo desse sistema de referências tão antigo, isto é, sua capacidade de restituir o sentido onde nós já não podemos enxergá-lo. Mas converter todo ato maligno em expressão da maldade de seus agentes é apenas uma ferramenta para mobilizar pessoas na guerra contra outras pessoas, promover políticos e políticas autoritárias, fazer-nos esquecer das responsabilidades que todos nós temos como cidadãos, mascarando, por exemplo, o impacto que a desigualdade produz na vida dos outros. Não sem razão boa parte dos que acreditam cegamente na capacidade pedagógica da punição e na luta do bem contra o mal creem que nenhuma variável influencia nosso comportamento, que tudo é uma questão de vontade e que é por mera escolha que as pessoas se formam. Mesmo que suas próprias ideias sejam a expressão de que o condicionamento é muito mais forte que a deliberação, elas permanecem engajadas numa luta política contra qualquer tipo de pensamento que não admita que não somos meros resultados de nossas escolhas. E fazem propaganda de tudo que confirma sua perspectiva, de todos os casos que supostamente atestariam que somos apenas o resultado de nossas escolhas, independente de nossas circunstâncias. Nenhuma receita mais apropriada para conservar a eterna desigualdade de um país como o Brasil.
PS. Essa bizarra manifestação de um juiz é a melhor expressão do “argumento” que mescla poder e religião.