As reformas e a Eleição Direta

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Admitir a necessidade de reformas transformou-se num critério de responsabilidade política. Quem não aceita essa imposição da realidade só pode estar manipulando o interesse público em prol de uma agenda populista e irresponsável. Se as reformas são necessárias, como nos faz crer uma imprensa seriamente comprometida com uma certa agenda econômica, precisamos discutir que tipo de reformas são necessárias e quais são prioritárias. No entanto, hoje esse debate está claramente distante de um marco democrático. A relação entre o povo e as reformas é análoga à relação entre um médico (escolha a autoridade que preferir) e um paciente. O médico prescreve o que é necessário e o paciente bovinamente aceita a prescrição do médico como se fosse uma revelação divina, inquestionável e ininteligível ao intelecto de um mortal. Quando as ações políticas de um governo se determinam segundo prescrições teóricas que nem mesmo ponderam a vontade popular, a democracia perde qualquer significado e a tecnocracia triunfa. Nesse cenário, a reforma vira uma espécie de cheque em branco.

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Que reformas tem sido promovidas? O governo tem feito enormes concessões a empresas, perdoando dívidas bilionárias. O novo Refis é mais benevolente com empresas devedoras, diz hoje o Poder360. Enquanto isso, na previdência, o funcionalismo público e os militares não entraram na ciranda de avaliação da dívida da qual são proporcionalmente os maiores responsáveis. A reforma trabalhista, desenhada para estimular os job creators, vai dificultar ainda mais o problema previdenciário que nem sequer foi tocado em função da exclusão, por razões políticas, do funcionalismo público. A quem interessa esse tipo de reforma e quais são os seus resultados? Ora, a resposta é bastante óbvia, Rodrigo Maia já nem disfarça, apesar da seriedade com que especialistas os mais diversos tentam mascarar as intenções que a animam. Foucault nos lembrava com insistência que a verdade é utilizada invariavelmente como a chancela (a legitimidade de um saber) de alguma força política e de algum sistema de poder. Afinal, como um povo a quem já não mais se escuta pode questionar as verdades sabiamente demonstradas por todos os doutores que sustentam por A + B a necessidade dessas reformas?

Queiram ou não os ressentidos, o fato é que a institucionalidade da vida pública foi completamente erodida quando teve lugar o golpe parlamentar. E não apenas porque o relator do impeachment também já havia assinado créditos suplementares, como tantos outros governadores. Mas também porque o menino mimado que ficou em segundo lugar nas eleições de 2014 entrou com uma ação contra o PT no TSE só pra encher o saco. A legitimidade é uma construção simbólica frágil numa democracia tão jovem e instável como a nossa, quando o derrotado numa eleição tão apertada como a de 2014 inventa intrigas e levanta suspeitas quanto ao resultado eleitoral apenas por birra, ele estimula seus eleitores a não reconhecer a legitmidade do governo e parte desse precário arranjo se esfacela. Ninguém precisa concordar com as ações de um governo para o qual não votou, mas a própria força institucional depende de que se mantenha ao menos um certo respeito. Uma vez perdido esse respeito pelo papel institucional de um governo, as coisas se passam segundo a lógica dos “fins justificam os meios” e toda ação dirigida a destituir o governo parece (falsamente) ganhar legitimidade. Hoje em dia todos sabem que legitimidade da escolha popular foi revogada por dois motivos: para desindratar a Lava Jato, em favor da classe política, e para promover reformas favoráveis à classe empresarial que financia os políticos. É preciso reconstruir essa legitimidade. É difícil? Sem dúvida. Há muitos problemas, muita oposição, e nenhum partido parece especialmente interessado nessa possibilidade, em grande parte por motivos estruturais. Celso Rocha de Barros tem um bom texto sobre os riscos do Pós-Temer, vale a pena a leitura. De todo modo, apesar das dificuldades, a eleição direta tem que ser uma aposta na reconstrução da legitimidade das ações do governo, ela tem que acompanhar um compromisso supra-partidário de respeitar o resultado das eleições e a institucionalidade do governo, e um esforço para promover e estimular, entre os eleitores, o respeito à ordem institucional, mesmo no caso da vitória do adversário político. Do jeito que nós estamos hoje as pessoas só aceitariam a vitória dos seus escolhidos e assim nós não podemos escapar dessa crise.

Se o casuísmo prevalecer, como tem acontecido, a democracia naufragará e ficaremos reféns dessa ou daquela autoridade (dessa ou daquela força econômica) que, tendo meios, fará prevalecer sua perspectiva, a despeito da vontade geral. Não é uma saída simples, não há nada garantido, mas é menos pior, pra quem ainda acredita na democracia.

PS. Vale a pena ler essa perspectiva favorável às eleições indiretas e suas razões.
PPS. Encontrei um bom texto sobre o porquê da urgência na aprovação das reformas.

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