Na fronteira do ateísmo

Eu nunca fui um ateu caricato, cuidei pra não ser. Desses que citam Bertrand Russell em sua fase mais panfletária. Mesmo em sua fase mais panfletária, permitam que eu me corrija, as coisas que Russell escrevia ou dizia tinham a marca de sua notória inteligência e generosidade. Bem, o que eu quero dizer é que meu ateísmo tem grande componente de reflexividade, não é um mero ativismo intelectual. Eu nunca o escondi, o ateísmo hoje em dia está numa posição muito confortável comparado com o passado, mas nunca fui ativista. Acho simplória a ideia de que as religiões são o mal do mundo, como vejo circular por aí, embora no Brasil de hoje seja muito difícil não se ressentir do lucrativo e poderoso mercado que se criou em torno da figura de Cristo.

Piauí: Sem fiéis, sem dízimo, sem palanque

Há sociedades que nós classificaríamos como religiosas que nem sequer possuem o conceito de religião, porque não fazem separações conceituais que nós fazemos e nas quais acreditamos cegamente. A coisa é muito mais complicada e não se resolve com um mero apontar o dedo contra as religiões e denunciá-las como formas de servidão mental e manipulação. As pessoas são mais complicadas que nossos mais elaborados esquemas.

Flying Spaghetti Monster - Wikipedia
É verdade que às vezes me divertiam as gozações do ativismo ateu, o humor abranda a gravidade de tudo. E já preenchi um par de formulários me declarando pastafarian.

E o caso é que o ateísmo pode ser também uma forma de ativismo, tem gente que se crê soldado do ateísmo — o soldado do bem, só que sem o bem. Um soldado, com ou sem o bem, é um soldado, não é alguém dado à reflexão, mas à ação e à obediência. A reflexão exige tempo, ponderação e o bom exercício do juízo (autonomia). É certo que temos nos acelerado absurdamente, mas nunca até o ponto de que coincidam a urgência de nossa necessidade de ação (intervenção) e o tempo necessário ao exercício do juízo. Se até os processadores tem limites físicos de aceleração no seu processo de desenvolvimento (aumento da frequência), não somos nós quem vamos ganhar essa corrida — nós, seres primitivos e puramente biológicos.

Ainda que eu valorize a reflexão e a reflexividade ao ponto de aceitar seu lado, digamos, sombrio — a instabilidade, o relativismo, a dissonância — isso não significa que estou livre dos hábitos, especialmente dos hábitos de pensamento. Quando me interesso por fenômenos fora do espaço da ciência, eu os observo com um olhar analítico do qual não sei me despir. Tudo começa já ao categorizá-los como fenômenos, com a separação e a rotulação. Por exemplo, a meditação como fenômeno. Duvido que em alguma cultura oriental, que a incorpore como parte fundamental das suas práticas, trate a meditação em termos estritamente materialistas. E pra mim é difícil me esquivar dessa tendência. A verdade é que faz muito sentido, digo, a redutibilidade materialista é fascinante. No vídeo abaixo, essa tendência se revela numa perspectiva orientada ao Business. Há um enorme mercado de produtividade, um mercado onde circula muito dinheiro porque os clientes desse mercado são os CEOs de empresas importantes da nossa amada economia globalizada.

Imagine quanto dinheiro esses caras não ganham fazendo consultoria pra jovens empresários querendo ser Brilliant every single day. Por preconceito, eu só consigo pensar em American Psycho.

A meditação me atraí, mas como método milenar de controle da variabilidade da frequência cardíaca. E faz muito sentido. Dada nossa constituição biológica, os níveis fisiológicos mais fundamentais determinam os processos corporais e mentais mais complexos. Aí de repente me vejo enrolado na consideração histórica do debate sobre a ascendência do corpo sobre o mental, ou da posição contrária, a força determinante do espiritual (ou mental, a res cogitans) sobre o material; ou ainda à crítica ao dualismo nas neurociências. E mais uma vez imensamente distante de qualquer coisa que não seja intelectual.

É difícil para um ateu livrar-se das lentes do ateísmo, pois, em geral, o ateu crê que não usa lentes. Todos os outros usam, não os ateus. Os ateus veem o mundo objetivamente, como ele é. Eles adotam uma atitude imparcial e desde essa perspectiva veem o mundo objetivamente, sem valores — como naquele livro de fatos de que Wittgenstein fala na Conferência sobre ética, um livro que conteria a descrição total do mundo e onde não estaria nenhum juízo de valor. No Tractatus Logico-Philosophicus há um comentário que explica muito da atitude cientificista e ateísta.

A lógica preenche o mundo; os limites do mundo são também seus limites.

Wittgenstein,Tractatus Logico-Philosophicus 5.61

Não há um lado de fora, a lógica preenche o mundo. Quem crê que existe um lado de fora do campo da determinação (lógica ou natural) está apenas se iludindo e inventando uma desculpa pra não lidar com sua imensa ignorância sobre o mundo (e com o sentimento que essa ignorância traz). As pessoas que acreditam na ciência se esforçam para compreender o mundo, para explicá-lo, por mais que saibam que talvez nunca possamos esvaziar o imenso reservatório da nossa ignorância (é preciso reservar um espaço lógico para a indeterminação), eles se empenham diariamente em conhecer mais. Supor um lado de fora é uma posição comodista, preguiçosa e anticientífica.

Nem todo mundo postula um lado de fora do espaço lógico como resposta preguiçosa a um problema teórico. O lado de fora se coloca mesmo dentro da própria lógica, com o problema da cegueira normativa, por exemplo. E essa discussão poderia tomar o rumo da discussão de Wittgenstein sobre a antropologia, as Observações sobre o Ramo de Ouro e suas respostas a Frazer. Mas eu prefiro usar Nietzsche, pra não perder o costume.

A necessidade do ilógico. — Entre as coisas que podem levar um pensador ao desespero está o conhecimento de que o ilógico é necessário aos homens e que do ilógico nasce muita coisa boa. Ele se acha tão firmemente alojado nas paixões, na linguagem, na arte, na religião, em tudo o que empresta valor à vida, que não podemos extraí-lo sem danificar irremediavelmente essas belas coisas. Apenas os homens muito ingênuos podem acreditar que a natureza humana pode ser transformada numa natureza puramente lógica; mas, se houvesse graus de aproximação a essa meta, o que não se haveria de perder nesse caminho! Mesmo o homem mais racional precisa, de tempo em tempo, novamente da natureza, isto é, de sua ilógica relação fundamental com todas as coisas.

Nietzsche, humano, demasiado humano, 31

A relação fundamental com todas as coisas é algo que sinto que devo resgatar (resgatar?!) depois de estar por tanto tempo usando as lentes do ateísmo. Como um desafio, não intelectual, mas espiritual. Enxergar o que não fomos treinados a ver é um imenso desafio, porque exige uma nova espécie de atenção, uma atenção que está constantemente sob ameaça de ser de novo tragada para as engrenagens analíticas do racionalismo, da minha tendência lógica e intelectual. É difícil aceitar a indeterminação porque aceitá-la exige mais que virtudes intelectuais, requer a coragem de quem ama o destino e é capaz de dizer sim a todas as coisas, não fugir do necessário — abandonar a ilusão do controle (que é o motor da ciência) e cruzar as fronteiras do ateísmo em direção a algo não inteiramente conhecido.


Antonius Block ainda é um dos meus heróis.

O que é o mal e por que isso importa?

Pode parecer anacrônico perguntar pelo mal em pleno século XXI, mas não é. A questão está muito presente em nossa realidade, mascarada em diversas visões de mundo.

Por exemplo, o que vocês acham que está em questão quando uma associação de classe defende as ações indefensáveis de seus agentes alegando que não aceita a criminalização de policiais? O que está em jogo quando é pronunciada a já clássica sentença: “bandido bom é bandido morto”? Essas posições tem em comum o fato de não aceitarem abrir mão de uma perspectiva orientada fundamentalmente pela distinção entre bem e mal. Nesse sentido, o mal nada mais é do que uma parte constitutiva de um antigo e funcional sistema de referências. Nós lidamos com o mundo a partir de esquemas que tentam dar sentido à nossa experiência, o bem e o mal fazem parte de um marco de referências antigo e muito abrangente. Isso significa que ele permite organizar e, em certo sentido, explicar experiências as mais variadas. Mas o que é que isso tem a ver com “bandido bom é bandido morto” e com a reação da associação?

Nós vivemos numa sociedade que quer, pelo menos no discurso, fazer prevalecer sobre o marco de referência do bem e do mal uma perspectiva científica e racional, que explica a experiência a partir de fatos ordenados segundo causas e efeitos. A perspectiva científica do mundo não é exatamente plural (embora seja, em certa medida, internamente plural), ela não admite concorrência. A concorrência é, antes de mais nada, uma ameaça à sua eficiência instrumental e ao seu poder, mas não vem ao caso discutir isso agora. O fato é que quando a ciência toma a frente na interpretação do mundo, ela desloca todos os antigos sistemas simbólicos e a suas perspectivas sobre a experiência para um terreno marginal. Vejamos tudo isso num caso concreto: um homem comete um crime e é linchado com a conivência de policiais. Os autores do linchamento são identificados e presos e os policiais afastados do serviço. Segue-se a isso o natural protesto daqueles que acham que operou-se uma inversão: o criminoso foi vitimizado e os policiais, condenados. A palavra vítima aqui é central e não sem razão ela aparece com frequência no discurso contrário aos direitos humanos. A ciência não está ocupada em determinar quem é vítima, quem é culpado, essa é a função da justiça, ela pode auxiliar no processo judicial, mas seu papel aí é meramente instrumental (como sempre, aliás). Mas é verdade que ela desmobiliza uma certa perspectiva de poder ao complexificar um fenômeno e apresentar  alternativas pra interpretar um mesmo fato. Quem orienta sua visão de mundo a partir da distinção entre bem e mal está quase sempre em guerra e opera todas suas distinções segundo uma lógica binária que identifica bons e maus. Neste terreno estrito não raras vezes as pessoas consideradas boas agem de modo incondicionalmente bom e pessoas más agem de modo incondicionalmente mau. Cada grupo e cada papel social está incondicionamento instalado no lado do bem ou do mal, independente de suas ações. Por isso a associação de classe não aceita a mudança de papéis, nenhum ato de uma pessoa boa pode convertê-la numa pessoa má, mesmo que o ato seja a tortura e o assassinato. O bem e o mal, nesse cenário, são estratégias de mobilização de afetos e de construção de poder — como o nacionalismo, em certa medida. Quando a ciência substitui essas amplas e gerais categorias por uma perspectiva instrumental multidisciplinar, ocupada fundamentalmente com fatos, ela pergunta pela causa e não pela natureza moral do agente. E o interesse da ciência é compreender para controlar. Nesse sentido, ela de fato atenua a força mobilizadora do combate ao mal, fazendo da manifestação do mal — do ato do homem que cometeu um crime — um efeito num quadro de causais possíveis e quase sempre determináveis.

E o que isso significa? Significa que a possibilidade de apontar o dedo para culpados perde sua força mobilizadora pela compreensão do ato maligno como uma ação que talvez pudesse ser evitada influindo sobre as suas causas. Percebam que em um sentido muito importante a ciência pode sim atenuar os efeitos de um crime, mostrando que as ações de um criminoso são parcialmente determinadas por causas comprováveis e que sofreram influências de variáveis ambientais ou endógenas. Num ensaio sobre as paixões, Gérard Lebrun lembrava que nosso ordenamento jurídico admite a possibilidade de atenuantes para crimes passionais. Isso quer dizer que nem é preciso estar patologicamente afetado, mas apenas temporalmente incapacitado, parar beneficiar-se da compreensão de que nem sempre temos pleno controle de nossas ações. É preciso insistir quantas vezes forem necessárias que isso não significa que a ciência converta culpados em vítimas, ela apenas apresenta um fato de tal sorte que possamos vê-lo como um ponto sobre o qual incidem inúmeras variáveis desconhecidas embora muitas delas sejam determináveis. Ao fazer ver essas variáveis, que muitas vezes tem naturezas distintas — social, psicológica, bioquímica —, a ciência converte-se também num instrumento político. Quer dizer, se você aceita compreender a violência, o crime, em termos de suas circunstâncias e causas, você está a um passo de questionar a adesão imediata e incondicional exigida por parte de quem está do lado do “bem”. Não porque você deixou de reconhecer o bem e o mal, ou mesmo de distinguir entre vítimas e culpados, mas porque o entendimento dos fenômenos da vida se complexificou. Se os “guerreiros do bem” rejeitam essa complexificação a todo custo não é porque ela transforma heróis em culpados e criminosos em vítimas, mas porque uma perspectiva complexa erode o apoio incondicional que eles precisam para se manter como força política, capaz de moldar visões de mundo, investir contra ideias, direcionar e mobilizar pessoas contra alvos precisos.

E como é que a guerra contra o mal pretende combatê-lo? Os guerreiros do bem pretendem vencer o mal acabando literalmente com ele, daí o “bandido bom é bandido morto”. Se traduzimos esse objetivo em termos teóricos, fica estampada a fragilidade da estratégia: não parece razoável esperar que os efeitos do mal (a violência, o crime, etc) acabem pela simples eliminação dos seus agentes (isso equivaleria a descartar por completo variáveis ambientais e sociais). Mas quem se recusa pensar a violência em termos de suas variáveis determinantes precisa exibir uma crença quase infantil no efeito pedagógico da punição. “Vamos matar e punir, assim os próximos pensarão duas vezes antes de cometer crimes”. Como alguém pode justificar uma crença como essa? É bem verdade que o medo é uma ferramenta poderosa, mas isso não significa que ele seja eficiente em todos os casos. Alguém conhece algum país com taxas de criminalidade razoáveis que tenha atingido essa condição eliminandos todos os seus criminosos? Esse é o tipo de argumento que se constitui e se sedimenta por mero condicionamento, pela repetição de ideias que circulam e acabam transformando-se em verdades irrefletidas, admitidas quase como dogmas, e pelo apelo simplificador e sedutor do autoritarismo.

O perigo de comparar o ponto de vista científico com a perspectiva de quem não admite abandonar o bem e o mal como único parâmetro para enxergar o mundo é transformar o debate numa luta dos iluminados contra o obscurantismo e o atraso. Desde que Trump entrou na Casa Branca, o mundo se viu varrido por uma legião de seres iluminados que tem lutado bravamente para salvar a ciência e o conhecimento humano. Essa ideia reedita a luta binária do bem contra o mal em outro cenário, aplaina uma conjuntura complexa e enfraquece a nossa já combalida capacidade de criticar a ciência e de entendê-la como parte da solução, mas também do problema. (Acho que esse texto do New Yorker dá uma boa medida disso que estou falando).

Por fim, o bem e o mal seguem sendo referências fundamentais em todos os tipos de sociedade, embora já não seja a perspectiva explicativa primordial. Os filmes de terror exploram isso. Apesar de seu poder, a ciência tem limites e nem tudo pode ser determinado e explicado cientificamente. Quando um ato maligno não se explica segundo causas, mesmo depois de uma busca exaustiva, é natural que as pessoas pensem que foi a maldade própria ao agente a responsável pelo ato. Esses dias eu li a história de um garoto que tentou matar os pais sem motivos aparentes, e pensei que essa história bem poderia ser explicada apelando a alguma força maligna. Nesse caso, fica evidente o poder explicativo desse sistema de referências tão antigo, isto é, sua capacidade de restituir o sentido onde nós já não podemos enxergá-lo. Mas converter todo ato maligno em expressão da maldade de seus agentes é apenas uma ferramenta para mobilizar pessoas na guerra contra outras pessoas, promover políticos e políticas autoritárias, fazer-nos esquecer das responsabilidades que todos nós temos como cidadãos, mascarando, por exemplo, o impacto que a desigualdade produz na vida dos outros. Não sem razão boa parte dos que acreditam cegamente na capacidade pedagógica da punição e na luta do bem contra o mal creem que nenhuma variável influencia nosso comportamento, que tudo é uma questão de vontade e que é por mera escolha que as pessoas se formam. Mesmo que suas próprias ideias sejam a expressão de que o condicionamento é muito mais forte que a deliberação, elas permanecem engajadas numa luta política contra qualquer tipo de pensamento que não admita que não somos meros resultados de nossas escolhas. E fazem propaganda de tudo que confirma sua perspectiva, de todos os casos que supostamente atestariam que somos apenas o resultado de nossas escolhas, independente de nossas circunstâncias. Nenhuma receita mais apropriada para conservar a eterna desigualdade de um país como o Brasil.

Se Vitor conseguiu, qualquer um pode conseguir.
Quem não consegue é porque não se esforçou o bastante, afinal somos todos iguais e tudo é possível, não é mesmo? Esse é o único momento em que conservadorismo se aproxima de uma perspectiva igualitária.

PS. Essa bizarra manifestação de um juiz é a melhor expressão do “argumento” que mescla poder e religião.

Religiosidade: uma ameaça possível à ordem argumentativa?

Eu estava assistindo o vídeo de um programa em que Tulio Vianna comenta a questão da pirataria quando um comentário chamou minha atenção:

Ymaei quem pirateia é bandido

Eu planejei escrever sobre esse tipo de comportamento, mas pensei que vocês não fossem gostar. Agora o tema se me impõe. É incrível, não há obstáculos que impeçam um sujeito completamente ignorante de manifestar garbosamente sua imbecilidade. Longe de mim recomendar a censura ou coisas do gênero, o que me surpreende é que não existam mecanismos internos (vergonha, culpa, insegurança, receio) capazes de deter a expressão da bestialidade. (É preciso esclarecer, essa característica não se restringe aos religiosos, eu considerei escrever sobre assunto depois de ler comentários igualmente levianos sobre o Linux, destilados na caixa de comentários de um artigo no G1 que pretendia esclarecer dúvidas sobre o sistema).

O indíviduo passa anos estudando, sedimentando ideias e escolhas, fundamentando-as em fontes confiáveis ou construindo suas próprias bases teóricas, para que sua posição seja contraposta numa sentença dogmática que simplesmente ignora toda a argumentação em contrário. Curioso, fui olhar o perfil de criatura. Vejam os vídeos que encontrei por lá: Deus humilha o diabo no carnavalO Diabo perde a graça na Sapucaí. E, por fim: Silas Malafaia pregando contra a pirataria. A doutrina evangélica expandiu seus domínios e agora legisla também sobre o comportamento dos seus fiéis diante de um computador. O argumento do pastor: “O que Deus vai achar disso?” Comprou o CD pirata do pastor? “Você vai pro inferno, irmão”. Deus deve estar mesmo muito ocupado examinando a procedência dos CDs comprados pelos seus fiéis.

A intolerância é odiosa. Quando ela se mistura à estupidez, eis a receita de tudo que me contraria. Constatar o fortalecimento da classe evangélica, da representatividade política, da penetração da cultura gospel nos mais variados setores da vida cultural do país, é aterrorizante.

Abraão e Isaac

Meu temor é que, em circunstâncias extraordinárias — não é preciso que seja uma ameaça extraterrestre, como em O nevoeiro —, as pessoas se disponham a alienar o pouco espírito crítico e a autonomia que lhes restam a um suposto representante de Deus — como no filme. Desse modo, fiéis se converteriam em soldados cegos, guiados por alguém cujas palavras manifestam a vontade de Deus. Qual é o limite ou ao que estaria disposta uma pessoa submissa aos desígnios de Deus? Bem, vocês devem conhecer o famoso caso bíblico, o sacríficio de Isaac por Abraão (ou pelo menos a ordem divina), que fomentou grandiosas reflexões de Kierkegaard. (Em todo caso, o filme O nevoeiro é bastante para divisar as consequências nefastas dessa confiança cega). 

Qualquer ordem argumentativa se dissolve quando confrontada com os imperativos de uma entidade doadora de sentido. Ou seja, nenhum argumento, por mais forte e convincente que seja, mantém-se em pé caso se contraponha a uma ordem supostamente emanda por um Deus, isto é, por algo que provê o sentido da vida, a segurança e a esperança de milhões de pessoas. Deus é, antropologicamente, um instrumento de poder. Uma ferramenta que, desde tempos imemoriais, tem sido empregada para agenciar os medos mais primitivos dos homens em favor de certos grupos. As circunstâncias extraordinárias tendem a aprofundar a confiança nas ordens superiores — em prejuízo da crença na capacidade humana (desastres climáticos, guerras persistentes e situações políticas e sociais adversas). À medida que se perde a confiança nas forças humanas, tem sido quase natural entre nós, as expectativas são depositadas nos ombros de algum entidade. Com uma vantagem. Nas religiões, ao contrário da maior parte dos sistemas argumentativos, contradições constantes podem ser equilibradas convocando a famosa cláusula do Deus imperscrutável. “Deus escreve certo por linhas tortas”. Mais uma mostra da limitações humanas, não ser capaz de advinhar os desígnios divinos. A religiosidade é impenetrável.

Mas o problema maior ainda não está exposto. Quando Deus é o fator determinante para configuração de  códigos éticos e da moralidade de um tempo, os crédulos ficam sujeitos à vontade dos seus intérpretes. Situações adversas podem ser explicadas apelando para a suposta insatisfação divina, e redundar assim numa brusca alteração de códigos e normas de comportamento. Por hipótese, se, no futuro, a constância de uma série terrível de catástrofes naturais for explicada por algum pastor como resultado da insatisfação divina frente à iniquidade dos homens, quem deixará de agir conforme as palavras e recomendações desse pastor, caso reconheça nele a autoridade de um dos intérpretes de Deus? Quanto poder pode acumular uma pessoa quando o que ela manipula é o capital simbólico do medo e da esperança? Eu não consigo imaginar poder mais terrível.

A Igreja Católica durante longos séculos sustentou a pretensão de dar bases racionais à sua fé, por isso dissimulou parte da sua arbitrariedade. Hoje, enfraquecida pela sombra dos seus erros antigos e atuais, ela não apresenta ameaça significativa. As Igrejas neopentecostais, os evangélicos, por sua vez, são um perigo flagrante. Não é nem mesmo preciso que dissimulem, a democracia comporta a existência de suas ideias. Esse é um perigo, aliás, que subjaz à toda forma de religiosidade.

Se em circunstâncias normais as pessoas estão dispostas a aceitar os mais rasos argumentos do pastor Silas Malafaia, a agir ou não agir conforme seus conselhos, apenas porque ele é pretensamente reconhecido como um intérprete de Deus, o que aconteceria em situações extremadas? Se no contexto de reuniões diárias não há espaço para contrariar suas recomendações, imaginem vocês o que aconteceria caso o poder que ele detem fosse exponenciado por uma circunstância que colocasse a escolha divina como a única opção, como a única fonte de esperança, caso tudo que restasse aos homens fossem esperar por uma intervenção divina. As palavras dele teriam a força de lei. Nasceria assim um novo Leviatã.

A imagem do Leviatã é boa em muitos sentidos. A dissolução de um ordem argumentativa coincide também com a anulação quase que completa dos vínculos entre os sujeitos que a compunham. Há uma centralização na figura do Leviatã. Isto é, algo como um pacto entre eles deixa de existir, eles deixam de ter uns sobre os outros a capacidade de influenciar, demonstrar, persuadir, convencer, enquanto existir o Império do medo e da esperança. Toda a diferença é anulada enquanto o que restar for a promessa de uma salvação da Providência.

O poder da religião é ainda a mais velha, forte e complexa estrutura de manipulação e agenciamento da História e, repito, quando ela se mistura à política institucional, é de arrepiar. Faz a gente pensar que o poder cego e delirante pode se erguer mesmo sem o auxílio de circunstâncias extraordinárias. Eu quero ter morrido antes disso. Oxalá!

Procura-se um Deus

Li com assombro uma passagem do artigo da Foreign Policy sobre a maioridade do caos na Somália:

Western powers should do whatever they can to bring moderate Islamists into the transitional government while the transitional government still exists. Whether people like it or not, many Somalis see Islamic law as the answer. Maybe they’re not fond of the harsh form imposed by the Shabab, who have, on at least one occasion, stoned to death a teenage girl who had been raped (an Islamic court found her guilty of adultery).

Que espécie de entidade, a que se predica bondade e amor infinitos, permite que tais coisas aconteçam? Que malabarismo ideológico salva da completa incoerência a pretensão de afirmar sua existência? É um argumento antigo, mas ainda eficiente.

Antes que algum exemplar de cínico venha aqui sublinhar a condição muçulmana dos envolvidos, registro não se tratar de uma discussão política, nem religiosa no sentido institucional (leis, normas, entidades, etc). É um discussão metafísica sobre o estatuto do conceito de Deus, mais precisamente, do Deus cristão. A resposta a essas dúvidas vêm com frequência na forma de um aviltamento da nossa capacidade intelectual ou na exortação dos planos insondáves do Altíssimo. Conveniente, não? Se não podemos compreender, por incapacidade, só nos resta confiar cegamente e rezar para não cair por acidente nos trilhos dos imperscrutáveis desígnios divinos. Argumentos semelhantes me fazem lembrar a caricatura que Popper fez da psicologia de Adler e Freud:

I may illustrate this by two very different examples of human behavior: that of a man who pushes a child into the water with the intention of drowning it; and that of a man who sacrifices his life in an attempt to save the child. Each of these two cases can be explained with equal ease in Freudian and Adlerian terms. According to Freud the first man suffered from repression (say, of some component of his Oedipus complex), while the second man had achieved sublimation. According to Adler the first man suffered from feelings of inferiority (producing perhaps the need to prove to himself that he dared to commit some crime), and so did the second man (whose need was to prove to himself that he dared to rescue the child). I could not think of any human behavior which could not be interpreted in terms of either theory. It was precisely this fact — that they always fitted, that they were always confirmed — which in the eyes of their admirers constituted the strongest argument in favor of these theories. It began to dawn on me that this apparent strength was in fact their weakness.

A religião é algo do gênero: sua força reside no seu poder explicativo, ainda que para isso ela precise mobilizar um arsenal quase infantil de conceitos. O dilema pode ser grosseiramente definido: o homem precisa de explicações, a religião é fé e de-cisão — para explicar ela precisa ser totalitária e anticientífica, no sentido de Popper. Ela precisa ocupar todos os espaços. Por consequência, na medida em que os fundamentos são oferecidos dogmaticamente, tudo que nos resta é uma crença de segundo nível: existindo Deus precisamos crer também que ele é sumamente bom e que, embora não possamos compreender seus planos, age sempre em nosso benefício. Vida dura, hein? Nem tanto, não para quem está na frente de um Mac, bem longe da Somália ou de Darfur, na deliciosa companhia da Suma teológica.

Há poucas coisas mais inúteis do que discutir Deus e religião. O que me traz aqui é menos a vontade de debater do que o estranhamento diante do silêncio das mais exaltadas vozes cristãs diante dos bárbaros acontecimentos do mundo. Na certa estão ocupadas com coisas mais importantes. Assim na terra como no céu: se a bondade e o amor divinos não se sentem ameaçados em sua coerência pela maldade prevalecente, bem, não serão os pobres mortais que cairão pela incoerência de ser cristão e permanecer indiferente à realidade de mais da metade do mundo.

Vamos rezar para que apareça algum Deus que possamos entender.

Freud e a Religião

Mesmo os que olharam com desconfiança para a psicanálise não deixaram de reconhecer na literatura de Freud a expressão de uma habilidade singular com a palavra. Seus usos conceituais são frequentemente claros — embora o grandioso desenvolvimento deixe lacunas inegáveis — ao mesmo tempo em que há um forte apelo retórico na articulação das suas idéias. Tudo isso faz dos textos freudianos fonte de enorme prazer. O mal-estar na Civilização é um bom exemplo. Embora não seja o cânone freudiano acerca da religião (que geralmente se identifca em O futuro de uma ilusão), ali se encontram algumas passagens entre precisas e engraçadas. Vou recortar alguns dos fragmentos que eu gosto a fim de estimular a leitura desse texto.

O primeiro diz respeito a uma análise econômica dos investimentos de energia envolvidos na religião. Freud diz no final da segunda parte do texto:

A religião restringe esse jogo de escolha e adaptação, desde que impõe igualmente a todos o seu próprio caminho para a aquisição da felicidade e da proteção contra o sofrimento. Sua técnica consiste em depreciar o valor da vida e deformar o quadro do mundo real de maneira delirante – maneira que pressupõe uma intimidação da inteligência. A esse preço, por fixá-las à força num estado de infantilismo psicológico e por arrastá-las a um delírio de massa, a religião consegue poupar a muitas pessoas uma neurose individual. Dificilmente, porém, algo mais. Existem, como dissemos, muitos caminhos que podem levar à felicidade passível de ser atingida pelos homens, mas nenhum que o faça com toda segurança. Mesmo a religião não consegue manter sua promessa. Se, finalmente, o crente se vê obrigado a falar dos “desígnios inescrutáveis” de Deus, está admitindo que tudo que lhe sobrou, como último consolo e fonte de prazer possíveis em seu sofrimento, foi uma submissão incondicional. E, se está preparado para isso, provavelmente poderia ter-se poupado o détour que efetuou.

Se o mundo é fonte inevitável de sofrimento e se não há “regra de ouro” na busca pela felicidade, tudo que a religião pode oferecer é uma submissão incondicional. Quem está disposto a se submeter incondicionalmente não precisa “efetuar o détour” religioso, basta que se conforme com o curso natural das coisas. Brilhante! O segundo fragmento comenta o mandamento “amarás o teu próximo como a ti mesmo”:

Essa exigência, conhecida em todo o mundo, é, indubitavelmente, mais antiga que o cristianismo, que a apresenta como sua reivindicação mais gloriosa. No entanto, ela não é decerto excessivamente antiga; mesmo já em tempos históricos, ainda era estranha à humanidade. Se adotarmos uma atitude ingênua para com ela, como se a estivéssemos ouvindo pela primeira vez, não poderemos reprimir um sentimento de surpresa e perplexidade. Por que deveremos agir desse modo? Que bem isso nos trará? Acima de tudo, como conseguiremos agir desse modo? Como isso pode ser possível? Meu amor, para mim, é algo de valioso, que eu não devo jogar fora sem reflexão. A máxima me impõe deveres para cujo cumprimento devo estar preparado e disposto a efetuar sacrifícios. Se amo uma pessoa, ela tem de merecer meu amor de alguma maneira. Ela merecerá meu amor, se for de tal modo semelhante a mim, em aspectos importantes, que eu me possa amar nela; merecê-lo-á também, se for de tal modo mais perfeita do que eu, que nela eu possa amar meu ideal de meu próprio eu (self). Terei ainda de amá-la, se for o filho de meu amigo, já que o sofrimento que este sentiria se algum dano lhe ocorresse seria meu sofrimento também – eu teria de partilhá-lo. Mas, se essa pessoa for um estranho para mim e não conseguir atrair-me por um de seus próprios valores, ou por qualquer significação que já possa ter adquirido para a minha vida emocional, me será muito difícil amá-la. Na verdade, eu estaria errado agindo assim, pois meu amor é valorizado por todos os meus como um sinal de minha preferência por eles, e seria injusto para com eles, colocar um estranho no mesmo plano em que eles estão. Se, no entanto, devo amá-lo (com esse amor universal) meramente porque ele também é um habitante da Terra, assim como o são um inseto, uma minhoca ou uma serpente, receio então que só uma pequena quantidade de meu amor caberá à sua parte – e não, em hipótese alguma, tanto quanto, pelo julgamento de minha razão, tenho o direito de reter para mim. Qual é o sentido de um preceito enunciado com tanta solenidade, se seu cumprimento não pode ser recomendado como razoável? (…) Na verdade, se aquele imponente mandamento dissesse ‘Ama a teu próximo como este te ama’, eu não lhe faria objeções.

O texto é divertidíssimo. Embora os fragmentos sejam longos — aqui eu apenas fiz recortes –, a argumentação é bem detalhado e examina até a exigência de se “amar os teus inimigos”. Mas continuemos no mesmo rumo:

O mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo, mandamento que é realmente justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original do homem. A despeito de todos os esforços, esses empenhos da civilização até hoje não conseguiram muito. Espera-se impedir os excessos mais grosseiros da violência brutal por si mesma, supondo-se o direito de usar a violência contra os criminosos; no entanto, a lei não é capaz de deitar a mão sobre as manifestações mais cautelosas e refinadas da agressividade humana. Chega a hora em que cada um de nós tem de abandonar, como sendo ilusões, as esperanças que, na juventude, depositou em seus semelhantes, e aprende quanta dificuldade e sofrimento foram acrescentados à sua vida pela má vontade deles. Ao mesmo tempo, seria injusto censurar a civilização por tentar eliminar da atividade humana a luta e a competição. Elas são indubitavelmente indispensáveis. Mas oposição não é necessariamente inimizade; simplesmente, ela é mal empregada e tornada uma ocasião para a inimizade.

Kant também compreende assim o papel da competição no desenvolvimento humano em sua Idéias sobre a história universal sob o ponto de vista cosmopolita. Aliás, a psicologia de grupo de Freud parece se articular inteiramente sobre essa tese. Ele continua mais adiante:

É sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade. Em outra ocasião, examinei o fenômeno no qual são precisamente comunidades com territórios adjacentes, e mutuamente relacionadas também sob outros aspectos, que se empenham em rixas constantes, ridicularizando-se umas às outras, como os espanhóis e os portugueses por exemplo, os alemães do Norte e os alemães do Sul, os ingleses e os escoceses, e assim por diante.

Ele segue examinando aspectos estreitamente relacionados à psicologia de grupo durante as próximas passagens. Na oitava parte, sentencia:

O mandamento “Ama a teu próximo como a ti mesmo” constitui a defesa mais forte contra a agressividade humana e um excelente exemplo dos procedimentos não psicológicos do superego cultural. É impossível cumprir esse mandamento; uma inflação tão enorme de amor só pode rebaixar seu valor, sem se livrar da dificuldade. A civilização não presta atenção a tudo isso; ela meramente nos adverte que quanto mais difícil é obedecer ao preceito, mais meritório é proceder assim. Contudo, todo aquele que, na civilização atual, siga tal preceito, só se coloca em desvantagem frente à pessoa que despreza esse mesmo preceito. Que poderoso obstáculo à civilização a agressividade deve ser, se a defesa contra ela pode causar tanta infelicidade quanto a própria agressividade! A ética ‘natural’, tal como é chamada, nada tem a oferecer aqui, exceto a satisfação narcísica de se poder pensar que se é melhor do que os outros.

É verdade que Freud tem uma crença quase cega na ciência, mas sua investida contra a religião não é por isso menos divertida e destruidora. Coloco a disposição de vocês, queridos amigos, o 21º volume das Obras Completas de Freud, que contém O futuro de uma ilusão e O mal-estar na civilização entre outros bons textos. É a mesma tradução que consta na edição da Imago, com os mesmos erros e passível de severas críticas de tradução. Mas aqui queremos apenas nos inteirar de alguns tópicos do pensamento de Freud e pra isso podemos ignorar tais observações.