A Ética da Autenticidade

Os franceses são muito formais, todo mundo sabe disso. Quando criança minha esposa foi viver em Paris e, embora tenha absorvido muita coisa dos franceses, não morre de amores pelos parisienses. Ela me conta como ainda se sente constrangida, sempre que precisa falar com franceses, a repetir o mantra que lhe foi inculcado: “Bonjour! Excusez-moi de vous déranger. S’il vous plaît, pourriez-vous…” (Bom dia! Desculpa incomodá-lo. Por favor, seria possível…). Apesar da fórmula, da sentença quase mecânica, é preciso compreendê-los. Na França, a cidadania é uma ideia muito forte (Paulo Arantes conta isso e muitas outras coisas nesse vídeo) e em certo sentido eles são aristotélicos em seu intuito de tentar moldar a mentalidade dos seus citoyens. Isto é, eles creem que a ação (a Praxis) tem uma força determinante na constituição da virtude e que o respeito aos outros se constrói adestrando os jovens desde cedo a agir como se reconhecessem que as pessoas estão imersas em suas próprias vidas — tem seus próprios problemas e dores — e não estão à nossa disposição para nos servir. É um panorama muito diferente do que predomina no Brasil. Quem pode criticá-los por agir assim e por prescrever que assim sejam educadas as crianças?

Eu também sou aristotélico em muitos sentidos, especialmente porque me parece verdadeira e decisiva a importância da prática e da ação na constituição dos hábitos — e dos hábitos para constituição da virtude. Mas o que há de artificial e não espontâneo na formalidade faz lembrar um problema posto pelo pensamento de Kant. É verdade que nós devemos esperar que os outros nos tratem bem e corretamente, mas é fundamental que esse tratamento não seja apenas o resultado do temor de ser repreendido em caso contrário. Se o que nos impede de tratar os outros com brutalidade, indiferença e indignidade é somente a presença da lei, da justiça, de qualquer expressão simbólica ou imaginária da autoridade, então este tratamento não é verdadeiramente autêntico. Dizem que está em algum lugar de Irmãos Karamazov aquela frase: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Ariano Suassuna cita a frase numa coluna na Folha, em 1999¹. Se a autoridade representada por Deus é o fiador da civilidade, então não me parece que tenhamos conquistado muito.

Nesse sentido, a filosofia de Kant introduz uma distinção indispensável: agir de acordo com a lei e agir conforme a lei. A distinção é feita para separar o cálculo interessado da ação espontânea². A espontaneidade é a expressão de um tipo diferente de inculcação, não se trata de um mero adestramento (a palavra drill é muito boa!). Trata-se de entender e praticar espontaneamente o sentido profundo de uma norma e não meramente repeti-la por costume. Pode ser que nunca notemos, numa pessoa hospitaleira, o quanto seus atos são calculados para causar uma impressão que o favorece, direta ou indiretamente. Mas se desconfiamos que a ação de alguém é interessada não lhe damos o mesmo significado que quando acreditamos que a ação é espontânea.

O pensamento de Kant não estava interessado na questão da autenticidade; nem tampouco no debate lógico sobre a normatividade da regra (presente na discussão sobre “o seguir a regra” resgatada por Saul Kripke ao escrever sobre certos fragmentos das Investigações Filosóficas). E, ainda assim, todas essas ideias parecem convergir. A ação espontânea tem a naturalidade das coisas não mediadas, do orgânico. É claro que a cultura é inescapavelmente uma mediação, a tal ponto da linguagem constituir a própria realidade, mas isso não significa que toda ação dos seres humanos é teatral, mecânica ou previamente determinada por normas. As crianças são símbolos de uma autenticidade cujo encanto muitos sabem reconhecer, mas somente nas crianças. Nos adultos predomina o gosto pelo teatro e pelas regras sociais, as máscaras da civilização. Qualquer outra inclinação será vista como ingenuidade indesculpável. Só às crianças e aos anjos é permitido ser e ver o real.

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O filme A Favorita é uma antípoda à autenticidade infantil e escancara a burlesca sofisticação das regras e dos jogos sociais. O perigo para os que veem os jogos sociais desde a perspectiva do jogador hábil está em deixar-se consumir pelo cinismo, isto é, em não acreditar mais em ações espontâneas e autênticas, em ver por toda parte cálculos, interesses camuflados, ilusões projetadas para alimentar este ou aquele propósito. É assim também em Mad Med.

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O que sempre me atraiu nessa cena é que, após um instante de hesitação, Rachel Menken decide falar com franqueza sobre a razão porque nunca se casou. E a resposta de Don Draper é a sarcástica manifestação do cinismo de um jogador hábil, charmoso e impiedoso com toda forma de ingenuidade. (Como reza a cartilha masculina.) Ela não se abala com a resposta, ao contrário, sua atitude manifesta uma altivez e uma superioridade quase divinas. No mundo real de sentimentos reais seu olhar atravessa Draper como uma flecha e o desarma. E ao final não lhe resta mais que um constrangimento mal disfarçado.

Esmagada na vida social pelo império das regras, a autenticidade se refugia na arte, o único setor da cultura humana que pode acolher e nutrir os que se sentem enclausurados pelas regras. E aí germina um foco de instabilidade. A ciência é lugar para os puzzle-solvers (pra usar uma noção realçada por Thomas Kuhn) e, embora as revoluções sejam também boas fontes de desafios, ela é altamente resistente à mudança. A tendência à estabilidade e a complexidade dos sistemas teóricos de cada disciplina científica (alimentada pela tendência analítica) tornam as mudanças de paradigma quase impossíveis. A arte, por outro lado, não tem nenhum compromisso com a estabilidade — ao contrário, a ansiedade é justo a da busca pela singularidade e pelo que ela tem de desestabilizadora (ou disruptiva, a palavra da moda [por que será?]).

São justo os fingidores (atores e atrizes) quem melhor podem falar sobre a autenticidade. Em entrevista a Amy Cuddy, Julianne Moore faz uma longa consideração sobre como a presença influencia o trabalho dos atores e a relação com as pessoas em geral:

— Às vezes é como se você estivesse se arrastando pela lama, sem chegar a lugar algum. Outras vezes você simplesmente decola. E isso faz com que você se sinta muito viva. Por isso nós fazemos. Por isso todo ator faz. Para que esses momentos não sejam artificiais, mas pareçam transcendentes.
Ela continuou:
— A sensação de impotência e o desgaste tornam a pessoa tensa demais para estar presente. Caso haja uma proteção contra o dano emocional ou a humilhação, a pessoa também não consegue estar presente, porque existe um comportamento defensivo.
Após uma pausa, ela disse:
— É o poder. Trata-se sempre de poder, não é?
Será? Será que no final presença é apenas mais uma palavra para “poder”? Isso explicaria muita coisa.
— O que você faz quando está presente e pronta para se envolver, mas o outro ator na cena não está? — perguntei.
— Algumas pessoas já decidiram o que irão e o que não irão fazer com você, e vão lá e fazem. Mas aí você não consegue se conectar com elas através do olhar e não consegue se conectar fisicamente. E a coisa toda na atuação é parte de uma enorme troca, entende? O mais empolgante é quando duas pessoas presentes estão conectadas e, mesmo sem saber o que vai acontecer, trazem algo juntas… É aí que é transcendente.
Mas, se o outro ator não está envolvido, o poder da presença às vezes é capaz de superar até mesmo esse obstáculo, ressaltou Julianne.
— Quando você está presente e disponível, as pessoas têm um desejo de lhe oferecer seu eu autêntico. Você só precisa pedir. Elas podem resistir a se abrir de início, mas acabarão oferecendo toda sua história de vida — disse Julianne. — E isso se deve ao desejo que as pessoas têm de serem notadas.
Então eu falei:
— Parece que quando você se torna presente, permite que os outros estejam presentes. A presença não torna você dominante no sentido alfa. Na verdade, permite que você ouça as outras pessoas. E que elas se sintam ouvidas e se tornem presentes. Você pode ajudar as pessoas a se sentirem mais poderosas, ainda que não consiga lhes dar poder formal. Ela fez uma pausa e seu rosto se iluminou.
— Isso! E quando isso acontece, quando sua presença consegue evocar a presença delas, você eleva tudo – concluiu.

Amy Cuddy, presença

Como todos conhecemos dezenas de pessoas cuja desinibição faz emergir aspectos indesejáveis, parece temário permitir ou recomendar a autenticidade. É que uma coisa é a desinibição esporádica e pontualmente induzida dos que por longos anos aprenderam a mascarar suas sombras, outra coisa é o processo de aprender a estar-à-vontade consigo mesmo que exige a autenticidade. Estar à vontade consigo mesmo, estar à vontade no mundo (como Passarinho), é não apenas uma mudança subjetiva, mas intersubjetiva, que pouco a pouco contamina todas as dimensões da vida. Seu alcance abrange e transforma também as relações sociais e todo o nosso entorno.

Não há como seguir discutindo esse tema sem exemplos, sem referências a pessoas reais cuja autenticidade se articula perfeitamente aos seus papéis sociais (o que poderia parecer um paradoxo, mas não é!). É por isso que este post não é mais que um prelúdio à apresentação da presença na arte (especialmente na música). Quero fazer uma série de posts sobre figuras e personalidades artísticas cuja presença ilustra o que eu quis apresentar aqui com a ideia de autenticidade.


Fragmento de Vidro (2019), de M. Night Shyamalan.

Shyamalan é um diretor controverso e às vezes suas escolhas resvalam no clichê. Mas há verdades importantes mascaradas em clichês e platitudes. A metáfora do super-poder como algo que resistimos ferrenhamente em aceitar é poderosa porque não vem embalada numa perspectiva individualista (embora talvez não escape da armadilha do empoderamento identitário), mas num contexto em que aceitar os próprios dons estimula os outros a fazer o mesmo.


¹ Li Irmãos Karamazov nas traduções do francês que chegaram ao Brasil bem antes das novas e celebradas traduções direto do russo da Editora 34. Tenho os livros da 34, mas eu não os reli e deles lembro apenas de aspectos marcantes, como O grande inquisidor e outras passagens.

² A distinção kantiana conduz a um certo elogio do desinteresse, como se ele fosse marca de intenções verdadeiramente boas. Nietzsche troçava dessa perspectiva kantiana. Também não acho que seja o caso, embora a distinção me pareça indispensável. Autenticidade não é desinteresse, é um interesse naturalizado, transparente, que se deixa ver pelas outras pessoas e que pode ser articulado aos jogos sociais.

A potência da amizade

Sinto falta de alguns bons amigos que tive, amigos dos quais me afastei por circunstâncias da vida. Talvez alguma dessas circunstâncias seja culpa minha, ou melhor, daquilo que há em mim de intratável, de excessivamente exigente, quase intolerante — mas isso não importa agora. A amizade tem um efeito incrível sobre mim (e suponho que sobre a maioria das pessoas), é como se perto das pessoas com que me sinto à vontade pudesse me sentir inteiro, como se pudesse sentir a liberdade de ser quem eu sou, sem máscaras. Precisamos usar tantas máscaras todos os dias, tolher parte do que somos para nos ajustar ao que os outros gostam, esperam e, sobretudo, ao que eles entendem e aceitam. E esse espaço é sempre tão estreito, quase asfixiante, de tal sorte que quando encontramos os amigos e podemos deitar as máscaras, é como se pudéssemos voltar a sentir o ar fresco após um longo tempo enclausurado respirando através de um escafandro. Essa potencialização que a amizade enseja — pra ser mais preciso, a verdadeira causa disso é a autenticidade com que se pode agir perto dos amigos — Goethe a apresentou como suele hacer, com maestria. Sempre volta à minha cabeça o fragmento de O sofrimento do jovem Werther em que o próprio Werther descreve como se sentia ao lado de uma amiga querida:

Poderia dizer a mim mesmo: “És um insensato em busca daquilo que não se encontra neste mundo”. Mas eu a encontrei, senti junto de mim um coração, uma alma eleita, junto da qual eu cria superar-me, tornando-me tudo aquilo que serei capaz de ser. Ó grande Deus, haverá, então, uma só das faculdades da minha alma que não possa ser aproveitada? Perante ela, não podia eu desdobrar inteiramente esta maravilhosa sensibilidade graças à qual meu coração envolve toda a natureza? Não ofereciam nossas conversações uma constante mistura dos mais delicados sentimentos e do mais agudo espírito, assinalando-se em todas as suas modalidades, e até na impertinência, pelo sinal do gênio? 

PS. Lamento, só tenho aqui a versão digital do livro, que (pelo pouco que lembro) não é a tradução da Martins Fontes.

Lições sobre carinho e consideração

Certas coisas se dizem não sem acanhamento, sem algo de vergonha de parecer piegas. Talvez por isso Fernando Pessoa tenha dito que todas as cartas de amor são ridículas. Entretanto, nesse tempos em que toda sorte de estupidez é dita sem constrangimento, parece necessário o esforço para superar a hesitação de falar de coisas aparentemente piegas.

Essa lição aprendi no terceiro ano, ou melhor, comecei a aprender ali. O aprendizado não é sempre um processo linear e definitivo, às vezes ele reverbera e se conclui só depois de longos anos. Então eu estudava no Colégio Estadual Ypiranga, em Salvador, era o segundo ano em que eu estudava num colégio público. Minha turma era muito legal, heterogênea, eu tinha uns poucos amigos que me haviam acompanhado no segundo ano e outros novos. Lembro de meu amigo Gilson, que morava em Candeias e vinha toda manhã estudar no centro da cidade, — o colégio ficava da região do 2 de julho. Ele estava quase sempre com tanto sono que mal podia acompanhar as aulas. Eu morava na Boca do Rio e entre minha casa e o colégio era quase uma hora de viagem, imagine então quanto tardava a viagem para quem morava em Candeias. Quase todo mundo trabalhava: eu tinha começado a estagiar na SAEB (Secretaria de Administração do Estado da Bahia) naquele ano — há 20 anos, em 1998 —, e lembro, por exemplo, de uma amiga que trabalhava numa loja em um shopping e também de um colega que trabalhava como camelô na região do Iguatemi. Tudo isso fazia com que ficasse muito evidente, para mim, a diferença entre o ensino público e o ensino particular, não apenas em termos da estrutura, das condições gerais, mas em termos pessoais, de como as pessoas encaravam a vida e suas dificuldades.

As dificuldades que enfrentávamos nos colégios públicos faziam com que a tarefa de ensinar fosse ainda mais difícil do que é. Não precisávamos de professores inclinados a despejar o que sabiam sobre nossas cabeças, conforme  o que Paulo Freire chamou de modelo bancário de ensino. (Quem precisa disso?) Precisávamos do que todos precisam, de alguém que reagisse ao que nós éramos, ajustasse seu modo de ensinar, ainda que inevitavelmente orientado a um currículo, ao nosso ritmo, a nossas dificuldades de formação e de vida. Remés, nosso professor de Química, tinha esse perfil. Ele era exigente, mas também tinha a preocupação de nos assistir, orientar, entender. No final do ano Remés sugeriu que fizéssemos uma festa de despedida. E assim combinamos uma festa na casa de um dos nossos amigos.

Com 17 anos eu já havia aprendido boa parte das lições do universo masculino. Eu sabia mostrar-me pouco amistoso, agir com hostilidade e não me faltava o que dizer se sentisse que era necessário me impor por qualquer razão. Em uma palavra, estava bem armado. No dia da festa eu cheguei pela primeira vez em São Caetano. Por razões sintomáticas, quem mora em certas regiões de Salvador não costuma frequentas algumas outras, é como se houvesse um abismo intransponível dentro da cidade. Apesar de gostar de meus amigos de classe, havia algo — e ainda há — que dificultava minha integração. Quero dizer, não me sentia inteiramente a vontade, embora fossem todos amigáveis e receptivos. De qualquer modo, a festa estava divertida e eu, como alguém que tinha estudado toda a minha vida no ensino particular, não deixava de notar as diferenças de tipos e de comportamento. Há algo que se conserva quase infantil mesmo nos anos mais avançados nas escolas particulares. Ali, entre meus amigos da escola pública, a relação era notoriamente diferente, pois havia uma espécie de comunhão e compreensão de outra ordem. Pouco antes do final da festa, Remés propôs uma atividade, dessas que me desconcertam ainda hoje. Nós sortearíamos nossos nomes e deveríamos escrever uma mensagem para a pessoa cujo nome nos fosse destinado. Não lembro o que escrevi, nem para quem, ainda hoje me falta o tipo de sensibilidade necessária para escrever algo a um só tempo genuíno e genérico. No entanto, quando chegou a hora de receber o bilhete de quem havia sorteado meu nome, fui surpreendido. Regina tirou meu nome e me entregou uma mensagem curta num papel esverdeado. Eu não conhecia Regina mais do que de vista, ela era uma dessas pessoas com as quais convivemos mas com quem nunca trocamos mais que uma palavra ou um olhar familiar. Na mensagem Regina lamentava carinhosamente o fato de não havermos nos conhecido, dizendo que eu parecia uma pessoa interessante e me desejava felicidade e outros votos. Bem, dito assim sobriamente a mensagem parece menos afetuosa do que era, mas a verdade é que eu estava preparado pra tudo, menos pr’aquilo. Nós só estamos preparados para os perigos que conhecemos, os riscos e experiências inéditas nos pegam desprevenidos. A mensagem de Regina desmontou minhas barreiras de proteção, me desarmou, e eu senti meus olhos marejarem. É bem verdade que a hostilidade masculina era mais uma estratégia de sobrevivência que uma característica genuína. De todo modo, aquela expressão autêntica de carinho, vinda de alguém com quem eu mal tinha trocado uma palavra, me pegou desprevenido, porque eu simplesmente não esperava. O que nós esperamos dos outros?

As lições que aprendemos quando somos jovens e devemos imitar o comportamento das pessoas mais velhas ou dos modelos que convém repetir moldam aquilo que esperamos dos outros. As experiências e visões de mundo das figuras imitadas involuntariamente dão forma a nossa própria visão das outras pessoas e das coisas que devemos esperadas delas. Se não desenvolvemos alguma autonomia, isto é, a capacidade de julgar e refletir segundo nossas próprias experiências tendemos a não conseguir enxergar mais do que aquilo que fomos treinados a ver. Pouco a pouco a máscara forjada para lidar com o mundo se confunde com nosso próprio ser, de sorte já não podemos distinguir quem nós somos daquilo que nos tornamos, daquilo que é feito de nós. Quando Regina me ensinou essa lição sobre carinho e consideração, outras lições ficaram claras para mim. Aprendi também, retrospectivamente, o que me havia ensinado aqueles dois últimos anos no Colégio Ypiranga. Não esperava mais que desapontamento e, secretamente, me envergonhava ter que passar meus dois últimos anos do ensino secundário numa escola pública. No Brasil a gente aprende desde cedo a ter vergonha de ser pobre, de ter dificuldades financeiras, (como se fossemos culpados por isso) e eu não era diferente de ninguém, especialmente tendo disfrutado a duras penas das vantagens do ensino particular. Mas a verdade é que eu havia me sentido bem nesses dois anos, ou melhor, havia me sentido menos desajustado, pois as dificuldades que todos ali enfrentavam eram semelhantes às minhas. E, apesar disso, não havia amargura nem animosidade entre nós, ao contrário, o carinho e a abertura que Regina havia registrado no bilhete eram a regra. Naqueles dois anos aprendi que as nossas dificuldades comuns determinavam também um modo diferente de enxergar a vida, digo, diferente daquele modo que ia se sedimentando enquanto eu havia estudado em colégios particulares. Às vezes me parece que é quase natural, se estamos em determinado contexto ou situação, enxergar o mundo exclusivamente segundo os parâmetros que ali circulam. Mesmo que nunca tenha sido rico e nem mesmo classe média em sentido estrito (sempre estive ali no espectro da classe media baixa, cuja tradução ampla e literal deve ser pobre), inevitavelmente desejava e via o mundo segundo os parâmetros de meus amigos do colégio particular. Quando comecei estudar no colégio público e logo depois a trabalhar, senti então que aqueles não eram os únicos modos de ser e os únicos parâmetros do que querer. Vi o que havia de estreito naquele mundo de classe média do qual fiz parte até ir ao Ypiranga. O que não significa, é preciso sublinhar, que essa circunstância determinasse que as pessoas ali fossem estreitas —  de forma alguma. Tive bons amigos e aprendi também valiosas lições enquanto estivesse em colégio particulares, mas é que a circunstância favorecia um encastelamento que não havia no Ypiranga. Ali nós conhecíamos por familiaridade toda a crueza da vida, não havia postergações nem adornos, de maneira que entre nós havia algo que poderíamos chamar de solidariedade, ou algo do gênero — naturalmente não havia porque existir algo assim num colégio particular, onde os desafios e problemas eram outros.

As coisas foram se assentando em minha cabeça pouco a pouco, um entendimento ainda precariamente articulado de tudo isso e, no último dia, aquele em eu teria que voltar ao colégio para saber o resultado final, voltei com uma tristeza transbordante. Já não havia ninguém no colégio, as pessoas passavam a consultar o resultado no horário que lhes convinha, de sorte que não havia encontros. Peguei meu resultado e voltei pra estação da Lapa choroso, envergonhado pelos olhos vermelhos, evitando qualquer olhar. Apesar desse luto, da tendência juvenil à melancolia, ao menos estava feliz, agora posso dizer, por ter passado aqueles dois anos no Ypiranga e ter sido capaz de aprender as lições que estavam ali para serem aprendidas. Amigos e professores me ensinaram coisas que são parte de mim, que determinaram parte do que sou, e apesar da tendência a me envergonhar sempre que é preciso falar de algo como carinho, ternura ou respeito — pelo que parece haver de bobo ou ingênuo em tudo isso —, essa tendência é hoje deliberadamente combatida pelo meu esforço de transpor barreiras fixadas pelo mero hábito e para enfatizar o quanto aquilo que esperamos do Outro é determinado por certas circunstâncias, pela força do mero condicionamento ou pela influência daqueles que nós imitamos (consciente ou inconscientemente). Numa sociedade perigosamente atomizada, na qual o culto ao ego é um lugar comum, a ternura pode ser um componente importante para determinar uma atitude diferente diante de pessoas que não fazem parte do nosso mundo. E talvez seja esse um dos catalisadores de uma transformação que necessitamos.

PS. Lembrei desse episódio depois de ler uma entrevista de Vitor Heringer (escritor morto recentemente e que eu não conhecia) na qual ele se declarava corajosamente a favor da ternura e do afeto. Não tenha dúvida de que é preciso coragem para assumir posições como essa.

O novo sempre vem

Belchior, o profeta do novo.

Abro o Facebook e encontro professores debatendo velhas ideias com um entusiasmo comovente. Desço até a praça San Idelfonso e ela está cheia. Gente entre vinte e trinta anos se reúne na praça pra escutar música dificilmente tolerada pelos doutos senhores do Facebook. Pode ser bobagem, mas alguma coisa chama minha atenção nesse passeio, nesse estar entre pessoas da minha geração. Daqui a trinta ou quarenta anos talvez nós sejamos velhos ensimesmados em nossas próprias ideias, mas agora minha impressão (e minha esperança) é outra. Minha impressão é de que há algo realmente interessante nesse modelo de cidadania forjado no espaço público, na convivência, e que se manifesta não só nos encontros festivos de bairros boêmios modernos (e gentrificados), como Malasãna, mas também em Lavapiés (bairro de imigrantes de Madrid) e seguramente em outros lugares no mundo. Algo difícil de entender, já que os encontros nas cidades brasileiras, moldadas pela lógica segregacionista do condomínio, são coisas meramente acidentais. No Brasil as pessoas de diferentes classes, de diferentes ideias, só se encontram e se frequentam por acidente — ou no carnaval, pensando em Salvador. Em tempos de camarotes, quem sabe nem mais aí. De qualquer sorte, há nesses encontros um magnetismo, uma abertura que se sente no ar, que me dá a confiança de que talvez possamos fazer algo diferente, quer seja em termos de ideias, quer seja em termos de uma abertura ao novo, de uma posição afetiva menos intolerante, receosa, acanhada e narcisticamente orientada.

Foi em Entrevista com Vampiro que me dei conta de algo curioso. Os vampiros mais velhos, no filme, se empenham para estar ao lado dos vampiros mais jovens. Eles precisam entender o espírito daquele novo tempo. Envelhecer é arriscar separar-se da própria humanidade, isolar-se num conjunto de referências que, no ritmo do nosso tempo, tornam-se velhas numa velocidade assustadora. (Às vezes eu mesmo sinto um certo distanciamento aprofundar-se.) Mais do que nunca é preciso entender e aceitar a profecia de Belchior, aquela contra qual os conservadores se debatem inutilmente: o novo sempre vem.

PS. Tudo isso dito por alguém que já pensou, vejam só, que não havia nada mais sábio do que o conselho dado por Nelson Rodrigues à juventude, em entrevista a Otto Lara Resende: “Jovens, envelheçam!”

Um encontro inesperado e Before Sunset

Poster do filme Before Sunset

É um triunfo para quem vive às turras com a memória recordar do que se passou há tempos. Lembrei um caso acontecido há muitos anos enquanto assistia a um filme que eu gosto muito, Before Sunset (Antes do pôr-do-sol, é o título em português).

O acontecido não inspira propriamente orgulho; no contexto das coisas que lhe dizem respeito, o que eu preciso dizer é que para alguns eu sofro de uma lerdeza setorizada: sou dos últimos a perceber que uma mulher me dá mole e custo a notar oportunidades. Sim, os anos mitigaram tais características, mas devo vergonhosamente admitir que alguns resquícios perseveram. Bem, vocês entenderão. O fato aconteceu há 10 anos ou mais, era Carnaval ou, salvo engano, Farol Folia. Eu e um grupo de amigos não exatamente filiados à facção dos carnavalescos e admiradores da música baiana estávamos ali corrompidos pela possibilidade de beber irresponsavelmente e, sobretudo, por alguns rabos de saia. E daí vocês sabem: a presença do carnaval dispara em todo folião o registro de um contador que anota as vezes em que se conseguiu vencer a resistência de alguma criatura incauta e lhe roubar um beijo. Pois bem, a madrugada já ia alta e nós estavamos prostrados pelo resultado medíocre da empreitada: de um grupo de quatro ou cinco, apenas eu e um outro amigo havíamos conseguido pontuar e estávamos há algum tempo estagnados num vergonhoso 1 a 1. Resolvemos então descansar num trecho menos movimentado do circuito, ao final do mundialmente conhecido “Beco do Caesar Towers” (que nem é mais do Caesar Towers, a propósito).

Nunca fui ali durante o dia, mas com frequência costumávamos ir descansar naquela região enquanto durava o carnaval. Assim, chegamos lá e, com a naturalidade dos bêbados, nos espojamos pela calçada sem cerimônia. Enquanto meus amigos conversavam, eu notei uma garota sentada à esquerda de onde eu estava. Ao lado dela, um candidato à extrema unção despejava na rua o caldo malcheiroso que lhe saia das vísceras. Entre a solicitude e a má intenção espontânea, eu encetei uma conversa sobre os efeitos benéficos da glicose para um sujeito naquelas condições. Ela disse que ele já havia comido chocolates e me contou que trabalhava com enfermagem ou coisa do gênero. Eu não tenho pudor em criar imagens antecipadas sobre as pessoas — não acredito que seja possível viver sem prejuízos (sic) — mas as descarto sem embaraço diante de qualquer indício contrário. Por alguma razão minha imagem inicial dessa garota era pouco favorável, não sei se pelo seu modo falar ou pela circunstância em que nos conhecemos. Não lembro. O caso é que desse pretexto, começamos uma conversa. Para minha surpresa a coisa foi caminhando favoravelmente. Em pouco tempo nos sentíamos à vontade para comentar assuntos relativos a diferenças com os nossos pais, futuro, estudos, planos, crenças. Enfim, num espaço de algumas horas, sentados na calçada, em pleno carnaval, a imagem inicial se desfez e foi substituída por uma estranha familiaridade que nos credenciava a fazer confissões e a conversar sobre questões antes restritas aos mais íntimos. A essa altura estávamos bem próximos, um ao lado do outro, com os pés voltados para a pista e sentados na calçada. Segundo a cartilha masculina aquela era uma oportunidade única. A proximidade física e “espiritual” oferecia uma ocasião singular. Talvez seja essa a razão do meu desconforto em falar sobre o caso. Mas é provável que as mulheres condenem meus pensamentos, “como é possível pensar as coisas assim tão mecanicamente”, diriam elas. O fato é que eu estava ali numa espécie de torpor. Se meus predicados pouco ajudavam, a circunstância inesperada acabou por afastar momentaneamente qualquer pensamento que não fosse relativo à conversa que desenvolvíamos de forma tão surpreendente. Foi quando ela disse que precisava ir embora. Aí sim eu lamentei minha letargia. De caráter forte e personalidade intempestiva, em pouco tempo ela acordou o defunto ao seu lado e disse que estava hospedada na casa de parentes ali perto. Em seguida nos despedimos laconicamente e ela foi embora sem ouvir protesto algum. Lastimo até hoje não ter pedido ao menos seu telefone. Meus amigos, é claro, seguindo a cartilha — e não sem alguma razão — fizeram zombarias da minha inoperância. Eu só me ressenti de ter perdido a oportunidade de conhecer melhor alguém que em tão pouco tempo me pareceu tão familiar. Talvez, eu penso hoje, aquele temperamento intempestivo ao final não fosse outra coisa além da impaciência pelo meu animus arrastandi. Mas talvez não fosse isso.

Essa foi a lembrança que voltou durante o filme. O que há de comum entre as duas coisas é aquilo que marca o caráter terapêutico do cinema e da literatura e que provoca algum atrativo. É o traço riscado sob um acontecimento singular. A ênfase, o recorte preciso que destaca dos escombros do cotidiano o inesperado. Curioso que as pessoas esperem ansiosamente pelo inesperado. Não me levem a mal, mas é engraçado que o caráter burocrático e repetitivo da vida tenha sobrecarregado o espaço amoroso de expectativas de redenção. Em outros áreas também se anseia pelo inesperado, mas o amor é seu terreno privilegiado. Talvez pela sensação comum de que por ali não reina nenhuma regra. A anarquia geral do amor faz os amantes (e românticos) consagrarem ao acaso a felicidade que buscam. Daí o encanto que filmes como Before Sunset produzem. Filmes que celebram o encontro inteiramente casual entre pessoas que se enlaçam por elos invisíveis, que narram o sucesso numa empresa incontrolada por completo. De algum modo esse inesperado nos nivela na condição de meros expectadores, como se de alguma forma tudo o que restasse às pessoas fosse rezar para um dia, quem sabe, sentar ao lado de alguém com quem pudessem conversar sem reservas durantes horas, dias a fio. Andava descrente até ter novamente assistido o filme.


Notável que tenhamos atingido a condição ambígua de ter quase reduzido o que há de mais próprio à vida ao espaço das relações amorosas. Mais interessante ainda é que tenhamos produzido, já dentro do quadro controlado e organizado das coisas humanas, os meios pelos quais restituímos o lugar do selvagem, do inesperado, do inapreensível. Mas a essa altura eu já não espero estar sendo compreendido.