Uma discussão posterior ao velho dilema vi versus emacs, embora não menos importante, é aquela em que se compara a contribuição tecnológica de Steve Jobs à de Dennis Ritchie. Dennis Ritchie criou a linguagem de programação C, criou o Unix (junto com Ken Thompson), o que Steve Jobs criou? Certamente um modo particular de usar a sua imagem para se promover e de empregar os meios de uma sociedade digital (Hello Succession e The Fall of the House of Usher), mas tecnologicamente, o seu maior acerto foi o iPhone. Não é pouca coisa, devo admitir, mas ainda assim não torna Steve Jobs comparável a Dennis Ritchie. Por melhor que seja a avaliação que se faça da qualidade do hardware da Apple, há hardware de outras empresas tão bons ou melhores quanto os da Apple. Além disso, não é certo que se possa atribuir ao CEO qualquer inovação criada na sua empresa. Mas uma coisa é certa, não haveria macOS ou iOS sem C e sem Unix, portanto, sem Dennis Ritchie. Tampouco existiria o Windows, diga-se de passagem, porque o Windows foi escrito em C.
O que irrita profundamente no endeusamento de Steve Jobs é a distorção promovida pelo dinheiro e pela publicidade. A capacidade de fazer dinheiro se tornou também uma medida de inteligência. Por exemplo, a inventividade e o engenho de Bill Gates ao criar o próprio mercado — do qual depois foi acusado de monopólio — lhe confere a condição de guru tecno-pop e palpiteiro em qualquer área. Não resta dúvida de que é preciso alguma inteligência para tornar-se uma das pessoas mais ricas do mundo, mas outra coisa é transformar inovações no mundo do business em expressões paradigmáticas da inteligência e da criatividade humanas.
Dennis Ritchie não é apenas alguém comparável a Alan Turing, Alonzo Church e John von Neumann em termos da sua contribuição para a história da computação, seu legado é também parte fundamental da constituição de um modo de criar e distribuir conhecimento que é hoje o paradigma do mundo. Seu trabalho foi um dos primeiros impulsos de um movimento que culminou na miríade de tecnologias que hoje estruturam a sociedade digital.
Faz parte da ideologia do capitalismo glorificar os seus líderes, transformar homens de negócio em visionários cuja inteligência devemos admirar e cujas decisões devemos endossar cegamente por conta dessa quase inapreensível inteligência. É preciso não apenas que o capitalismo seja inevitável, mas também que os seus principais atores sejam seres humanos extraordinários, quase divinos. Mas isso não é verdade em nenhum caso, é apenas a expressão da força daquilo que já faz algumas décadas é a mais impactante atividade humana: a publicidade. É contra esse poder massivo e influente, movido pela força torrencial do dinheiro, que afirmamos a imensa superioridade de Dennis Ritchie — com a leveza que convém e com os poucos recursos de que dispomos.
PS. Talvez convenha mencionar em nota o nosso profeta, nosso Messias, Elon Musk, como exemplo mais categórico das tentativas de publicidade e das relações públicas de transformar um desmiolado num gênio visionário. É impressionante (ou não) a quantidade de pessoas que acreditam nesse engodo.