Egocentrismo natural e básico

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O aspecto central do texto mais famoso de David Foster Wallace é o que ele chama de “egocentrismo natural e básico” ou “egocentrismo profundo e literal” ou simplesmente “configuração padrão”: a tendência a pensar a si mesmo como o centro do universo. E em certa medida o texto é uma reflexão e um convite a que a gente combata a nossa “configuração padrão”: tente pensar nos outros, tente amar os outros, com tudo de simplesmente desinteressante, tedioso e nada excitante que isso implica. Para DFW essa era uma questão de saúde mental, de não ser escravo da nossa própria mente, do nosso próprio egoísmo! A imagem que ele usa para se referir a sensação que caberia às pessoas que não conseguem se livrar da sua configuração padrão é a coisa mais bonita que li nos últimos 20 anos: “a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita”.

Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros – no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.

David Foster Wallace, Isto é a água

Quão difícil é apresentar temas espinhosos como o egoísmo e o egocentrismo de modo tão simples, tão natural? Os inegáveis vínculos de DFW com Wittgenstein me fazem pensar que ele atualizava bem um sentido do pensamento de Wittgenstein. Wittgenstein se queixava de tudo, mas ele era especialmente crítico dos limites da sua imaginação (apesar da força e do caráter marcante das suas ficções, a ficção do xadrez sem o rei é brilhante), e ansiava encontrar pessoas que pudessem dizer da forma certa aquilo que ele aspirava dizer, mas sem sucesso (aos seus olhos!). Como escritor, DFW transforma reflexões filosóficas em imagens da vida, reflexões que geralmente circulam em atmosferas muito rarefeitas.

[Creio que poderia interessar a um filósofo, que saiba pensar, ler as minhas notas. Porque, mesmo que eu só tenha acertado no alvo raramente, ele reconheceria os alvos aos quais eu apontava incessantemente].

Wittgenstein, Sobre a certeza, §387

A filosofia se torna uma coisa natural no texto de DFW, na sua escrita, algo acessível, de todos, e ela é forte! E é mesmo natural apresentar temas espinhosos quando você sabe com que imagem (verdadeira ou ficcional) ilustrar os conceitos e as práticas envolvidos no significado do tema. A imagem da fila do supermercado, da impaciência que ela gera em certos contextos, é perfeita. Filosófica mas também pop.


Lembrei de um filmaço que discute a questão geral do egoísmo e do compromisso com os outros. The Sunset Limited, com atuações assombrosas de Samuel L. Jackson e Tommy Lee Jones (que também dirige o filme) e roteiro que é pura encenação de dilemas éticos. Salvar ou não salvar o outro, essa é a questão. Interferir? Como interferir?

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