Já não há como evitar o trabalho de expor e de tratar com clareza esse conceito fantástico — tão caro ao brasileiro, digo, ao português do Brasil —, que é o conceito de safadeza. Vamos começar com uma definição, uma definição a ser colocada a prova para, se for o caso, melhorar, talhar e adaptá-la ao que convém, à maneira com que Freud fazia com seus conceitos e ideias. Assim construímos um marco para emoldurar a discussão.
Comecemos então dizendo que a safadeza é o que é próprio às pessoas que permitem que o gosto pelo sexo se exteriorize. A primeira coisa que salta aos olhos nessa definição é o que ela tem de voluntarioso, pois é como se desconsiderasse as pessoas que são safadas porque não sabem ser de outro modo, nela a safadeza é uma espécie de consentimento, um dizer sim à manifestação do gosto pelo sexo. Claro que nem sempre é o caso. Portanto, a safadeza é aquilo que é próprio às pessoas que, voluntária ou involuntariamente, permitem que o gosto pelo sexo se exteriorize e se deixe notar de algum modo. Isso nos leva imediatamente a outro ponto: a repressão de uma expressão natural de desejo; é perfeitamente concebível que alguém goste de sexo, mas que não queira ser percebida como tal, e que por isso combata e reprima qualquer tendência natural à manifestação. Quando se é homem, por exemplo, ser safado é quase uma espécie de virtude, reconhecida por todos, celebrada em letra e música; mas quanto às mulheres não se pode dizer o mesmo (volto a isso logo mais).
Há muitas pessoas que preferem que nenhum indício de que elas gostam de sexo se manifeste, pessoas discretas, ou tímidas, em certo sentido pudicas; apenas seus parceiros sexuais sabem disso ou aqueles com quem elas têm uma relação que orbita o âmbito sexual. Por outro lado, há pessoas que gostam e se sentem à vontade com o fato de que o gosto por sexo se manifeste de alguma forma em seu modo de ser no mundo; assim, em suas palavras e em suas ações o gosto pelo sexo se exprime de uma maneira precisa. Estas são as pessoas que nós denominamos safadas, pois a safadeza é algo que se deixa ver, mesmo quando apenas se insinua.
Claro que a distinção categorial entre os que permitem ou não que o gosto pelo sexo se manifeste comporta graus. Há pessoas menos e mais safadas, e do mesmo modo pode ser disputável a mera atribuição do predicado. E há quem se vanglorie de identificar safadezas latentes, como também há quem projete em todo lugar uma safadeza ausente (de maneira geral, para justificar uma atitude desrespeitosa, já que gostar de sexo é coisa que muitos não admitem que as mulheres manifestem sem subtrair delas seu valor).
A discussão sobre a safadeza nos oferece um presente, que é a possibilidade de examinar a relação entre sexo e autenticidade/inautenticidade — sob várias perspectivas. Essa nova discussão se ramifica em dois temas mutuamente relacionados: 1) a inautenticidade como expressão da necessidade e compulsão de (encenar || exibir || ostentar) publicamente o gosto pelo sexo devido à atmosfera de um espaço público que considera a sexualidade quase um sinônimo de liberdade (portanto, uma forma de obter capital simbólico); 2) a autenticidade como poder e influência: o poder de excitar e despertar o desejo alheio.
O segundo tema merece um comentário à parte (que algum dia virá), porque é rico em ramificações e em aspectos interessantes; diz respeito ao poder natural e bem distribuído de despertar o desejo, de excitar sexualmente. Este é um poder secretamente desejado por muitos e exercido por muitas pessoas (até mesmo monetizado, nos nossos dias).
No que diz respeito ao primeiro tema, diríamos que o inautêntico corresponde ao forçado, ao editado, ao não genuíno e não espontâneo, mas calculado para provocar um efeito. Por que alguém precisaria ostentar publicamente uma safadeza não genuína? Ou por que precisaria acentuar e dar maior ênfase a algo genuíno, por que precisaria aprender a exibir o gosto pelo sexo como coisa que precisa ser vista pelos outros com frequência, regularmente? O sexo e a sexualidade precisam significar algo muito valioso para que as pessoas se deem o trabalho de exibi-los assim, contra todas as forças conservadoras que ainda permeiam a sociedade, contra todos os olhares reprovadores. É exatamente o olhar reprovador que torna tão potencialmente simbólica a ostentação da safadeza, sua exibição e manifestação encenada.
São os olhares conservadores os que dão ao sexo e a sexualidade o status de rebeldia e, mais do que isso, de liberdade.
O povo, eficientemente manipulado e organizado, é livre; a ignorância e a impotência, a heteronomia introjetada, é o preço de sua liberdade.
Herbert Marcuse, Eros e civilização (Prefácio político)
Não faz sentido falar sobre libertação a homens livres e somos livres se não pertencemos à minoria oprimida. E não faz sentido falar sobre repressão excessiva quando os homens e as mulheres desfrutam mais liberdade sexual que nunca.
E o que é a liberdade? A liberdade é essa palavra vazia que os liberais — e o que precisam parecer defensores de valores liberais — enchem a boca para pronunciar. Como a liberdade capitalista é essencialmente a liberdade de consumir (produtos ou serviços), ou de ser turista, o capitalismo cultural (sic) precisa ter a mão algo mais valioso e mais atraente que oferecer no mercado simbólico, algo que nos distraia do fato de que estamos vendendo nossas vidas (nosso tempo, o que é a mesma coisa) em troca dessas efemeridades.
Não foi em nome da liberdade que o nosso profeta, Elon Musk, comprou o Twitter na semana passada?
A liberdade sexual cai como uma luva ao capitalismo, porque é um tipo de liberdade que não apenas não o ameaça mas que, ao contrário, o estimula e o alimenta ao tornar voluntariamente prescritivos (por meio dos modelos e da sua influência) comportamentos que têm reflexo no consumo: roupas, viagens, shows, serviços, etc. O hedonismo capitalismo é parte fundamental do sistema (recentemente eu ouvi falar em Narcocapitalismo: faz parte, sem dúvida!)
Não avancemos mais nessa discussão, que ninguém gosta e que a ninguém interessa. Voltemos ao foco, à safadeza. Se vivêssemos num mundo onde as manifestações da sexualidade fossem consideradas coisas naturais e espontâneas, ninguém encenaria, acentuaria ou ostentaria a safadeza, porque não haveria os olhares reprovadores a partir dos qual extrair um status privilegiado (o que faz lembrar, naturalmente, as espirais de prazer e poder). É o caráter simbólico da reprovação do olhar alheio, externo ou internalizado (super-ego), que dispara a vergonha e institui o contexto necessário para que a safadeza tenha lugar e importância simbólicas. Que mulher diria impunemente (independente do contexto) que gosta de chupar um pau? Nenhum homem jamais sairia estigmatizado da confissão de que gosta de chupar uma buceta, independente do contexto. Isso significa que é necessário muito mais força e coragem para viver a sexualidade autenticamente sendo mulher do que sendo homem, nós enfrentamos poucas barreiras e normalmente somos os que ditam as normas (a menos, é claro, que se seja gay, aí o bicho pode pegar).
De qualquer forma, vencer a vergonha e permitir que a sexualidade se manifeste, permitir a manifestação do desejo, do tesão, da vontade de sexo, e articular tudo ao nosso ser no mundo sem ser um predador, de modo orgânico, significa desfrutar sem sombra de dúvida de um tipo de liberdade singular e profundamente desejável. E em alguma medida, apesar da enorme hipocrisia da sociedade brasileira, é certo é que nós temos sim criado um bom laboratório de safadeza que, quando se emancipe do aliciamento capitalista, poderá dar lugar a coisas muito interessantes em termos de sociabilidade.
Estava escrevendo o texto e me dei conta de que tinha uma galeria chamada Safadeza no Pinterest, com fotos e ilustrações, e uma playlist no Spotify cuja temática foi se aglutinando, sem que eu percebesse, também em torno da safadeza. É quase se o texto tivesse formado espontaneamente seus tentáculos publicitários.
Talvez seja pura ignorância, mas não conheço expressão em nenhuma outra língua que traduza satisfatoriamente safadeza, ou pelo menos uma expressão que tenha o lugar que nós damos à palavra no nosso uso da linguagem. Mas se alguém souber uma palavra ou expressão que cumpra esse papel, please let me know.