Sob o império do voyeurismo

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Quando as câmeras de vigilância passaram a ser usadas largamente surgiu o debate sobre os limites do monitoramento eletrônico e a violação das liberdades individuais. Hoje em dia, curiosamente, a mesma ciosa sociedade é uma expectadora voraz da privacidade alheia. Nesta semana um episódio ilustrou essa configuração: o vídeo de uma mulher que grita desesperadamente com o marido (ou namorado) pedindo um chip — que ele não traz — estourou no twitter. Por alguma razão uma pessoa perdeu o controle. Em muitas ocasiões perdemos o controle. Talvez o resultado não seja o mesmo, mas com frequência produzimos episódios que não gostaríamos que fossem de domínio público. Não se trata especificamente de uma questão jurídica, alguém poderia dizer: ela estava no espaço público e quem gravou, em sua casa. Bem, nem todos os códigos necessários à sociedade estão inscritos nas leis, como nem toda moral é expressão de regras antiquadas e dispensáveis. Uma porta aberta não é um convite para entrar.

A internet e as novas tecnologias criam um gênero muito particular de voyeurismo. Mas se pensarmos bem concluiremos que é ingenuidade acreditar que tais circunstâncias criam algo novo. Na verdade, elas amplificam velhos hábitos. O interesse quase doentio pela vida alheia não começou agora. Os vizinhos desde sempre observam os episódios de cólera uns dos outros, comentam entre si, e os próprios comentários integram o espaço das relações na vizinhança. São perfeitamente administráveis do ponto de vista da economia psíquica. A ampliação da voz das pessoas que se interessam pela privacidade alheia, por outro lado, gera consequências nefastas. Considerem a multiplicação de gadgets, celulares e dispositivos com câmeras embutidas. Não é preciso muito: o mundo de hoje é assim. Mas isso ainda é recente — a situação se aprofundará, novas pessoas terão acesso a aparelhos semelhantes, pessoas de outras classes, de todas elas. O cenário é um mundo no qual, com ou sem consentimento, a possibilidade de ser filmado é incontornável.

Isso altera significativamente o espaço público, o modo como as relações se travam dentro dele. Há duas opções: ou se aceita como natural a chance de serem filmado e exposto na internet, ou o comportamento no espaço público se transformará exigindo uma atenção especial à conduta, um policiamento que não virá sem ônus psíquico. Uma sociedade mergulhada em estresse não incorpora uma atribuição dessa ordem sem custos. O policiamento e o controle são fontes seguras de aflições as mais dolorosas (vejam o que Freud fala sobre os Santos). Uma parcela de naturalidade e espontaneidade, sacrificadas pelo medo da exposição, dará lugar a um certo cuidado imensamente oneroso. As barreiras não se erigem gratuitamente — a história da civilização prova isso. Não será uma substituição brusca, como se de repente todos se transformassem em atores, mas um comedimento que bastará para incrementar o mal-estar que desde o início do século passado foi diagnosticado.

Qualquer das opções que venha a vigorar implicará uma custosa reformulação da mentalidade. As novidades são inevitáveis, mas o bom ou mau uso delas será efeito de termos ou não consciência de suas implicações e de seu alcance. Há uma inconsequência generalizada — que não é novidade — mas que ganha maiores proporções com a globalização promovida pela internet, é preciso estar atento às mudanças que se projetam sobre nossas antigas práticas.


Há um filme que, pro bem ou pro mal, explora as consequências dessa superexposição que a internet abre. Assistam, é interessante. O argumento é bom e segue a linha do meu argumento contra esse voyeurismo incontrolado. O nome dele é Sem Vestígios (Untraceable).

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