Os devotos de Olavo

O
Pedro não é o único a ter devotos. Olavo faz escola! Seus seguidores reproduzem com fidelidade a cartilha do mestre. Vasculharam todos os textos envolvidos na querela — e mesmo fora dela — até encontrar erros de escrita em que pudesse sem agarrar. Qualquer pessoa que já tenha lido Olavo discutir sabe que, junto com os insultos e o ad hominem, essa é uma das suas táticas prediletas. Quando eles então partem para o enfrentamento do texto (ou algo pelo menos parecido com isso), fica claro por que abraçam com tanto apego a ortografia. Sem ter muito o que falar, eles transformam uma discussão conceitual dirigida a um público bem particular — não àqueles que nunca leram determinadas obras — num debate ortográfico no qual o domínio conceitual antes exigido para compreensão passa a ser trivial. Tudo isso fica patente no modo como eles lêem o texto, um deles pergunta: “Alguém por acaso leu Voegelin, Hegel, ou qualquer um dos autores que Olavo cita?” E logo em seguida cita uma passagem do meu texto Considerações sobre o aborto. Ele diz, “o cara mal aprendeu a pontuar, e quer chamar Olavo de ‘porcaria'”, é verdade, conclusão brilhante. Como pode alguém que não sabe pontuar reconhecer uma porcaria, é logicamente interditado. Em seguida ele diz, “Mais uma vítima da academia atual, que lê Foucault demais e latim de menos”. Agora eu me pergunto, o que Foucault está fazendo aí? Alguém capaz de invocar Foucault ou o aprendizado de latim em meio a uma descrição gramatical do conceito de vida pode enganar outros sobre o fato de nunca ter lido Foucault? Eu pergunto, quem nunca leu Foucault pode, por acaso, ter lido Hegel? Melhor, ter compreendido Hegel? É um belo teatro armado na caixa de comentários de Pedro, mas nem ali a farsa passa despercebida. Lá mesmo Dino comenta:

Trata-se do conceito de vida e de quando e de que maneira ela pode ser apercebida como tal. Diga-se de passagem qualquer um pode ser contrario as colocações do Leonardo, só não pode desviar o debate para outro nível e assunto, ou seja até pode lutar, mas não é empreitada para alguém com uma bacia velha e um pinico na cabeça…

Fico contente de ser entendido, não quero outra coisa. Se houver discordância, tanto melhor. Mas não posso dizer que os seguidores de Olavão me entenderam. Pois se o próprio Olavo nunca manteve em pé seus estudos clássicos, suas leituras da filosofia moderna então são completas nulidades — razão pela qual ele passa a amaldiçoá-la (quem não sabe rezar, xinga Deus). Mas o show de horrores não pára, outro decreta: “E a culpa, para variar, é do Subjetivismo Epistemológico”. Santo Deus, de onde o rapaz tirou isso? Ele viu mesmo uma epistemologia no meu texto sobre o aborto? Onde? E mais, uma “Epistemologia Subjetiva”, o que isso quer dizer exatamente? Vai saber o que se passa na cabeça dessa gente.

Sentindo-se animado, um deles resolveu escrever em seu blog, comentando meu texto sobre o aborto (a essa altura, as razões que apresentei no texto contra Olavo já foram esquecidas, quer por eles, quer pelo próprio Olavo). Depois de fazer juízo sobre minha capacidade pra escrever, ele recorta meu texto destacando passagens, como se eu as tivesse escondido. Confessa então: “Entenderam? Nem eu”. Mas insiste, contra a natureza avara que lhe deu tão poucos recursos, ele insiste em tentar entender até que por fim anuncia:

Agora entenderam? Nosso amigo é um relativista de marca maior.

Eu não pude conter o riso. Meu texto além de envolver uma epistemologia ainda é relativista. Quem diria! Mas sabe de quem é a culpa disso? De Olavo. É ele quem interdita a seus seguidores o acesso aos textos de filósofos como o professor Giannotti, que num tapa dissolveria o mal entendido:

Note-se como a noção clássica de fundamento, por conseguinte de racionalidade, é subvertida. Os comentadores costumam ressaltar que, segundo Wittgenstein, a pergunta pelo fundamento (Grund) na sua regressão encontra um obstáculo intransponível, a dura rocha onde a pá, escavando, entorta. E daí se embriagam numa festa relativista e culturalista, celebrando a multiplicidade e incomensurabilidade das formas de vida.” (Arthur GIANNOTTI, Apresentação do Mundo)

Mas eu não espero que eles entendam. Há conceitos aí que demandam uma compreensão nada rasteira de filosofia (bem diversa daquela que só seleciona palavras pra soltá-las em caixa de comentários). Basta, no entanto, notar como já havia restrições à leitura que enxerga na multiplicidade das formas de vida um equivalente relativista. Se os fundamentos podem ser alterados no curso das nossas práticas linguísticas, isso não significa que as necessidades internas à linguagem sejam flexibilizadas ou relativizadas, apenas que não há nenhum fundamento unívoco e absoluto a emprestar sentido aos usos conceituais. Wittgenstein torna isso bem claro quando toma as operações matemáticas, tentando dissolver a necessidade de se postular entidades (Achei na Analytica um texto intitulado: Notas críticas sobre o realismo matemático, à moda de Wittgenstein, deve ser de alguma ajuda). Mas essa é uma outra questão, que envolve muita leitura. Nós não queremos fundir os miolos dos rapazes nem tampouco arranjar um trampolim para que eles partam em saltos ainda maiores em direção a um abismo de bobagens. Vamos nos deter no comentário do meu texto.

Para ele, a “vida” é apenas uma “palavra”, um conceito meramente cultural e relativo, que varia com a significação que queiramos lhe dar. Assim, aparentemente, um feto pode ser algo “vivo” ou não de acordo com a ideologia ou cultura de cada um, ou seja, de acordo com o conceito de “vida” que cada um de nós prefira. Para alguns, a vida iniciará após a fecundação; para outros, após o parto; para outros ainda, quando o garoto entrar na faculdade…

Ora, caros leitores. Ora, ora! Qualquer cadela de rua grávida, mesmo que não tenha estudado filosofia, sabe perfeitamente bem que seu feto é um ser vivo. Não há nenhuma questão religiosa, cultural ou semântica ali. Eu poderia distinguir entre “vida intra-uterina” e “vida extra-uterina”, ou mesmo discutir os aspectos teológicos e filosóficos da questão, mas do ponto de vista biológico não há dúvida alguma que um feto está “vivo” (caso contrário, estaria “morto”.)

Há muitos equívocos aí, mas eu não quero me alongar, até porque sei que não serei entendido por falta de vontade e, sobretudo, de capacidade. Ele nos diz que do ponto de vista biológico não há dúvida de que o feto está vivo. O “ponto de vista biológico” é um ponto de vista teórico, portanto, relativo ao contexto e ao sistema teórico vigente em determinado período da história. O modo como os gregos tratavam a biologia, seu próprio corpo, suas práticas médicas, as purgações e a dietética que Foucault — vejam só quem apareceu aqui — analisa tão bem em Uso dos prazeres é orientado por um “ponto de vista biológico” inteiramente diverso. Sem nunca ter lido um livro sequer de um neopositivista, o seguidor de Olavo defende inconscientemente um positivismo ingenuo. Ele pensa que a experiência é pura, destituída de qualquer arcabouço conceitual, e que portanto pode servir de parâmetro irrefutável para dirimir nossas dúvidas ou orientar nossas certezas. Na verdade, não é que ele pense ele assim, não é que ele organize, à maneira positivista, as coisas de sorte que elas se dirijam à experiência, prova disso é que ele mobiliza o conceito de “biológico” na mesma sentença em que faz referência à experiência, a experiência da vida do feto. O que está envolvido aí é apenas uma confusão, a falta de clareza no uso e na distinção de enunciados teóricos e enunciados observacionais — o que nos leva de volta a questão da demarcação de Popper, que mencionei no meu texto contra Olavo.

Daí em diante é uma festa de asneiras. Consequências são extraídas na leitura relativista que ele imputa ao meu texto, de sorte que ele pensa que a decisão acerca do conceito de vida é algo meramente individual. Que a vida é um conceito relativo numa sentido estritamente relativista. O rapaz não entende que o conceito de vida é uma norma de organização da experiência que pode ser orientada por contextos teóricos ou mesmo teológicos — caso a visão religiosa prevaleça. Que cada uma dessas visões produz modos de organização diferentes — mas não errados na relação de um com o outro. Cada uma delas adota um princípio diferente de organização. Nenhum experiência, como quer o pobre coitado, é anterior à adoção de princípios de organização. É o princípio, a norma, que garante a objetividade dos usos conceituais, quer na ciência, quer na religião, e assim enforma o mundo. Na ciência esses princípios variam conforme o desenvolvimento científico, por isso o “ponto de vista biológico” dos gregos é tão diversos do nosso. Na religião, eles são relativamente absolutos, pois se fundam em dogmas.

Num outro texto sobre as células tronco eu fabrico uma imagem ilustrativa:

Imagine um sujeito egresso da periferia de Chorrochó do Barro Dentro, analfabeto e obtuso, agora imagine-o diagnosticando uma doença pulmonar qualquer através de uma chapa de raio X, imagine-o descrevendo as aspectos que o levaram ao diagnóstico. Impossível! Quem nunca teve acesso às normas teóricas não sabe o que procurar numa chapa de raio X, mal vê, como eu e todos os que não dominam o saber médico, a forma humana externa com a qual estamos familiarizados. Quem crê que um geneticista pode nos mostrar o que é a vida, crê que um sujeito obtuso e iletrado pode ler um chapa de raio X sem dominar as técnicas médicas, crê que a experiência nos dá as formas elementares do conhecimento, sem intermediários.

É essa suposição que está implicada na leitura do seguidor de Olavo. É uma perspectiva fortemente anti-teórica, porque empírica, baseada no que ele vê e pensa poder dizer e não no modo como a ciência se articula e torna possíveis os enunciados científicos. Basta!, chega de pérolas aos porcos. Escrevi esse texto porque acho fascinante a problemática que envolve uma “psicologia da observação” e as fronteiras traçadas pelo pensamento de que os enunciados observacionais são puros e que, portanto, podem refutar ou confirmar hipóteses científicas. Por isso mesmo eu planejava escrever um texto intitulado: “Por que a ciência não avança por falsificação”, abordando as saídas que Popper, num leitura de Lakatos, propõe para o problema da psicologia da observação. Escreverei logo que eu me desfaça de algumas obrigações.

Ao final do seu comentário o rapaz ainda apela mais uma vez para a arma olaviana, sentencia que não sou estudante de Letras e de Biologia porque acentuei erradamente a palavra “pupila/púpila” (quero crer que ele não fez objeção ao uso do termo “constrição”, do contrário, nem mesmo entendeu o fragmento que recortou). Constatação brilhante, a altura da interpretação que ele promove ao longo do texto. Afinal, todos sabem estudantes de Letras e de Biologia não se equivocam na grafia das palavras. Eu mereço!

PS. Vou rezar para que esse texto não contenha erros, embora isso seja improvável, do contrário todo meu esforço de argumentação irá por terra.

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