Li ontem um artigo em que Maria Rita Kehl articula Adorno, Lacan e Débord em função da análise do sujeito na sociedade do espetáculo — expressão do Débord. O texto é breve, mas instingante. Em linhas gerais, o que ela diz é que o sujeito (que nem se realizou enquanto tal, para Adorno) se reduziu ao papel de receptáculo de uma subjetividade pré-fabricada (subjetividade reificada) e que, na impossibilidade de viver longe dos parâmetros da sociedade que o subjetivou, ele consome alienadamente seus produtos. Esse sujeito não é nada além do que o termo final na cadeia produtiva da indústria da cultura. Abaixo alguns fragmentos do texto em que ela, ora recorta citações, ora as comenta:
“O princípio da individualidade estava cheio de contradições desde o início. Por um lado, a individuação jamais chegou a se realizar de fato. (…) Todo personagem burguês exprimia, apesar de seu desvio e graças justamente a ele, a mesma coisa: a dureza da sociedade competitiva. O indivíduo, sobre o qual a sociedade se apoiava, trazia em si mesmo sua mácula: em sua aparente liberdade, ele era oproduto de sua aparelhagem econômica e social. (…) Ao mesmo tempo, a sociedade burguesa também desenvolveu, em seu processo, o indivíduo. Contra a vontade de seus senhores, a técnica transformou os homens de crianças em pessoas. Mas cada um desses progressos da individuação se fez à custa da individualidade em cujo nome tinha lugar, e deles não sobrou senão a decisão de perseguir apenas os fins privados”. (Adorno, A Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas).
Parece que a crítica, nessa passagem, aponta para a redução do “indivíduo”, que floresceu sob as condições da vida burguesa, a uma somatória de pessoas perseguindo suas finalidades privadas – o que torna todos idênticos, afinal. Esses “desenraizados”, privatizados, isolados, são presas fáceis de propostas de engajamento autoritárias, em função de seu desamparo subjetivo. Aqui podemos situar as “paixões de segurança” mencionadas por Lacan: o “indivíduo”, como ideal que promove identificações, só se sustenta pelo recalque da dívida simbólica, que produz um “a mais” de alienação. Perdido de suas referências simbólicas, desgarrado da comunidade de seus semelhantes – que se reduziu a uma massa indiferenciada de pessoas perseguindo, uma a uma, seus “fins privados”.
[…] à formulação de Isleide Fontenelle, para quem a sociedade do espetáculo é um momento da sociedade capitalista em que o princípio de diferenciação se dá pela imagem. Ora, a imagem – lembremos o conceito de estádio do espelho, em Lacan – é a forma mais primitiva de identificação, que nos coloca na dependência absoluta do olhar do Outro. […] Ocorre que a sociedade dos indivíduos “desacostumados à subjetividade” não é a sociedade dos homens capazes de estabelecer entre eles relações “objetivas”, ou seja, livres do excedente de alienação que o capitalismo industrial fabrica diariamente. Ao contrário, o que o espetáculo produz é uma versão hiper-subjetiva da vida social, na qual as relações de poder e dominação são todas atravessadas pelo afeto, pelas identificações, por preferências pessoais e simpatias. E quanto mais o indivíduo, convocado a responder como consumidor e espectador, perde o norte de suas produções subjetivas singulares, mais a indústria lhe devolve uma subjetividade reificada, produzida em série, espetacularizada. Esta subjetividade industrializada ele consome avidamente, de modo a preencher o vazio da vida interior da qual ele abriu mão por força da “paixão de segurança”, que é a paixão de pertencer à massa, identificar-se com ela nos termos propostos pelo espetáculo. Por aí se explica o interesse do público que assiste aos reality shows dos anos 2000 na tentativa de flagrar alguma expressão espontânea da subjetividade alheia sem se dar conta de que os participantes desse tipo de espetáculo estão tão “formatados” pela televisão, tão “desacostumados da subjetividade” quanto o telespectador.