ACM, o Neto, elegeu-se prefeito de Salvador. Antes mesmo do fato se consumar algumas análises rabiscavam confusamente justas críticas ao PT, críticas nas quais o partido era acusado de tomar parte do carlismo. Se a derrota pode ensinar algo, é preciso entender o que se passou.
O carlismo não existe mais
Se você preferir acreditar que ele ainda existe, tudo bem. “Diga o que quiser, desde que isso não te impeça de ver o que acontece”, diria Wittgenstein. Nós não brigamos por palavras. O carlismo nomeou um sistema complexo que se articulava em função da figura de Antônio Carlos Magalhães. O instrumento midiático era um dos seus eixos mais poderosos. A história do fortalecimento da TV Bahia, hoje Rede Bahia, começa quando o então ministro Antônio Carlos Magalhães manobra para permitir que a Rede Globo fosse favorecida por um cenário construído artificialmente pelo próprio ministro, adquirindo uma empresa, a NEC, cuja estrutura ajudou e muito a sedimentar o papel da Globo no Brasil. Como recompensa, foi permitido à TV Bahia transmitir a programação da já hegemônica Rede Globo. O resto da história vocês conhecem. Não fosse pouca essa influência, ACM consolidou durante os muitos anos em que esteve à frente da política baiana, com o beneplácito dos ditadores vigentes (que o escolheram para prefeito de Salvador em 67 e governador em 71 e 79), um poder que extrapolava o plano político. Durante as longas décadas em que seu poder se espraiou sem reservas, ACM soube posicionar e conquistar aliados em postos estratégicos não só na esfera política mas também no âmbito judicial. Provocou por consequência uma imobilização em tudo que lhe fosse obstáculo, em qualquer iniciativa, política, jurídica e social que entravasse seus caprichos. No campo cultural o carlismo também produziu derivados — como lembra a expressão que Lucas emprega a torto e a direito: axé-system -, a industrial cultural ligada ao carlismo soube emprestar cores democráticas ao seu amo e recebeu por isso benesses de todo gênero.
Vê-se que pelo menos quatro pilares importantes sustentavam o que então denominávamos carlismo. No campo da comunicação social e mídia, na cultura, na política e na justiça ACM controlava com mãos de ferro tudo que circulava, e nada prosperava sem sua anuência.
O PT/BA não é carlista
A breve caracterização do carlismo já seria o bastante para dissolver os mal entendidos que faziam confundir as ações do PT as dos próprios carlistas. Porém, é preciso também esclarecer os fatores que contribuem para essa confusão.
O PT na Bahia tem reproduzido a estratégia nacional do partido. Estratégia bem sucedida, diga-se de passagem, e que recentemente colheu mais um fruto: a eleição de Haddad. O PT abraçou tudo que há de mais vil em São Paulo em nome dessa vitória. Aliás, há não poucos anos o partido tem estreitado relações com qualquer pessoa ou coisa que possa favorecer e facilitar suas administrações públicas e sua vida política. Em perfeita harmonia com a sentido dessa estratégia, na Bahia, o espólio político carlista foi desmembrado — e parte dele somado às forças do próprio PT. Aqui, não faço juízo das ações (embora a mim elas também pareçam senão desnecessárias, no mínimo algo evitáveis), mas apenas descrevo e distinguo o que são práticas nada inéditas do PT do que define propriamente o carlismo. A incorporação pura e simples de quadros do carlismo, por questionável que seja, não basta para caracterizar como carlistas as ações do PT. Antes, o que se reflete aqui são ações políticas que ninguém mais pode considerar inéditas em se tratando de Partido dos Trabalhadores.
A aproximação dos grupos antes notoriamente ligados aos interessantes carlistas é parte dessa tática, mas ninguém pode dizer que ela é mais carlista do que inspirada pelo pragmatismo político ou pela política de resultados (e alguns dirão de olhos arregalados: há outra política?) que o PT tem adotado na última década.
Os erros do PT
Outros fatores determinaram a avaliação equivocada das ações do partido. Nos últimos dois anos (considero que o governo começou a se perder no segundo mandato), o governador insistiu em erros que o afastaram da sua base. Ora, mas esse não é também um erro comum do governo federal? O tratamento aos professores, os acenos à ala conservadora da sociedade, que não são outra coisa senão um desrespeito à militância que tanto se empenhou em eleger a presidenta em nome de uma agenda favoráveis às minorias, ao meio ambiente e aos menos favorecidos de modo geral.
As necessidades políticas e eleitorais do partido tem definido escolhas que o afastam de parte substancial da sua base. Os “êxitos” econômicos talvez sejam o bastante para garantir a musculatura eleitoral nos próximos anos, e a ameaça de Serras e quetais sempre produzirá ao final o retorno de parte da militância distanciada, em vista do “menos pior”. Contudo, assim como em Salvador, ela não retornará entusiasmada, mas resignada. Incrível constatar nas ruas o entusiasmo espontâneo dos eleitores de ACM Neto em contraste com a grande massa de militantes remunerados agitando bandeiras de Pelegrino. Sintomático!
E se no futuro as diferenças não forem tão grande, a ponto de não se distinguir claramente os projetos do PT e PSDB (ou PSB, sei lá), bastará ao PT contratar novos militantes para agitar bandeiras nas ruas? Se os eleitores sentirem que suas expectativas podem ser supridas por outro partido, o que restará do PT, agora enfraquecido no que antes era sua maior força?
Essa característica soa como uma tucanização do PT, não uma mutação carlista, embora tenha contribuído para que suas ações fossem vistas como reflexos de práticas carlistas.
O ranço do neocarlismo coxinha
As justas críticas foram agenciadas pelas forças neocarlistas e se misturam ao ódio que alguns sentem pelo PT. Produziu-se assim o bem conhecido discurso que põe de um lado os impolutos e incorruptíveis partidários do DEM e, do outro, os corruptos e degenerados do PT. Não bastasse essa representação ser de saída incompatível com o “rouba mas faz” que os velhos carlistas repetem com a boca cheia, ela é de uma ingenuidade atroz.
O carlismo não existe mais num sentido muito especial: não há mais o vigor político centrado na personalidade de ACM. ACM Neto é um pastiche, herdou apenas o nome, mas não tem força nem carisma pra reerguer a estrutura que amparava o poder de seu avô. Isso sem falar na fragmentação política do núcleo carlista que já se ensaiava desde antes do morte de Malvadeza — e que se consumou com a sua derrota em 2006 e com sua morte em 2007.
Parte dos entusiasmados eleitores pensou ter “afastado” a ameaça petista e renovado o fôlego carlista, mas apenas instalou na prefeitura municipal um fantoche dos interesses econômicos de sempre. Neto terá pouca autonomia política, dependerá da mediação do PMDB (via Geddel e Michel Temer) com o governo federal para conseguir o dinheiro de que precisará a todo custo e daqui pra 2014 e/ou 2016 posará inúmeras vezes exibindo um largo sorriso em fotos ao lado do governador petista da Bahia e da presidenta petista do Brasil — até que, em 2014, encenará mais uma vez (a depender da situação econômica, claro) a farsa de que representa uma mudança e um distanciamento político do PT. Os sonhadores que votaram ACM Neto podem ter uma pista do que virá pela frente aqui: Após vitória, ACM Neto adota discurso conciliatório (ou aqui: ‘Espero contar com a ajuda dele’, disse sobre o adversário Nelson Pelegrino). Não se trata de uma crítica, não se espera dele nenhuma outra postura, trata-se apenas de dissolver uma imagem idealizada que existe apenas no imaginário de gente saudosa do chicote de Toinho Malvadeza e que, na realidade, viverá num mundo real e numa cidade distante das suas delirantes fantasias. Considerando ainda a “supostamente” forte oposição que sofrerá na Câmara, tem-se uma ideia do estreito campo de ação do neocarlismo coxinha.
A revanche dos professores
A tese de que o PT pagou pelo destrato aos professores parece insuficiente. Não que o episódio seja um componente desimportante, mas duvido que tenha sido determinante à maneira como foi pintado. Supõe-se nessa ideia uma deliberada ação coletiva de retaliação. Se o episódio importa, é porque permitiu justificar quase inconscientemente um desejo nada implícito de voltar aos braços do amado pai, do fiador da lei e da ordem que os moradores da cidade já não sentem vigorar e que ao menos na cabeça dos seus eleitores painho ACM seria capaz de restituir — a qualquer custo! (pois o sistema é bruto!). É como a restauração da ordem paternal destituída pelo homicídio através do clã dos irmãos, na mitologia freudiana.
PS. Compondo o quadro de características do carlismo, esqueci justo o proverbial modo de direcionar as forças policiais contra seus desafetos e a maneira com a que a suposta “ordem” do estado se mantinha às custas do sangue e dos direitos humanos dos criminosos. Infelizmente, ao menos nas estatísticas, esse aspecto mantém hoje semelhanças sinistras com os tempos carlistas.
Atualização: Em uma entrevista coletiva, ACM Neto disse não só que não terá forte oposição na Câmara, mas que terá maioria. A conferir!