Lula e a imprensa

Lula após o depoimento em Curitiba. Foto: Ricardo Stuckert

Seria bom que a esquerda tivesse uma alternativa que não fosse contar com a candidatura messiânica de Lula? Seria. Agora, como isso vai se dar? Tem gente de esquerda que, tendo em conta essa necessidade, tem visto com bons olhos a possível candidatura de Ciro Gomes. Tem gente que, mais à esquerda, foge de Ciro como o diabo foge da cruz. Saber o que não se deve fazer nem sempre nos ajuda a determinar como nós devemos agir. Na prática a teoria é outra.

O que parece é que tem muita gente disposta a admitir que a imprensa seja o catalisador dessa mudança necessária à esquerda e eu não consigo aceitar essa ideia. Vejamos as circunstâncias. São cinco os processos que pesam contra Lula. Certamente tem alguém melhor informado do que eu sobre os detalhes de cada processo, mas me parece que falta materialidade em todos eles. E o caso do triplex é exemplar. O monitor do debate político rastreou as notícias mais compartilhadas no dia do depoimento de Lula. Dentre elas estava uma matéria do site Spotniks que, como todos sabem, não esconde suas inclinações políticas. O título da matéria é: Se você ainda acha que não há provas contra Lula na Lava Jato, precisa ler esse texto. O texto joga com a ambiguidade da palavra prova (que tem um uso técnico no Direito e um uso cotidiano), não há nenhuma intenção de fazer uma avaliação técnica sobre o que se apresenta como “prova” e sobre como as coisas que estão ali alegadas podem verdadeiramente corresponder a provas. Li também um post de um blog da Gazeta do Povo que trazia uma confusão similar, o título do post era: Lula em Curitiba: dez pontos para você não cair na histeria (de nenhum dos dois lados), e lá dentro havia uma afirmação que também partia de uma perspectiva igualmente equivocada:

Pode muito bem acontecer de Lula ser culpado e de não haver provas suficientes para que ele seja condenado ou preso. Isso faz parte do regime democrático e querer que alguém vá preso se não houver culpa ou se não houver provas é o mesmo que defender um Estado de exceção.

Não, “não pode acontecer”. Ou você aceita os critérios da justiça, os seus ritos e processos — o que não significa que você precisa concordar com eles, já que “em nome da justiça” tem-se atropelado o processo penal — ou tudo que lhe sobra é um juízo moral sobre a culpabilidade. Ou seja, não há possibilidade de que exista um culpado se não há provas suficientes. Acho que se está formando um ambiente favorável à aplicação de um Domínio do Fato 2.0. O primeiro caso de aplicação também foi conveniente, já que parecia impensável que nenhum político fosse responsabilizado pelo escândalo do Mensalão. Mas acho que essa conveniência está se mostrando algo arbitrária.

Não se trata de defender Lula, que fique claro. As pessoas tendem a prestar atenção só no que lhes interessa. Trata-se apenas de analisar as circunstâncias num contexto mais amplo e à parte a narrativa que a imprensa tem adotado em uníssono. Por exemplo, Fernando Henrique Cardoso e o próprio Gilmar Mendes andaram defendendo a distinção entre caixa dois e corrupção. O motivo provável, livrar a barra de Aécio Neves. Logo depois do depoimento de Lula, onde até pedras puderam notar a tendenciosidade de quem deveria meramente julgar, o enfoque e a estratégia da imprensa mudou. (Lula saiu de lá fortalecido simbolicamente, a despeito dos links que circularam na internet, já que é evidente para qualquer pessoa atenta que Moro não tem presença e que não é um sujeito muito inteligente: uso sempre como parâmetro para ilustrar isso o encontro de Moro e Gilmar Mendes no Congresso; digam o que quiserem de Gilmar Mendes, mas ele é inteligente e sabe como falar e atuar, Moro diante dele parece uma criança perdida e balbuciante.) A despeito da capa deplorável da Veja e dos “coincidentes” enfoques das manchetes, a estratégia passou a ser explorar as delações dos marqueteiro do PT e de sua mulher. Eu acho que a delação premiada é um instrumento inadequado e perigoso, que tende a minar o próprio procedimento penal, mas vamos supor que há muitas verdades nessas declarações. Onde é que fica Lula na comparação com Michel Temer e seus ministros, Aécio Neves, José Serra, Geraldo “Santinho” Alckmin e outros? Como é que Lula se encaixa naquela distinção insistente e convenientemente sublinhada por Gilmar Mendes e FHC? Se a distinção serve pra alguma coisa, é difícil explicar a enorme atenção concedida a Lula pela imprensa, senão pelo propósito de desidratar sua possível candidatura em 2018.

Lula e a imprensa nem sempre estiveram em lados opostos. Todo mundo sabe que os interesses dos governos do PT e os da imprensa coincidiram não poucas vezes. E os petistas souberam se valer dessa força e desse apoio. A crítica à imparcialidade e à seletividade da imprensa, preocupada não em relatar fatos mas em mascarar opiniões com uma camada fina de verniz que mal disfarçava suas intenções, se reduziu à mera caricatura produzida pela pequena parte da imprensa adestrada e financiada pelos governos petistas. Se reduziu a caricatura sintetizada na palavra PIG (Partido da Imprensa Golpista). Mas isso não significa que a questão tenha deixado de existir. O caso é que quase impossível levantar um debate sobre o papel da imprensa na constituição do clima e das ideias que tem circulado no país sem se contaminar com as cores dessas caricaturizações, sem que alguém te tome como um crítico entusiasta do PIG. Assim o debate foi inteiramente escanteado.

E assim também nós chegamos a este cenário no qual a esquerda parece constrangida a renovar-se e a imprensa — em alguma medida, pro bem ou pro mal — parece ter um papel nessa renovação, já que pode frustrar os planos dos que (erroneamente, sob a perspectiva que eu estou apresentando) creem no plano salvacionista de Lula 2018. A gente fecha os olhos pro papel da imprensa na confecção das narrativas que tem circulado no país e assim em breve teremos um cenário no qual Lula não está, porque a pressão popular vai tornar impossível um outro veredito — talvez pensem (secretamente) alguns. Não se trata tampouco, diga-se de passagem, de constrager quem quer que seja a posicionar-se numa luta binária entre uma certa esquerda e a imprensa. Trata-se apenas de pensar se a necessidade de uma transformação e mudança no campo da esquerda deve contar com essa ajudinha. Se há algo de incompatível entre transformar as ideias e práticas de esquerda e exigir um jornalismo de qualidade, denunciar os abusos políticos e ideológicos de quem vive apontando ideologias em todo lugar. Não é segredo o apoio explícito do governo Dilma à atuação das polícias nas manifestações que tem lugar no país desde 2013, apoio que produziu entre muitas coisas a prisão de Rafael Braga. Esse é um dos pontos em que os governos petistas e a imprensa coincidiram alegremente. O caso é saber se esse lamentável acordo de interesses deve nos levar a pensar a relação da imprensa com o PT, agora, como uma espécie de justiça moral bem representada na expressão: bem feito! Isso parece traduzir mais ressentimento do que uma sólida proposta de transformação.

Não estou certo de que a imprensa tenha a força que supomos, ou de que algum dia tenha tido. Hoje em dia o Whatsapp e o Facebook parecem mais decisivos do que qualquer outra fonte de informação, e a eleição americana em alguma medida mostrou isso. Mas é certo que a imprensa continua investindo pesado para que sua agenda seja bem vista e há muitos números para aferir isso: a reforma da previdência é um bom índice. E ainda que a imprensa não seja tão poderosa quanto pensa que é, o Jornal Nacional ainda tem um forte alcance. Sua visilidade ainda causa estragos. E aquilo que o jornal elege como objeto privilegiado de crítica tem impacto nacional.

Lula tem que ser julgado com imparcialidade e ser condenado ou absolvido de acordo com as provas apresentadas, independente do imenso clamor alimentado por uma imprensa que mal esconde seu entusiasmo por projetos e agendas que não passam pela legitimidade da vontade popular (a única fonte de poder legítimo em uma democracia). Do mesmo modo, a transformação da esquerda tem que ser espontânea, do contrário não terá força para conseguir absolutamente nada. Essa transformação tem que ser conquistada, não dá pra escolher contra quem jogar. Se ela depender de que a (irônica) justiça cósmica puna Lula e o PT por terem se aproximado de tão execráveis aliados, ela já nasce abortada.

PS. Encontrei no Facebook um texto bem interessante no qual o sujeito, numa contradição performática engenhosamente planejada, crítica Lula ao tempo em que reconhece a perversidade da perseguição da imprensa.

A ditadura do medo

Aqueles que hoje exigem incondicionalmente o voto em Dilma são os mesmos que antes pediam silêncio aos simpatizantes do PT sempre que estes expunham publicamente alguma crítica ao partido. O que parece pressuposto nessa interdição completa da crítica é um mecanismo interno de aperfeiçoamento que permita absorver e discutir tais críticas democraticamente. Como se a construção do partido — de suas diretrizes e linhas de orientação — fossem o resultado democrático dessa discussão interna. Não é.

É claro que o PT (ainda, e só ainda) tem grupos e ideais políticos heterogêneos incluídos no bojo de sua composição, mas é ingenuidade, para dizer o mínimo, supor que qualquer discussão de base pode afetar as linhas gerais que determinam a política (ou a realpolitik) do governo federal, por exemplo. Tudo isso é um imenso simulacro. A promessa da democracia — representada nas microdiscussões internas, onde teoricamente o simpatizante pode expor suas críticas sem medo de alimentar o terrível fantasma do retorno do PSDB — paralisa a crítica e justifica a incondicionalidade das exigências. Se na prática não há espaço para divergência e toda mudança é apenas produto de vontades autocentradas, o sujeito que está na base, lutando, por exemplo, para que o PT assuma compromissos de defender os povos tradicionais (ou de aprofundar políticas de direitos LGBT), é apenas uma marionete que importa apenas porque, em certa ocasião, seu voto pode ser determinante para deter o retorno do PSDB. É somente essa a sua função. Se não fosse por isso, ele seria ainda mais ignorado (se isso é possível). Mas como às vezes o partido precisa dele, surgem imagens como essa:

O medo, componente principal da estratégia petista, é paralisante e reativo. Tudo que ele produz é uma reação ao objeto do medo. Sua mobilização é totalitária e não deixa espaço para qualquer atitude positiva. É reativo também no sentido nietzscheano: a própria identidade que se forma a partir daí é negativa, não sejamos lobos. Não há um esforço para construir a identidade do que é ser ovelha, a própria identidade se constitui como atitude reativa (como negação do ser-lobo). O Não, aqui, é mais importante do que o Sim. O medo de perder o poder para o PSDB paralisou e asfixiou qualquer projeto de aperfeiçoar o partido, de discuti-lo, de melhorá-lo, de assimilar aquilo que outrora a sua imensa base social podia oferecer. E são poucos os que enxergam esse efeito paralisante do medo — mesmo entre aqueles que sempre me pareceram inteligentes. Talvez a melhor metáfora desse efeito paralisante esteja representada no filme V de vingança.

É claro que há milhares de referências reais que poderiam ilustrar a mesma questão, mas os filmes são sempre mais didáticos. O efeito do medo é mobilizador, mas seu preço é a rendição incondicional e a conformidade. No final das contas, não foi a aposta nesse apelo totalizante o que levou o PT a preferir disputar o segundo turno com Aécio e não com Marina? Pareciam confiantes de que todos, uma vez mais, optariam por render suas críticas desatendidas, relegadas a condição de ingenuidade irrealizáveis e irrealistas, ao apelo pragmático da contenção do medo. Agora, a confiança parece abalada e a torto e a direito pululam críticas e mesmo xingamentos aos que não cederam ao medo.

De minha parte, acho que é preciso coragem para não ceder o medo. Para acreditar em vias positivas e propositivas de luta política (ainda que elas não possam no curto prazo passar mais pela via institucional e partidária). Creio que é um imenso equívoco utilizar as coisas boas do governo Dilma (que existem, sem dúvida) — ou do PT, de modo geral — para justificar o silenciamento de críticas que não tem acolhida e para, por fim, endossar uma política autocrática, centralizada e isolada em suas próprias certezas, quer pela convicção que manifestam nelas próprias, quer pela crença de que, em algum ponto distante no futuro, ainda que não existam condições para isso, as críticas silenciadas em nome do medo serão absorvidas. Freud nos ensinou que se você está preparado para aceitar incondicionalmente qualquer coisa, no final das contas, você pode jogar fora todo o imenso aparato justificativo utilizado para racionalizar sua rendição. Se você está disposto a sacrificar sua autonomia em nome de um apoio incondicional ao PT — e ao medo que ele brande para exigi-lo —, você não precisa de nenhuma elaborada explicação, pois o medo é um sentimento que dispensa justificação. Mas se você quer preservar a capacidade democrática de participar da discussão sobre as ações políticas adotadas pelo governo, mesmo que num sentido distante e indireto, bem, talvez nesse caso convenha desconfiar da ditadura que desmobiliza tudo que não seja medo e receio.

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Se não se admite crítica e, ao mesmo tempo, não se tem um claro limite do que se considera inaceitável, ou seja, sobre questões que, uma vez transgredidas, mudam nossa avaliação de alguma coisa, isso significa que a adesão ao que quer que seja é incondicional. Nesse caso, todas as explicações e justificativas são meras operações de compensação que visam ajustar os fatos, contingentes, a fatores que nós não aceitamos mudar, pois os enxergamos como necessários. É preciso aceitar quem não esteja tão convicto de suas próprias certezas orientadoras. Quem esteja disposto, diante de mudanças, não a ajustar os fatos para preservar intactas nossas certezas, mas a redefinir e discutir os próprios parâmetros que definem os fatos. Claro que isso implica insegurança, instabilidade, algum risco. Mas essa é a condição necessária de alguma mudança real, mudanças são quase sempre dolorosas e custosas. Você pode preferir acreditar e manter suas referências, mas ao menos permita que os outros sejam mais ousados, arriscados e corajosos. (E não esconda seu medo atrás de um suposto e controverso privilégio epistêmico acerca do que são os interesses dessa ou daquela classe; cada um sabe quais são seus interesses, embora sempre convenha embutir aí um grau de “alienação” que nos permite assumir para nós mesmos a função de legislar sobre os interesses e a representação dos outros).

Exercício de imaginação: o campo do possível num governo do PSDB

Não estou seguro de que já foi possível algum dia acreditar em pesquisas eleitorais, no entanto, esse ano elas indicam que a vitória será apertada, seja quem for o vencedor. Vamos supor que Aécio vencerá, apenas para exercitar um pouco a imaginação. Se isso acontecer, o campo do possível nos quatro anos vindouros, na minha opinião, será mapeado a partir de dois extremos que eu indico em seguida.

Num desses extremos o PSDB leva a cabo uma política com um forte verniz social-democrata. O PT ensinou que é possível conciliar benefícios aos de sempre com investimentos sociais e atenção aos menos favorecidos. Afinal de contas, o pacto conservador está na base da condições que favoreceram a vitória e a manutenção do PT na presidência. Se o PSDB fizer isso, empurra o PT para uma situação extremamente desconfortável. Uma observação corrente sugere que o PT, ao assumir a presidência, lança o PSDB numa vazio programático e ideológico ao implementar sua própria agenda social-democrata. “O PT fez do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) uma oposição sem programa e sem sentido. Parafraseando o Marx, pode-se dizer que é triste o partido que, na oposição, vê o seu programa ser implementado pelo adversário”, escreve Felipe Demier. Se o PSDB reassumir (por assim dizer) seu posto, para onde vai o PT? Não pode voltar pra esquerda de onde veio, pois gastou farta munição tachando de ingênuos os partidos de esquerda que lhe cobraram a manutenção de certas bandeiras históricas mascateadas em nome da famosa governabilidade. (Realpolitik versus DCE). Se voltar, será constrangedor, para dizer o mínimo. Mas se insistir em disputar o posto com o PSDB, corre o risco de enfrentar o seguinte problema: será a cópia comparada ao original. Por maior que tenha sido o benefício que o PT concedeu a certos grupos e agentes econômicos em nome do pacto conservador, ele nunca será senão tolerado na condição de gestor dos assuntos que importam às gentes que determinam aquilo que deve importar. Para usar uma imagem elaborada nesse mesmo texto de Felipe Demier (texto em que ele comenta as prisões de Dirceu):

O burguês ordinário porta-se, assim, com José Dirceu tal qual um nobre o faz com um arrivista plebeu que cativou o coração de sua bela filha: não havendo opção, o galante pode até ser aceito na casa, mas não é da família e, na primeira crise conjugal, há que ser posto pra fora de onde nunca deveria ter entrado. Por mais que tenha prestado enormes serviços à burguesia brasileira, Dirceu não é um lídimo filho dela e, do mesmo modo que uma empregada doméstica pode até jantar na mesa da sala, mas não deve dar pitacos nas temáticas encetadas na refeição, Dirceu não deveria ter ousado mostrar aos políticos da classe dominante como realmente se defende os interesses desta. Esperto, capaz e jactancioso, Dirceu talvez tenha ido longe demais nos serviços prestados à nossa oligárquica burguesia.

O PT será sempre o plebeu consentido na casa do nobre e sua timidez em implementar e aprofundar políticas de esquerda — justificada em nome da governabilidade e dos acordos que lhe são necessários — aproximaram perigosamente sua própria imagem à do PSDB. Não é raro escutar um petista alegando que a infantilidade do PT em outros tempos foi um erro, numa espécie de autocrítica pra lá de conveniente. Um das ocasiões em que essa infantilidade poderia ser exemplificada é o caso da CPMF (ou IPMF). O PT se opôs frontalmente ao imposto para, anos depois, brigar pela manutenção da contribuição. A aproximação que está apenas insinuada nesse episódio, e que poderia ser indicada em muitos outros, fere a própria identidade do partido. E não se trata, obviamente, de sustentar uma tese sobre ela (da qual eu abro mão no momento em que me acusam de sustentá-la, para não embarcar na tergiversação). Quero somente sugerir que é bastante provável que, para além do circo montado ao redor da polarização tucanos versus petralhas, as ações de ambos os partidos sejam enxergadas como inegavelmente semelhantes. Por fim, com um pouquinho de inteligência o PSDB pode inverter o jogo que foi obrigado a jogar nos últimos 12 anos.

No outro extremo o PSDB age como se espera e rifa até o horizonte de uma social-democracia. Não parece uma opção improvável, já que há pouco indício de inteligência à frente do partido e considerando que a opção já foi aventada. Nesse caso o PT pode nadar de braçadas. Esperará quatro amargos anos para lembrar os brasileiros que o PSDB é aquilo que o partido sempre sugeriu: o grupo de representantes de oligarquias que estão pouco se lixando para as outras classes que compõem o país. Lula poderá aparecer em 2018 para completar o quadro salvacionista e restaurar os tempos em que as classes menos favorecidas eram minimamente contempladas e consideradas (enquanto os ricos se banqueteavam entre queixumes e reclamações sobre a quantidade de pobres no aeroporto).

O painel pode parecer simplificador, e é. A ideia é apenas delinear duas linhas que me parecem determinantes na orientação da política nacional no caso de vitória de Aécio. E, adicionalmente, para sugerir que qualquer alternativa mais elaborada e promissora para pensar o Brasil passa longe da opção de tensionar ainda mais a pouco frutífera polarização PT/PSDB (isso melhorou a democracia americana?). Fica como pressuposto do texto a ideia de que — por uma série de fatores que estão sugeridas, ao longo do texto, para os olhos bem treinado — uma continuidade do PT no governo não representa nenhum ganho significativo, embora eu me isente do enfado de determinar qual é o menos pior dos dois partido (o que seria muito apropriado e conveniente para um período em que todos estão caçando pareceres para justificar as escolhas que professam). Voto é representação e esse tipo de cálculo convém somente a alguém que ainda admite ser representado por algum dos dois partido, o que não é o meu caso.

Simplificação, a estratégia de argumentação mais usada

Há tempos eu defendo a tese de que a simplificação é a estratégia argumentativa mais utilizada. E isso por uma razão simples: lidamos sempre com aquilo que entendemos! Mas se não entendemos suficientemente um tema, de maneira geral estamos inclinamos a dois modos de agir, (1) podemos buscar conhecê-lo mais, complexificando nossa visão, o que implica uma postura ativa frente à questão, (2) ou podemos ajustar o tema ao universo das coisas coisas que conhecemos, uma postura antes passiva. A simplificação acontece quando, em nome da possibilidade de participar de um debate (as razões para isso são as mais variadas), nós distorcemos um tema até que ele se enquadre em certas categorias que nos parecem familiares e com as quais nos sentimos mais seguros em lidar. É claro que a simplificação nem sempre é o mero reflexo de uma certa passividade diante de um cenário (embora ela sempre precise contar com uma disposição semelhante), sem dúvida há simplificações ativas, isto é, que não resultam de uma espécie de preguiça ou falta de compromisso com os temas que se discutem, mas que são antes ações deliberadas, fabricadas para produzir efeitos específicos. É possível então que alguém reduza um debate a termos prejudicialmente simplórios e insuficientes com o intuito não só de ser mais acessível a sua audiência, mas também de dizer o que ela quer ouvir (ainda que disso implique uma descaracterização da coisa da qual se fala). Apagando distinções importantes, não raras vezes se permite a pronta identificação de uma ideia a outras ideias já carregadas de valor (geralmente negativas) e, consequentemente, se produz por analogia um efeito semelhante (o rechaço) sobre a nova ideia. (Por fim, é a própria noção de analogia como estratégia argumentativa que está aí ao fundo, ou seja, a tática de estabelecer um paralelo entre um argumento, suas premissas e conclusão, e outro que se gostaria de apresentar como idêntico, razão pela qual se solicita a mesma conclusão. O argumento ad hitlerum, de Leo Strauss, pode bem ilustrar os resultados da tentativa de explorar o que se supõem ser a analogia entre dois argumentos).

Ser sensível aos interesses da audiência a que se dirige é algo que só pode valorizar o trabalho de quem argumenta, mas se a própria ideia flutua ao sabor da audiência, sem se orientar por nada de “objetivo”, nesse caso é muito provável que o interesse seja estritamente a manipulação de opiniões.

Vejamos um caso ilustrativo. Nas últimas eleições européias um partido de esquerda espanhol, recentemente constituído, tornou-se uma novidade incômoda ao conseguir cinco cadeiras no parlamento europeu. Aqueles que insistem em denunciar a imparcialidade da Globo e da imprensa escrita de maneira geral ficariam estarrecidos ao notar o sem embaraço com que a imprensa na Espanha desanca aqueles que se opõem a suas posições políticas, ou que ameaçam a frágil hegemonia dos dois partidos aos quais se outorga com exclusividade a representação política do povo espanhol. O que ocorre é que há uma campanha sistemática para associar o Podemos a Venezuela — que se seguiu ao malogrado esforço de desconstruir a legitimidade da sua própria estrutura interna. Em que consiste esse esforço de parte da imprensa espanhola? Ora, consiste simplesmente em ignorar a própria história do partido (que tem apenas CINCO meses e que portanto poderia ser conhecida num par de horas) fazendo sobrepor a ela uma associação com a Venezuela que, uma vez esboçada, erode qualquer possibilidade de simpatia pelo partido e suas ideias, por parte de quem, tendo desconfianças das políticas aplicadas lá, não se preocupa em estabelecer diferenças entre o partido espanhol e os partido venezuelano. A força do Podemos se constituiu justamente a partir de uma base de representação quase direta, através de um esforço de diálogo com associações de moradores, assembleias populares e outros grupos civis, por meio do qual se estabeleceram suas propostas e mediante o qual ouviu-se os interesses daqueles que depois tornaram-se seus eleitores. Nada mais distante não só da Venezuela, como do modelo espanhol vigente (e das democracias de maneira geral, combalidas pelos limites enfrentados pela representação política). O último passo dessa campanha foi associá-lo ao ETA.

É claro que seria uma imensa ingenuidade esperar que as pessoas agissem diferente, que não se valessem de situações como essas para promover efeitos que lhes fossem convenientes. Portanto, não escrevo para exortar um debate “justo”, essa quimera que só existe enquanto não consideramos os argumentos como causas possíveis para efeitos desejados. Uma vez cientes de que argumentos são antes de mais nada causas possíveis para ações, os sujeitos que se enfrentam numa discussão pública deixam de orientar-se exclusivamente pelo propósito de fazer-se entender e passa também a enunciar seus argumentos com o intuito levar seus interlocutores a agirem conforme lhes convém. E pra que isso aconteça, bem, não é necessário que se esteja comprometido com nada do que nós nos acostumamos a chamar verdade. Eficiência e verdade aqui costumam caminhar em sentidos opostos. Antes de qualquer coisa, escrevo porque apesar disso tudo, a tentativa de combater a simplificação dos discursos como estratégia de manipulação me parece favorável ao próprio princípio de que o debate público é capaz de promover uma pluralidade de ideias, e que essas ideias depois poderiam serem assimiladas, desenvolvidas, por qualquer uma das partes que participam do debate público, produzindo assim um salutar arejamento político. A simplificação, embora seja eficiente e sedutora, é um meio paralisante, conservador no sentido mais estrito, na medida em que impede que se reconheçam as nuanças de um debate, congelando as categorias o maior tempo possível dentro de um quadro de ideias fixas e familiares. A simplificação tem que ser combatida não com um apelo à transformação das condições argumentativas, em nome do entendimento, mas pelo esforço constante em bombardear o espaço público com nuances pertinentes a certa discussão e, sobretudo, pela tentativa de promover no outro uma visão mais complexa e uma disposição a recusar reduções inapropriadas. (É um processo de educação ou re-educação que, como tal, não pode se instituir sem um certo grau de violência).

É uma luta inglória, pois enquanto a simplificação nada exige, ao contrário, não faz senão reduzir questões mais amplas a termos mais simples e familiares, a tentativa de estabelecer uma questão em termos mais complexos implica, por outro lado, um compromisso maior do que às vezes as pessoas estão dispostas a assumir. E é como sempre a vontade o maior empecilho aqui. Depois da Copa, quando o Facebook e outras redes sociais estiverem borbulhando de coxinhas e petralhas, talvez esse esforço inglório nos pareça mais urgente e necessário.

PS. Não se deve deixar de mencionar que há simplificações que acontecem também pelo simples desentendimento da complexidade de uma questão. Mas nesses casos o próprio diálogo geralmente costuma sanar o mal entendido.

Considerações finais sobre a eleição em Salvador

ACM, o Neto, vulgo grampinho, elege-se prefeito de Salvador.

ACM, o Neto, elegeu-se prefeito de Salvador. Antes mesmo do fato se consumar algumas análises rabiscavam confusamente justas críticas ao PT, críticas nas quais o partido era acusado de tomar parte do carlismo. Se a derrota pode ensinar algo, é preciso entender o que se passou.

O carlismo não existe mais

Se você preferir acreditar que ele ainda existe, tudo bem. “Diga o que quiser, desde que isso não te impeça de ver o que acontece”, diria Wittgenstein. Nós não brigamos por palavras. O carlismo nomeou um sistema complexo que se articulava em função da figura de Antônio Carlos Magalhães. O instrumento midiático era um dos seus eixos mais poderosos. A história do fortalecimento da TV Bahia, hoje Rede Bahia, começa quando o então ministro Antônio Carlos Magalhães manobra para permitir que a Rede Globo fosse favorecida por um cenário construído artificialmente pelo próprio ministro, adquirindo uma empresa, a NEC, cuja estrutura ajudou e muito a sedimentar o papel da Globo no Brasil. Como recompensa, foi permitido à TV Bahia transmitir a programação da já hegemônica Rede Globo. O resto da história vocês conhecem. Não fosse pouca essa influência, ACM consolidou durante os muitos anos em que esteve à frente da política baiana, com o beneplácito dos ditadores vigentes (que o escolheram para prefeito de Salvador em 67 e governador em 71 e 79), um poder que extrapolava o plano político. Durante as longas décadas em que seu poder se espraiou sem reservas, ACM soube posicionar e conquistar aliados em postos estratégicos não só na esfera política mas também no âmbito judicial. Provocou por consequência uma imobilização em tudo que lhe fosse obstáculo, em qualquer iniciativa, política, jurídica e social que entravasse seus caprichos. No campo cultural o carlismo também produziu derivados — como lembra a expressão que Lucas emprega a torto e a direito: axé-system -, a industrial cultural ligada ao carlismo soube emprestar cores democráticas ao seu amo e recebeu por isso benesses de todo gênero.

Vê-se que pelo menos quatro pilares importantes sustentavam o que então denominávamos carlismo. No campo da comunicação social e mídia, na cultura, na política e na justiça ACM controlava com mãos de ferro tudo que circulava, e nada prosperava sem sua anuência.

O PT/BA não é carlista

A breve caracterização do carlismo já seria o bastante para dissolver os mal entendidos que faziam confundir as ações do PT as dos próprios carlistas. Porém, é preciso também esclarecer os fatores que contribuem para essa confusão.

O PT na Bahia tem reproduzido a estratégia nacional do partido. Estratégia bem sucedida, diga-se de passagem, e que recentemente colheu mais um fruto: a eleição de Haddad. O PT abraçou tudo que há de mais vil em São Paulo em nome dessa vitória. Aliás, há não poucos anos o partido tem estreitado relações com qualquer pessoa ou coisa que possa favorecer e facilitar suas administrações públicas e sua vida política. Em perfeita harmonia com a sentido dessa estratégia, na Bahia, o espólio político carlista foi desmembrado — e parte dele somado às forças do próprio PT. Aqui, não faço juízo das ações (embora a mim elas também pareçam senão desnecessárias, no mínimo algo evitáveis), mas apenas descrevo e distinguo o que são práticas nada inéditas do PT do que define propriamente o carlismo. A incorporação pura e simples de quadros do carlismo, por questionável que seja, não basta para caracterizar como carlistas as ações do PT. Antes, o que se reflete aqui são ações políticas que ninguém mais pode considerar inéditas em se tratando de Partido dos Trabalhadores.

A aproximação dos grupos antes notoriamente ligados aos interessantes carlistas é parte dessa tática, mas ninguém pode dizer que ela é mais carlista do que inspirada pelo pragmatismo político ou pela política de resultados (e alguns dirão de olhos arregalados: há outra política?) que o PT tem adotado na última década.

Os erros do PT

Outros fatores determinaram a avaliação equivocada das ações do partido. Nos últimos dois anos (considero que o governo começou a se perder no segundo mandato), o governador insistiu em erros que o afastaram da sua base. Ora, mas esse não é também um erro comum do governo federal? O tratamento aos professores, os acenos à ala conservadora da sociedade, que não são outra coisa senão um desrespeito à militância que tanto se empenhou em eleger a presidenta em nome de uma agenda favoráveis às minorias, ao meio ambiente e aos menos favorecidos de modo geral.

As necessidades políticas e eleitorais do partido tem definido escolhas que o afastam de parte substancial da sua base. Os “êxitos” econômicos talvez sejam o bastante para garantir a musculatura eleitoral nos próximos anos, e a ameaça de Serras e quetais sempre produzirá ao final o retorno de parte da militância distanciada, em vista do “menos pior”. Contudo, assim como em Salvador, ela não retornará entusiasmada, mas resignada. Incrível constatar nas ruas o entusiasmo espontâneo dos eleitores de ACM Neto em contraste com a grande massa de militantes remunerados agitando bandeiras de Pelegrino. Sintomático!

E se no futuro as diferenças não forem tão grande, a ponto de não se distinguir claramente os projetos do PT e PSDB (ou PSB, sei lá), bastará ao PT contratar novos militantes para agitar bandeiras nas ruas? Se os eleitores sentirem que suas expectativas podem ser supridas por outro partido, o que restará do PT, agora enfraquecido no que antes era sua maior força?

Essa característica soa como uma tucanização do PT, não uma mutação carlista, embora tenha contribuído para que suas ações fossem vistas como reflexos de práticas carlistas.

O ranço do neocarlismo coxinha

As justas críticas foram agenciadas pelas forças neocarlistas e se misturam ao ódio que alguns sentem pelo PT. Produziu-se assim o bem conhecido discurso que põe de um lado os impolutos e incorruptíveis partidários do DEM e, do outro, os corruptos e degenerados do PT. Não bastasse essa representação ser de saída incompatível com o “rouba mas faz” que os velhos carlistas repetem com a boca cheia, ela é de uma ingenuidade atroz.

O carlismo não existe mais num sentido muito especial: não há mais o vigor político centrado na personalidade de ACM. ACM Neto é um pastiche, herdou apenas o nome, mas não tem força nem carisma pra reerguer a estrutura que amparava o poder de seu avô. Isso sem falar na fragmentação política do núcleo carlista que já se ensaiava desde antes do morte de Malvadeza — e que se consumou com a sua derrota em 2006 e com sua morte em 2007.

Lula, num dos seus momentos conciliatórios. 
Lula num dos seus momentos conciliatórios

Parte dos entusiasmados eleitores pensou ter “afastado” a ameaça petista e renovado o fôlego carlista, mas apenas instalou na prefeitura municipal um fantoche dos interesses econômicos de sempre. Neto terá pouca autonomia política, dependerá da mediação do PMDB (via Geddel e Michel Temer) com o governo federal para conseguir o dinheiro de que precisará a todo custo e daqui pra 2014 e/ou 2016 posará inúmeras vezes exibindo um largo sorriso em fotos ao lado do governador petista da Bahia e da presidenta petista do Brasil — até que, em 2014, encenará mais uma vez (a depender da situação econômica, claro) a farsa de que representa uma mudança e um distanciamento político do PT. Os sonhadores que votaram ACM Neto podem ter uma pista do que virá pela frente aqui: Após vitória, ACM Neto adota discurso conciliatório (ou aqui: ‘Espero contar com a ajuda dele’, disse sobre o adversário Nelson Pelegrino). Não se trata de uma crítica, não se espera dele nenhuma outra postura, trata-se apenas de dissolver uma imagem idealizada que existe apenas no imaginário de gente saudosa do chicote de Toinho Malvadeza e que, na realidade, viverá num mundo real e numa cidade distante das suas delirantes fantasias. Considerando ainda a “supostamente” forte oposição que sofrerá na Câmara, tem-se uma ideia do estreito campo de ação do neocarlismo coxinha.

A revanche dos professores

A tese de que o PT pagou pelo destrato aos professores parece insuficiente. Não que o episódio seja um componente desimportante, mas duvido que tenha sido determinante à maneira como foi pintado. Supõe-se nessa ideia uma deliberada ação coletiva de retaliação. Se o episódio importa, é porque permitiu justificar quase inconscientemente um desejo nada implícito de voltar aos braços do amado pai, do fiador da lei e da ordem que os moradores da cidade já não sentem vigorar e que ao menos na cabeça dos seus eleitores painho ACM seria capaz de restituir — a qualquer custo! (pois o sistema é bruto!). É como a restauração da ordem paternal destituída pelo homicídio através do clã dos irmãos, na mitologia freudiana.

PS. Compondo o quadro de características do carlismo, esqueci justo o proverbial modo de direcionar as forças policiais contra seus desafetos e a maneira com a que a suposta “ordem” do estado se mantinha às custas do sangue e dos direitos humanos dos criminosos. Infelizmente, ao menos nas estatísticas, esse aspecto mantém hoje semelhanças sinistras com os tempos carlistas.

Atualização: Em uma entrevista coletiva, ACM Neto disse não só que não terá forte oposição na Câmara, mas que terá maioria. A conferir!