Descobrindo Wittgenstein II

D

217. Se alguém supusesse que todas as nossas operações com cálculos estavam incertas e que nós não poderíamos confiar em nenhum delas (justificando-se dizendo que erros são sempre possíveis), talvez nós disséssemos que ele é louco. Mas nós poderíamos dizer que ele está errado? Ele apenas não reagiu diferentemente? Nós confiamos em cálculos, ele não; nós estamos seguros, ele não está.
219. Não pode haver nenhuma dúvida sobre isso para mim, como homem razoável — é isso!
220. O homem razoável não tem certas dúvidas. (grifos meus)

ludwig wittgenstein, Sobre a certeza

Talvez outra imagem pudesse ajudar a digerir o parágrafo. Imagine que uma criança pequena vê dois homens conversando em japonês e diz, espantada, a sua mãe: “Olha, mãe, aqueles homens estão falando errado!”. A mãe — naturalmente — dirá que eles não estão falando errado e sim que falam outra língua.

O erro supõe a vigência de um padrão de correção pelo qual se determina o certo (e também o errado). Entre o japonês e o português não há padrões comuns mediante os quais possamos identificar quem fala “errado” em ambos os idiomas. A criança tem uma disposição (ou indisposição) a generalizar suas experiências, fruto de sua pouca vivência, por isso não nos soa estranho e improvável que ela reaja assim à cena em que dois homens conversam em japonês.

Isso nos auxilia a explorar as consequências da curiosa distinção entre erro/loucura. Primeiro, podemos ver o tipo de disposição que assumimos quando julgamos como erradas diferenças fundamentais que resultam em modos completamente distintos de ver o mundo. É uma disposição semelhante a de uma criança cuja inexperiência limita o alcance dos seus juízos, uma incapacidade quase infantil para imaginar como possível um mundo para além dos seus parâmetros. Segundo, se faz evidente assim o fato de que o uso da linguagem não se realiza sem que alguns pontos fixos (certezas “fundantes”) amparem-no. Essas certezas não são da ordem do conhecimento, não são coisas que descobrimos (conhecemos) e elevamos à condição de elemento estruturante, são, antes, características da nossa forma de vida (Lebensform), dizem algo sobre a nossa maneira comum de ver as coisas (pertencer a nossa forma de vida implica em não duvidar de certas coisas, sob pena de parecer louco, ou pior, filósofo; ou não, já que é possível que outras pessoas não compartilhem conosco essa visão de mundo). Por isso o final do primeiro bloco termina assim: “Nós confiamos em cálculos, ele não; nós estamos seguros, ele não está”. A confiança aqui determina a postura diante dos cálculos, ela não é algo derivada, inferida, mas própria à nossa condição — ou, no caso da outra pessoa, ausente.

(Mudar a postura de outra pessoa não é uma questão de convencimento, mas de persuasão, pelo mesmo motivo porque não podemos dizer que ela está errada. Numa outra ocasião eu comento essa distinção interessante).

Por fim, o razoável aqui se limita a uma determinação normativa, não apela a nenhuma natureza universal, absoluta, independente de toda experiência. Poderia bem ser razoável não confiar em cálculos.

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