Nós nascemos autônomos ou nós tornamos autônomos? É possível que alguém seja autônomo e aja por influência de forças exteriores? A autonomia então diz respeito a ações e não há estados ou disposições?
Em nossas sociedades é perfeitamente aceitável que estejamos expostos ao agenciamento do desejo pela publicidade (consumir ou não é nossa escolha), mas não somos livres para casarmos com quem quisermos, para usar a substância que desejemos ou para nos matar. A própria noção de autonomia parece já ameaçada pelo agenciamento do desejo pela publicidade, pois a compreensão do sentido de uma escolha depende do que se quer (e também revela o que queremos). Não é segredo algum que a publicidade estuda e desenvolve ferramentas de agenciamento de desejo e visa promover o estímulo de necessidades. Há décadas a publicidade (e as relações públicas, ambas associadas ao gênio maligno de Edward Bernays) se deu conta de que não devia limitar-se a promover um produto, precisava também estimular o próprio desejo dos consumidores. Se há uma instituição bem servida de recursos e empenhada em moldar os nossos desejos em nome da produção e do consumo continuados (precisamos crescer, não é mesmo?), como é possível pensar que seus clientes sejam ainda assim livres e autônomos?
O que vem primeiro: o desejo ou a escolha? Liberdade e autonomia são conceitos que se recobrem, embora não coincidam. Compreendida como livre arbítrio (e não como necesssidade), a liberdade parece ainda presente em nossas ações. Temos sempre escolhas e opções. Mas somos autônomos? Isto é, somos nós mesmos quem governamos nossas ações? A cadeia de causas e de intenções nas quais nossas ações estão inscritas encontra em nós mesmos o seu último ponto de determinação ou somos apenas um dos elos numa longa cadeia que recua até fontes de determinação exteriores? Pois bem podemos ser livres para escolher, sem que a escolha tenha como fonte de determinação nós mesmos. Somos livres e heterônomos. Mas esse diagnóstico de heteronomia traz complicações, porque alguém poderia com justiça perguntar como o definimos ou identificamos? Talvez uma resposta a essa pergunta não importe e estejamos apenas seduzidos por nossa predileção por soluções e objetividades. Talvez o que importe seja manter uma certa desconfiança saudável: se nós somos os que desejamos, como é possível que sejamos ainda autônomos apesar do esforço de uma indústria inteiramente projetada para moldar nossos desejos? Como podemos falar de indivíduos autônomos face à massiva influência da publicidade nos nossos desejos, sem definir dogmaticamente a autonomia como uma espécie de núcleo inabalável de todo sujeito? Em outras palavras, a única maneira de negar o caráter manipulador da publicidade é afirmar dogmaticamente que, por sermos autônomos, não somos manipuláveis (quase uma petição de princípio). E que todo o sujeito que deseja X, o deseja porque disse SIM a um desejo — mesmo que ele tenha como fonte uma peça publicitária. Portanto, não seríamos manipulados porque somos autônomos pra dizer sim ou não aos desejos que nos são oferecidos (pela publicidade, por exemplo, embora a questão seja naturalmente mais ampla). Nada, absolutamente nada pode nos destituir da condição de sujeitos autônomos. Tudo é escolha nossa, tudo é escolha livre e autônoma. Vê-se que há muito de uma metafísica algo duvidosa na maneira como pensamos (se é que pensamos) a nossa relação com nossos desejos. Esse primado da autonomia elide todos as críticas dirigidas à publicidade e por isso uma tradição de pensamento (ligada em grande parte à Escola de Frankfurt) pareceu perder fôlego e relevância.
O que é essa autonomia essencial que ninguém perde mesmo quando submetido durante toda a sua vida à forte injunção ao consumo (mesmo quando essa injunção constitui os traços essenciais de sua personalidade e sociabilidade) mas que ninguém parece possuir quando deseja comprar drogas ou quando quer se matar?