Não importa o tipo de cilada em que o capitalismo nos meteu, é uma ingenuidade inaceitável acreditar que a ciência vai deter ou reverter os efeitos dessa cilada e nos guiar para um mundo melhor — e não me refiro ao bom ingênuo das crianças, das pessoas que querem salvar o mundo, ou daquelas que ousam amar, mas ao mau ingênuo dos que não veem o óbvio por conveniência ou inexperiência. A ciência é pouco mais do que o braço direito do capitalismo, suas pautas só podem se orientar pelo que é o melhor para a humanidade se por trás houver algum sólida fonte de dinheiro bancando (os estados nacionais são os maiores financiadores da pesquisa científica em todo mundo), ou se tiver alguma forma de ganhar dinheiro com isso. Financiamento é a coisa mais importante para se fazer ciência no século XX. E parece como se esse aspecto não importasse para as discussões metodológicas que envolvem a ciência, ou fosse secundário, como se o mais importante fosse alguma coisa que estivesse presente nas reflexões de Popper sobre o que caracteriza seu método. (Bem, Feyerabend já falava de tudo isso)

Mesmo que os maiores financiadores da ciência sejam os estados nacionais, e não o setor privado (os job creators), a subordinação das economias nacionais ao mercado e às suas necessidadesacaba por inevitavelmente amarrar a pesquisa científica aos interesses do mercado. É claro que ainda assim você verá grupos de pesquisa científica verdadeiramente orientados ao interesse público, como por exemplo o grupo de pesquisa sobre economia ecológica e decrescimento econômico ligados a um departamento da Universidad Autónoma de Barcelona, ao Institut de Ciència i Tecnologia Ambientals. Como esses grupos captam dinheiro para pagar seus investigadores, para oferecer bolsas como a The Post Growth Fellowship e coisas do tipo? A captação de dinheiro se dá por meio de institutos de fomento à pesquisa do estado, como no Brasil? — Não sei, provavelmente. Apesar de tudo isso, o certo é que um grupo de pesquisa sobre economias não crescimentistas não vão receber o mesmo volume de dinheiro que qualquer pesquisa em engenharia de materiais, por exemplo. A ciência não é livre, ela é inteiramente direcionada pelas demandas, sonhos e ambições desse mundo servo do mercado e da complexidade do mercado, de uma economia que entende que deve crescer infinitamente para manter o mercado e o trabalho das pessoas. A ciência quer mesmo é construir pontes, mesmo na China comunista. Aliás, principalmente lá. Então o financiamento é a questão mais fundamental para entender as diretrizes que orientam o assim chamado “pensamento científico”.
No final dos anos 20, Ortega y Gasset dizia que apenas uma pequena parte do trabalho dos cientistas era efetivamente orientado à aplicação, portanto que a ciência era mais uma aventura de pessoas completamente descoladas da realidade, a tal ponto dele associar a atividade científica à vida contemplativa. Ortega y Gasset sabia muito de ciência no início do século passado, ele não estava errado. Mas a ciência mudou muito! A ciência da segunda metade do século XX é outra coisa, a ciência de Feynman, a ciência após a queda da influência intelectual da escola de Copenhagen e de suas orientações filosóficas. Porque essa foi a última vez que a ciência esteve próxima da filosofia (a filosofia analítica não é tanto uma filosofia que “pauta” a ciência, é antes uma filosofia secretada pelo predomínio do olhar científico). Portanto, o pensamento científico está desassistido de uma crítica à economia que o financia, e por isso só pode torcer por acabar inventando alguma bugiganga que solucione nossos problemas, como se a política e a sociabilidade fossem também meras questões técnicas, coisas para as quais os pensamento científico também poderia “resolver”, encontrar uma “solução tecnologia”. Embora a ciência hoje em dia não seja mais do que esse produto do financiamento científico, o cientista não sabe falar sobre a relação entre a ciência e o dinheiro que a mantém, sobre o modo como esse dinheiro contamina e determina suas perspectivas e suas linhas de investigação.

Por sorte a gente conta com a arte para entender o alcance da influência do capital nas perspectivas de uma ciência industrial, orientada à especialização. Em certa medida, o seriado Lições de química é sobre os desafios de conseguir financiamento para uma pesquisa em Química sendo mulher nos anos 60, não importa o quão inteligente você seja! As mulheres têm sempre o triplo das dificuldades que os homens em todos os campos, imagine então nos anos 60. O que me lembra a história da matemática alemã Emmy Noether, que trabalhou 7 anos na Universidade de Erlangen sem receber salário por ser mulher, sendo claramente o gênio matemático da Universidade.

Mas em se tratando de material para reflexão sobre a relação entre a pesquisa científica e o seu financiamento nada melhor que Dead Ringers, com a divina Rachel Welz. Claro que a indústria farmacêutica é a melhor maneira de abordar esse tema, de apresentar a relação entre ciência e dinheiro nos limites éticos e jurídicos de pesquisas ligadas à obstetrícia e à farmácia. Quem tem dinheiro monta seus centros de pesquisa em headquarters gigantescos, edifícios complexos e isolados, e quem sabe o que acontece lá dentro? Dead ringers te mostra uma dessas possibilidades, os limites da regulamentação e da fiscalização. — Significa que tudo acontece assim, sempre? Acho que não, mas quem pode saber: não é essa a questão? Não importa saber se acontece muito ou pouco do que a série apresenta no mundo real, o importante é se dar conta que o dinheiro cria zonas de proteção e invisibilidade, onde tudo pode acontecer, desde pesquisas com embriões que extrapolam normativas éticas e sanitárias definidas pelas instituições públicas dos estados nacionais, até orgias sexuais com menores de idade promovidas por empresários e job creators, empresários que depois se transformam em salvadores, homens empenhados em lutar contra os satanistas pedófilos denunciados por aquele usuário do 4chan que se tornou conhecido como QANON entre a extrema-direita dos EUA. Para a extrema-direita a raposa deve cuidar das galinhas.

Enquanto essa relação entre dinheiro e ciência não for um foco de reflexão dos próprios cientistas, não há muito que historiadores, sociólogos e filósofos possam fazer ou lhes dizer. E a especialização contribui para esse estreitamente do olhar científico, a especialização é uma cegueira, não apenas do ponto de vista epistêmico, pois há muitos campos externos a nossa área de especialização, mas, sobretudo, do ponto de vista lógico, pois nós ficamos cada vez mais incapazes de realizar uma síntese, ficamos atrofiados, não podemos ver a ciência como conceito que subsume a particularidade de cada ciência, não importa se ela é a matemática ou a biologia. Não podemos ver a ciência como um todo. Não importa que um ou outro saiba ver a ciência como um todo, é preciso que todos nós a vejamos assim. É preciso reinstituir o conceito de síntese, como contraposto ao sonho analítico da determinação (sonho ou ilusão?). Do contrário, entre outras coisas, o conceito de liberdade vai ficar na mão dos conservadores, enquanto nós lutamos por pensar um mundo sem free will, como tem feito o melhor do nosso pensamento científico (e como antes os filósofos lutavam para provar que Deus é uma quimera).