A filosofia não é uma ciência, entenda de uma vez!

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Vou falar sobre uma queixa antiga, porque é sempre um bom momento para fazer uma queixa. Para as pessoas que fazem pesquisa científica em filosofia é quase inevitável se sentir um impostor, um mau pesquisador, se você não tem vontade de participar de debates acadêmicos. E assim eu me sentia no doutorado. — “Como você sabe se tem alguma coisa nova a dizer se você não leu o que os outros disseram?” pergunta o filósofo-cientista, acusatório. — “Talvez Fulaninho já tenha escrito sobre isso (identidade)”, o que é uma questão importante se você é um cientista. Mas a filosofia não é uma ciência, e o fato de que os ditos filósofos aceitem agir como se fosse não me estarrece, mas me desgarra.

A inscrição da filosofia na universidade e a ideia de que a filosofia deve fazer, dizer e produzir como as ciências com as quais ela divide instalações universitárias leva os pesquisadores em filosofia a emular o comportamento dos cientistas (Wittgenstein já falava sobre isso) e, por exemplo, à necessidade de participar do debate acadêmico; e à necessidade de discutir as questões que os pesquisadores influentes discutem. Então, se eu quero escrever sobre a ética em Wittgenstein, por exemplo, eu preciso ler e achar um jeito de encaixar na minha pesquisa alguns dos milhares de pesquisadores em todo mundo que escreveram sobre o mesmo tema, senão não sou bom pesquisador, não conheço o meu campo de pesquisa. Esse é o modo de pensar de um cientistas, não de um filósofo. E eu pergunto: que pensamento sobrevive à necessidade de participar de debates acadêmicos em meios universitários? Que pensamento sobrevive à quase obrigatoriedade de discutir o que os outros discutem, de se pautar pelo que os outros pensam? Só quem não tem nada a dizer pode estar contente e satisfeito com o mero papel de futriqueiro filosófico, de comentar e participar de picuinhas acadêmicas como se estivesse contribuindo para uma comunidade científica, melhorando a filosofia. A filosofia não é uma ciência! Sem querer estar apenas argumentando, porque não se trata de um argumento, a comunidade não é tão importante para a filosofia, pra começo de conversa. Tampouco é muito importante para a filosofia a ideia de novidade, inovação e ineditismo. Eu quero escrever sobre o mesmo, sobre o óbvio, sobre o que Fulaninho já escreveu muitos anos antes, e mesmo que para todo o mundo seja sobre o mesmo (questão de identidade), mera repetição. Tudo no mundo é sobre como as coisas são ditas, e não sobre o que se diz. À filosofia não lhe importa não dizer coisas novas, enquanto que isso é inegavelmente importante para a ciência. Na maioria das vezes a filosofia está apenas inventando novos modos de dizer o mesmo, de ver o que está diante dos nossos olhos e não podemos ver. O que existe no mundo, existe pelo modo como dizemos as coisas e não porque existem as coisas que dizemos.


Vez ou outra me volta à memória essa peça ilustrativa da ontologia de Nietzsche, uma bela reflexão sobre como criamos novas coisas ao dizê-las, e uma lição realmente difícil de aprender, como ele mesmo enfatiza.

Somente enquanto criadores! — Eis algo que me exigiu e sempre continua a exigir um grande esforço: compreender que importa muito mais como as coisas se chamam do que aquilo que são. A reputação, o nome e a aparência, o peso e a medida habituais de uma coisa, o modo como é vista — quase sempre uma arbitrariedade e um erro em sua origem, jogados sobre as coisas como uma roupagem totalmente estranha à sua natureza e mesmo à sua pele —, mediante a crença que as pessoas neles tiveram, incrementada de geração em geração, gradualmente se enraizaram e encravaram na coisa, por assim dizer, tornando-se o seu próprio corpo: a aparência inicial termina quase sempre por tornar-se essência e atua como essência! Que tolo acharia que basta apontar essa origem e esse nebuloso manto de ilusão para destruir o mundo tido por essencial, a chamada “realidade”? Somente enquanto criadores podemos destruir! — Mas não esqueçamos também isto: basta criar novos nomes, avaliações e probabilidades para, a longo prazo, criar novas “coisas”.

Nietzsche. Gaia ciência, §58

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