Só sei que nada sei

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Quem tem sempre diante de si a sua própria ignorância não anda pelo mundo arrotando grandeza. É complicado construir uma ética da ignorância no mundo do conhecimento, na Tecnosfera, e, no entanto, essa é a única ética que necessitamos. Construir uma ética da ignorância significa construir um modo de agir e de ser no mundo que tenha a ignorância como algo inevitável, e não como algo que pode ser camuflado e dissimulado. Borges escreveu em Deutsches Requiem: “Não estaria louco um homem que se figurasse constantemente o mapa da Hungria?”. Uma ética do conhecimento faz a mesma coisa, coloca diante de nós nossa própria ignorância, como o mapa da Hungria, mas ao invés de nos enlouquecer, essa ignorância nos abre portas e nos apresenta possibilidades que de outro modo não poderíamos ver.

A diferença entre quem sabe e quem sabe que não sabe é precisamente essa: a energia e convicção dos que sabem. Sem dúvida, são necessárias a energia e a convicção daqueles que sabem, mas é preciso estar atento aos que fingem saber. Nietzsche sobre a confiança das pessoas estreitas:

O caráter bom e forte. — A estreiteza de opiniões, transformada em instinto pelo hábito, leva ao que chamamos de força de caráter. Quando alguém age por poucos, mas sempre os mesmos motivos, seus atos adquirem grande energia; se esses atos harmonizarem com os princípios dos espíritos cativos, eles serão reconhecidos e também produzirão, naquele que os perfaz, o sentimento da boa consciência. Poucos motivos, ação enérgica e boa consciência constituem o que se chama força de caráter. Ao indivíduo de caráter forte falta o conhecimento das muitas possibilidades e direções da ação; seu intelecto é estreito, cativo, pois em certo caso talvez lhe mostre apenas duas possibilidades; entre essas duas ele tem de escolher necessariamente, conforme sua natureza, e o faz de maneira rápida e fácil, pois não tem cinquenta possibilidades para escolher.

Muitos apostam que a cultura humana está sendo determinada por uma guerra entre EUA e China, a respeito da Inteligência Artificial. OpenAI versus DeepSeek. Mas é a inteligência humana que está no centro dos principais eventos que têm se desenrolado atualmente, a inteligência humana, seus padrões de expressão e seus supostos expoentes.

Foto tirada em Malasaña, Madrid.

A ideia de Nietzsche se alinha muito bem ao efeito Dunning-Kruger, à percepção de que quanto menos uma pessoa sabe, mais ela é propensa a dizer que sabe e agir energicamente como se soubesse (o visionário). E isso naturalmente me faz pensar em Sócrates, no seu proverbial mote: “Só sei que nada sei”. Nesse sentido, uma ética da ignorância precisa ser fundamentalmente socrática, como único modo de resgatar a inteligência humana do afunilamento provocado pela vigência de padrões de inteligência vinculados ao dinheiro, única e exclusiva medida de valor da sociedade humana. Se a própria inteligência não puder escapar à avaliação e metrificação imposta pelo poder financeiro, estaremos, como estamos agora, condenados a seguir os caminhos ditados por pessoas estreitas, com uma energia quase inescapável.

Duas figuras que conseguiram comprar o título de inteligentes e visionários

Se por um lado há, no clube das pessoas verdadeiramente inteligentes, gente com a energia construtiva e luminosa de um Alexander von Humboldt, há também gente com a energia de Wittgenstein, ou David Foster Wallace, com a tendência a jogar areia nos próprios olhos, ou pior. São a antípoda do efeito Dunning-Kruger.


Lembrei de algo que escrevi sobre o mesmo tema em História do possível e do impossível:

Podemos lidar cientificamente com o saber, mas só a filosofia (ética) pode nos ensinar a lidar com a ignorância e com aquilo que está além da capacidade de explicação.

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