Escrever e falar são habilidades distintas, com diferentes pesos na cultura. A escrita tem o peso de uma técnica, é uma aquisição de segunda ordem e exige dedicação não apenas ao próprio exercício de escrever, mas também ao ato de leitura. A leitura não é uma atividade no mesmo sentido em que dizemos que a escrita é uma atividade, a leitura é mais passiva, menos criativa. Você pode entendê-la como atividade e como espaço de criação se imaginar alguém lendo um poema, como Caetano Veloso lendo Elegia, de Drummond..
ou seja, se pensar a leitura como algo aparentado às artes cênicas, à retórica (que não é pouca coisa), mas ainda assim não é disso que eu estou falando. Bem, o que eu quero é apenas destacar que embora a escrita possa a prescindir da leitura, em geral as duas coisas caminham juntas, de sorte que a habilidade de escrever acompanha o hábito de ler, e o hábito da leitura contribue decisivamente para que a escrita também se fortaleça como expressão do espírito.
Este é um relato pessoal sobre minha experiência com duas competências bem gerais, na minha vida a escrita tem sido minha habilidade preferida, aquela à qual eu dediquei maior atenção. Pela diferença mencionada antes, pelo fato da escrita ser mais técnica, estar ligada a uma tradição longeva que reúne seres humanos da melhor espécie que eu posso conceber; seres humanos que eu aprendi ao longo da vida a amar e admirar, de Aristóteles a Charlotte Brönte, de Clarice Lispector a Heráclito. Pierre Clastres define negativamente a sociedade arcaica como uma sociedade caracterizada pela “pela ausência· de escrita e pela economia dita de subsistência”, isso dá uma boa medida da importância da escrita e de tudo que ela envolve. À parte essa justificativa sociológica da escolha, a verdade é que minha percepção era de que falar era comum, e a vontade de falar a mais vulgar das pretensões.
Escrever, ao contrário, não tinha nada de comum, requeria dedicação, esforço, regularidade, alguma disciplina, senso de objetividade, leitura, coragem (para expor o que se escreve e para submetê-lo a apreciação), e tantos aspectos precisavam ser mobilizados no desenvolvimento dessa competência que não parecia nem mesmo justo comparar o desejo de saber falar com o desejo de saber escrever. E, bem, até hoje tem sido assim. Mas a verdade é que faz alguns anos eu me dei conta do que as coisas não são assim tão simples. Minha avaliação das virtudes envolvidas no domínio da fala não era justa, apenas um endosso cego (embora bem justificado) de uma vontade de escrever que, dado o contexto onde eu cresci, parecia ser a única coisa que alguém deveria almejar.
Ainda é verdade que as pessoas continuam falando muito depois de não terem mais nada que dizer, mas é verdade também que a própria escrita se banalizou. O caso é que a fala tem ao seu lado uma infinidade de aspectos que eu simplesmente não tinha me dado conta, fechado em minha bolha. Antes de mais nada, pra relembrar o que eu já disse antes: “o verbo” significa o sopro divino cuja importância se deixa notar no fato de que, embora pudéssemos criar vida segundo a tradição cabalística, só Deus podia conceder às criaturas o dom da fala, insuflar em nós o espírito. Mesmo que eu não seja exatamente um religioso, essa ideia tem um simbolismo que transcende a dimensão religiosa.
Além disso, a fala, como a escrita, é também um meio de expressão, no sentido de que por meio dela as pessoas tentam moldar o significado de suas existências e externalizar aquilo que, como uma necessidade vital, precisa ser externalizado. Isso significa que o mesmo ímpeto que sente quem precisa da escrita como um modo de ser no mundo também sente quem precisa da fala e o fato dela ser uma competência comum não torna menos extraordinário quando as pessoas verdadeiramente conseguem fazer disso uma habilidade excepcional.
Mas por que você escreve? – A: Eu não sou daqueles que pensam tendo na mão a pena molhada; tampouco daqueles que diante do tinteiro aberto se abandonam as suas paixões, sentados na cadeira e olhando fixamente para o papel. Eu me irrito ou me envergonho do ato de escrever; escrever é para mim uma necessidade imperiosa – falar disso, mesmo por imagens, é algo que me desgosta. B: Mas por que você escreve então? A: Cá entre nós, meu caro, eu não descobri ainda outra maneira de me livrar de meus pensamentos. B: E por que você quer se livrar deles? A: Por que eu quero? E eu quero? Eu preciso. – B: Basta! Basta!
Nietzsche. Humano, demasiado humano, § 93
Há ainda muitas outras questões que ganham destaque em razão da singularidade de nossa circunstância histórico-tecnológica. A fala tem uma dinamicidade natural que a escrita não pode ter, falando podemos rapidamente corrigir-nos, repetir, ajustar e refazer o que é dito, pois não há o compromisso com o produto (o output) que a escrita necessariamente deve manter. No contexto de uma sociedade digital, essa dinamicidade aliada à acessibilidade da fala parece quase pressionar uma mudança de paradigma. Em alguns registros da vida humana não me surpreenderia se nós constatássemos a substituição da escrita pela oralidade (dada a possibilidade de registro em vídeo, ao invés de um simples registro em formato de texto digital). Essa é uma possibilidade já aventada por algumas pessoas.
Devo dizer, pensando bem sobre minha desconfiança com o falar, que a implicância na verdade era contra o seu caráter comum e o popular. Ou seja, o que realmente não me interessava era me dirigir a pessoas cujo entendimento pudesse decifrar somente aquilo que não contivesse nenhum grau de abstração. Havia, portanto, um elitismo na minha escolha, e um elitismo compreensível, dado que até hoje mesmo o debate público no Brasil (e grande parte do discurso que se produz) é profunda e sintomaticamente carente em matéria de abstração.
Acontece que sem o comum não há comunicação, e por comum eu entendo não aquilo que perpassa diferentes compreensões de uma ideia qualquer, mas, ao contrário, o próprio modo de costurar uma compreensão comum tendo em conta um público/audiência. O falar está mais habituado ao ajuste, àquilo que me refiro quando digo que a humanidade é uma rede peer-to-peer. Muitas vezes mais importante do que encontrar aquele aspecto comum que a abstração extrai por meio de uma generalização é forjar este comum sobre la marcha, isto é, no calor de uma intercâmbio de consciências, tendo em contas todos os aspectos da psicologia de massas, do aspecto intersubjetivo da fala.
Minha relação com a fala se desenvolveu relativamente pouco, pois eu sempre me restringi a falar apenas com as pessoas eram minha audiência, pessoas que em tese já seriam capazes de entender minha escrita. Isso quer dizer que nossa conversa já se encontrava favorecida por conexões que encurtavam a necessidade de palavras, como geralmente acontecesse com amigos (ainda quero um dia escrever sobre isso). Desenvolver a fala significa desenvolver a capacidade de estabelecer conexões circunstanciais e de fazer ajustes dinâmicos, o melhoramento dessa capacidade implica uma desenvoltura que não se reduz a uma técnica (aliás, como a própria escrita) e tem efeito ético e político.
O destino se encarregou de criar circunstâncias que me levaram a encarar a necessidade de desenvolver, pelo menos um pouco, minha capacidade de falar fora da bolha. O efeito da fala é notoriamente distinto, porque perceptível. A escrita é uma experiência solitária e raramente constatamos seu efeito. A fala, ao contrário, exige algum tipo de presença e por isso com frequência tem efeito notório e imediato. A presença do espírito, para usar uma expressão conhecida e interessante, se manifesta mais perceptivelmente por meio da fala. Isso por si só já é um tremendo fato, e profundamente atrativo.
Apesar de tudo isso, pra mim o maior desafio de desenvolver a fala é a completa aversão que eu sinto pela vulgaridade do desejo de falar. Na minha cabeça a vontade de falar está visceralmente associada a um intuito de chamar atenção tão comum e tão vazio que eu não consigo admitir esse desejo senão como expressão de um sentimento que eu não toleraria em mim. Depois de um tempo a escrita naturalmente se converte não apenas num hábito, mas numa necessidade, em algo que dá azo ao que nela há de terapêutico. Como admitir coisa semelhante a uma vontade de falar, quando me enoja as pessoas que vão pela rua matraqueando como se tudo que lhes saísse pela boca fosse pure gold? Como não sentir vergonha pelo desejo vaidoso e egocêntrico de sentir o holofotes apontados para si? Há muitos obstáculos postos para meu desejo de aperfeiçoar essa competência e o desafio de superá-los aponta para questões que foram sempre centrais para mim.
A escrita tinha aparentemente uma vantagem (que não tem mais), ela podia funcionar como um horcrux, pois era um modo de gravar o espírito no texto. Por exemplo, nas páginas dos seus livros e escritos o espírito de Nietzsche vive, como Sauron vivia no Um anel, como Valdemort vivia nos horcrux (o que me leva a pensar, Tolkien inspirou J. K. Rowling?). Sua presença pode ser sentida. A oralidade, apesar de sua força, do seu caráter imensurável, tinha muitas limitações, que foram superadas depois que aprendemos a gravar em vídeo, e especialmente depois que entramos numa sociedade digital e construímos tecnologias de armazenamento como o Solid State Drive (SSD). O historiador da computação Paul Cerruzi tem uma seção só sobre Solid State Eletronics em seu livro, Computing, a concise history.