A bolha é uma dessas ideias que circulam pela internet sem que ninguém tenha dúvida sobre o seu sentido, por isso mesmo pode ser uma ferramenta interessante. O que a caracteriza é o fato de demarcar muito claramente um lado de fora, isto é, um espaço interno de pertencimento (a bolha em si) e um espaço externo de exclusão. Nesse sentido, a bolha é algo bem diferente de um certo entendimento da lógica, que justamente por sua generalidade não permite que exista um lado de fora. Assim Wittgenstein se expressa:
A lógica preenche o mundo; os limites do mundo são também seus limites.
Wittgenstein,Tractatus Logico-Philosophicus 5.61
É claro que a bolha não impede que pessoas do lado de dentro e do lado de fora integrem um mesmo grupo segundo outros critérios (sejam subsumidas por algo mais geral), portanto, essa imagem tem limites. Se a lógica pode preencher o mundo e não admite um espaço externo é em função de sua generalidade, pois é uma forma e não um conteúdo. De qualquer modo, a ideia de bolha é interessante, porque embora sempre possamos identificar (fabricar) uma dimensão universal que englobe a todos (preencha o mundo) e, assim, possamos dissolver as separações instauradas por essa ideia, a dúvida que ela sugere persiste como algo não tão fácil de dissipar.
Uma das coisas que se pode pensar a partir de tudo isso é: a razão é algo universal e, portanto, devemos escrevê-la no singular ou há uma pluralidade de razões (a despeito da possibilidade de identificar elementos universais), de tal sorte que devemos escrever no plural, razões e racionalidades? Um caminho, (o único que aceitamos) para responder a essa pergunta é através de uma investigação epistêmica, isto é, devemos produzir um conhecimento que justifique a escolha de uma das duas opções. Essa é a função da verdade, excluir: excluir o falso e conservar o verdadeiro. Nesse contexto tão geral isso significa tentar fazer algo semelhante ao que Kant fez na Crítica da razão pura, dar razões para acreditar que partilhamos um mesmo modo de julgar e pensar, apesar das nossas diferenças e das contingências manifestas na linguagem natural. É preciso ir em direção ao que é puro e necessário, ao que não se deixa afetar pelo tempo. Se a gente quiser levar a sério essa discussão a coisa se complexifica e foge do escopo de uma postagem de blog, então serei dogmático para apresentá-la de modo mais simples.
Se aquilo que reconhecemos como universal na linguagem em certo sentido não constitui uma base ou fundamento, mas deve ser visto como um eixo, então é possível que as pessoas partilhem um mesmo eixo sem que pertençam ao mesmo sistema. Em filosofia, essa discussão tangencia o debate entre fundacionalismo e coerentismo sobre sistemas, discussão que envolve gente graúda em filosofia da lógica, como Susan Haack (em Evidence and Inquiry, por exemplo). O que me interessa como wittgensteiniano fascinado pelo impacto da pragmática é o outro caminho, aquele que não aceitamos, que nem sequer vemos, o de uma resposta não epistêmica, ou melhor, de um entendimento da gênese do sentido que torna a pluralidade inescapável, a despeito da nossa inclinação frequentemente ideológica a afirmar a unidade da razão (a universalidade da razão é projeto intelectual mas também ideológico).
E é por isso que a bolha é uma oportunidade, porque ela torna a discussão passível de ser entendida em contextos não abstratos, por meio de exemplos, ainda que devamos ter em consideração que são apenas analogias. Se existe uma dimensão universal e comum à qual devemos retornar quando nos vemos empacados em desacordos aparentemente insuperáveis, excelente!, mas e se nos falta essa dimensão? O que se coloca a partir disso é: como romper as bolhas? Como agir diante do que é radicalmente diferente de mim? São os desacordos que emergem como questão central. E os modos de encarar os desacordos são importantes diante da post-truth, do terraplanismo, da aparente necessidade de convencer os outros seres humanos a abandonar o consumo industrial (ou não) de carne, ou de aceitar a ciência (amém!) e outra forma de vida. Sem falar na urgência com que deveríamos aprender a aprender com o que consideramos inferior ou não desenvolvido. As bolhas não são uma questão epistêmica, mas ética e política, e não há conhecimento que possa nos dizer o que fazer diante desses impasses.
As discussões que se desdobram ou que se ligam a essa questão formam um campo aberto, mas parece urgente que tenhamos presente essa reflexão porque sua natureza ética torna inevitável e atual uma pergunta elementar: o que fazer?